COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – ORIGEM E SIMBOLISMO DO PECADO – 26.02.2023
Caros Confrades,
A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão o tema da origem do pecado, através da narração bíblica da legendária árvore do bem e do mal, já tantas vezes tema de criações artísticas e sempre motivo de polêmica entre os leitores bíblicos. Logo a seguir, apresenta um trecho de Paulo igualmente polêmico, no qual ele faz um trocadilho sobre a origem do pecado, remetendo o argumento à árvore do paraíso, e lembrando a “tentação” sofrida pela mulher. Na sequência, o evangelho de Mateus vai abordar outro tema controvertido acerca das “tentações” de Cristo. Trata-se de assuntos que precisam ser entendidos com clareza, para evitarem-se discussões inúteis e questionamentos insolúveis. Mais do que narrar um fato, as leituras bíblicas trazem para nossa consideração a simbologia do pecado, para destacar a força da graça divina, que é infinitamente superior.
Na primeira leitura (Gen 2, 7 – 3, 7), temos aquela conhecida história sobre o “fruto proibido”, que teria sido ingerido por Eva e Adão, por influência da serpente. Como já inúmeras vezes tive ocasião de comentar, não se pode realizar interpretação literal dessa legenda, pois ela é simbólica e pedagógica. O seu objetivo é mostrar que a origem do pecado está, em primeiro lugar, na soberba humana de querer igualar-se a Deus e, em segundo lugar, na ousadia da desobediência. Sabe-se muito bem que serpente não fala e nunca falou, além do que a narrativa explora o aspecto da curiosidade feminina, envolvendo a ação da mulher na origem do pecado, fato que se transformou nessa, ainda hoje presente, discriminação social contra a mulher, persistente e resistente, apesar de todo o empenho do movimento feminista mundial. Nem mesmo a inclusão de dispositivos nas leis e na constituição acerca da igualdade dos gêneros consegue força para superar tão arraigado preconceito. As matrizes da cultura hebraica, associadas e reforçadas pela mentalidade greco-romana antiga, colocam raízes demasiado profundas neste comportamento masculino (machismo), que consegue sobreviver a todas as tentativas de extirpá-lo. Essa simbologia do pecado, escondida nos meandros mais obscuros do inconsciente coletivo, tem uma força de regeneração extremamente poderosa.
Podemos observar uma explicação didática da simbologia do pecado no trecho paulino da Carta aos Romanos (5, 12-19). Foi muito importante a adesão da elite romana ao cristianismo primitivo, fruto do apostolado de Paulo, motivo pelo qual ele procurou explicar muito claramente esse tema complexo e difícil para seu público romano constituído, em grande parte, de pessoas instruídas na cultura grega. Paulo era um judeu fervoroso, ortodoxo, então ele conhecia bem a Torah e os seus ensinamentos, inclusive a história do paraíso do Éden. Utilizando-se de seus conhecimentos da cultura grega, ele compôs um raciocínio lógico bastante criativo, fazendo uma espécie de trocadilho paralelo entre a história da árvore do bem e do mal e a redenção operada por Cristo, ao contrapor o pecado e a graça personificados, nas figuras de Adão e de Cristo. “Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. ” (Rm 5, 18). Pela culpa de Adão, o pecado entrou no mundo; pela ação redentora de Cristo, a graça venceu o pecado. Por um homem (Adão), veio o pecado; por um homem (Cristo), veio a graça. Paulo nem precisou fazer referência à participação de Eva no episódio da origem do pecado, talvez até propositalmente omitiu isso, para não complicar ainda mais a situação social das mulheres em Roma, pois elas já eram postas em segundo plano na sociedade romana. Esse texto de Paulo, não obstante o seu didatismo, trouxe enormes dificuldades teológicas para a sua interpretação, sendo ainda hoje motivo de inquietação por parte de teólogos que não conseguem ultrapassar a sua estrita literalidade. Com certeza, Paulo não tencionava defender uma “tese científica” sobre a origem da humanidade, mas apenas construir um argumento teológico servindo-se da lógica filosófica grega, muito conceituada entre os romanos, para demonstrar que o cristianismo era uma religião compatível com a filosofia grega. A sua tese de “por um só homem” tem gerado memoráveis polêmicas quando confrontada com as teorias da evolução das espécies, opondo de forma desnecessária a Bíblia e a ciência. Sem adentrar nos detalhes dessa problemática, eu sustento o entendimento teológico de que o pecado se origina da própria natureza humana imperfeita e, nessa linha de pensamento, a graça que Cristo veio nos trazer com a sua encarnação não configura um “restabelecimento” ou retorno a uma situação anteriormente vivida no paraíso bíblico e que fora perdida por causa das ações mal sucedidas dos antepassados, mas se trata de uma situação futura, dentro do processo de aperfeiçoamento contínuo da própria criação divina.
Portanto, nessa nova linha de raciocínio, não teríamos a sequência graça original→ pecado original→ nova graça cristã, mas apenas natureza humana originalmente imperfeita (e por isso passível de ser atingida pelo pecado) e natureza humana socorrida pela graça divina trazida por Cristo, com a qual o ser humano tem a ajuda suficiente para superar as imperfeições naturais e se plenificar cada vez mais. Ao desenvolver-se, por via de consequência, o ser humano leva para toda a criação esse processo evolutivo. Aí, sim, vale a observação de Paulo em Romanos 5, 20: “onde abundou o pecado, superabundou a graça.” Esse trecho, que não está incluído na leitura deste domingo, é exatamente o versículo seguinte de onde termina o texto lido na liturgia.
A leitura do evangelho de Mateus 4, 1-11 traz a narração das “tentações” de Jesus no deserto, onde ele jejuou durante 40 dias. Vale recordar nesse contexto a simbologia do número 40. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo um fato muito importante, não significa contagem matemática de 40 dias, mas do tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Por sua vez, as tentações de Jesus representam os 'perigos' que a sua natureza divina poderia representar em situações de extrema pressão psicológica como ser humano que era. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele teriam sido facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. As chamadas “tentações” foram, na verdade, uma espécie de treinamento que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana.
Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que Ele realizasse um “milagrezinho” na presença deles. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra Jesus atravessar a piscina dele andando sobre a água (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Jesus não fez. Portanto, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima', até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, a figura de satanás é utilizada para encobrir nossas próprias fraquezas e nossa personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior, mas da nossa “trindade” interior: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud), que são as verdadeiras “donas” da nossa personalidade.
Meus amigos, veio-me a lembrança agora uma frase emblemática do filósofo austríaco Edmund Husserl, que insistia sempre: “voltemos às coisas mesmas”. Este apelo de Husserl corresponde ao início da filosofia fenomenológica, por ele defendida, instruindo-nos a reconhecer e valorizar as nossas próprias percepções e não procurarmos a todo custo racionalizar os acontecimentos, buscar explicações lógicas e racionais para tudo, através da generalização conceitual abstrata. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela encerra. Encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, deixemos de culpar o demônio pelos males que fazemos, pois somente assim estaremos criando condições de superar a nós mesmos. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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