COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – A CONFIRMAÇÃO – 17.03.2024
Caros Confrades,
Na liturgia deste 5º domingo da quaresma, as leituras apresentam como tema comum a renovação da promessa de Javeh ao povo de Israel, iniciando com a profecia de Jeremias, passando pela carta aos Hebreus e completando com o evangelho de João. É curioso observar como as palavras de Jeremias, proferidas mais de 600 anos antes de Cristo, têm uma aplicação plena na perspectiva messiânica da missão do Salvador. Ele se refere ao povo, que foi infiel à aliança do Sinai, e anuncia que Javeh fará uma nova aliança e esta será definitiva. E João declara que, mais uma vez, o Pai confirmou a divindade do Filho e a autenticidade de sua missão, mediante um sinal sonoro ouvido publicamente em Jerusalém, tendo sido confundido por alguns como um trovão ou com a voz de um anjo. João foi testemunha disso. Ele não soube apenas por ouvir falar.
A primeira leitura, do profeta Jeremias (31, 31-34), reflete uma situação sócio religiosa complicada no meio do povo hebreu, seduzido pela idolatria dos vizinhos e esquecido da promessa dos seus primeiros pais. A época histórica é pouco antes da derrocada de Jerusalém e da escravidão dos hebreus na Babilônia. O profeta anuncia que Javeh está desencantado com aquele povo e por isso irá renovar a sua promessa, mas essa não será igual à anterior mercê da qual os hebreus foram retirados do Egito e conduzidos pela mão divina através do deserto e que os antepassados violaram, ou seja, não foram fiéis. A aliança anterior era escrita em tábuas de pedra, mas a nova aliança será diferente, como diz o profeta: “Esta será a aliança que concluirei com a casa de Israel, depois desses dias, diz o Senhor: imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração.” (Jr 31, 33) A aliança anterior, escrita na pedra, podia ser facilmente violada, mas a nova aliança escrita nas entranhas e no coração, esta jamais poderá ser esquecida. Jeremias está assim antecipando claramente o que Cristo iria afirmar tempos depois, quando veio realizar esta nova aliança. É interessante notar, nesse trecho, a locução temporal “depois desses dias”, que eram os dias do cativeiro que estava por chegar. Passados os 70 anos do cativeiro na Babilônia, os que voltaram depois para Jerusalém não eram mais os que foram para lá deportados, e sim os filhos e netos deles. Daí o profeta afirmar que a nova aliança acontecerá “depois desses dias”, porque Javeh estava ciente de que, com aquela geração, não havia mais outro recurso, senão o castigo.
Sob o aspecto cronológico, a palavra de Jeremias se referia ao cativeiro babilônico e ao retorno do povo posteriormente, para a reconstrução de Jerusalém. Contudo, sob o aspecto transistórico, a profecia se aplica à nova aliança proposta pelo Messias, cinco séculos e meio mais tarde. Essa nova promessa se concretizou com a vinda de Jesus, que veio atualizar e cumprir de forma perfeita a lei de Moisés. Então, a nova lei anunciada por Cristo já não seria escrita em lápides, como a lei mosaica, mas no coração e nas entranhas dos crentes. Só que os judeus não quiseram ouvi-lo e nem aceitaram a inscrição dela nas suas entranhas, por isso a nova aliança foi levada aos gentios, a todos os povos da terra, chegando até nós. A nova lei não faz mais distinção de raças nem de idiomas, mas congrega todos os homens de boa vontade. E para que venha a ser reconhecida e praticada por todos, ela não está escrita em um determinado idioma, mas no idioma universal do amor. Pelo batismo, a nova lei é impressa no nosso coração e assim, continua o profeta no vers. 34, não será mais necessário ensinar ao próximo, ao irmão: aqui está Deus, porque “todos me reconhecerão, do menor ao maior deles, diz o Senhor.” Essa foi a finalidade primordial da missão salvadora de Cristo: inscrever o novo mandamento no coração dos que crerem nele, renovando a promessa divina da salvação universal.
Na segunda leitura, extraída da Carta aos Hebreus, lemos: “Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte.” (Heb 5, 7) Esta mesma mensagem está contida no evangelho de João (12, 27), quando Cristo comenta com os discípulos: “Agora sinto-me angustiado. E que direi? `Pai, livra-me desta hora!'? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim.” E nós todos conhecemos a célebre oração de Cristo no Getsêmani: 'Pai afasta de mim este cálice, porém, não se faça a minha vontade, e sim a Tua.' E complementando este pensamento, retornamos ao texto da Carta aos Hebreus (5, 8): “Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu.” Nesses trechos, percebemos a integração do pensamento do autor da carta aos Hebreus (não é o apóstolo Paulo, como tempos atrás se pensava) com o testemunho de João, acerca dos sofrimentos de Cristo no período que antecedeu a sua paixão. Essas leituras, selecionadas para o último domingo da quaresma, quando se aproximam as comemorações da paixão, morte e ressurreição de Cristo, servem também como reforço teológico para que não caiamos nos mal entendidos das antigas heresias, como por exemplo, os gnósticos que afirmavam que Cristo, sendo Deus, não poderia sofrer e assim a crucificação de Cristo teria sido uma espécie de encenação teatral, pois Ele não estaria sofrendo realmente. Ora, meus amigos, o evangelista João faz questão de expor um longo diálogo de Cristo explicando aos seus discípulos o que iria ocorrer com Ele e ainda que tipo de morte Ele teria de padecer (Jo 12, 23-27), exatamente para que ninguém viesse a ter dúvidas de que o padecimento de Cristo, além de ter sido real, foi ainda mais agravado porque Ele, sendo Deus, sabia antecipadamente de tudo pelo que ia passar.
Na leitura do evangelho de João, há referência a alguns gregos, que queriam conhecer Jesus. Com certeza, eles eram pessoas de boa fé, que tinham ouvido falar nos feitos miraculosos de Jesus e demonstravam interesse por sua doutrina. É o que lemos em Jo 12, 20-21: “Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa. Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galiléia, e disseram: 'Senhor, gostaríamos de ver Jesus.'” Tendo subido a Jerusalém naquele ano, para a festa da Páscoa, que seria a sua última, Jesus já era bastante conhecido pelas histórias que circulavam a respeito dele e muitas pessoas tinham interesse em conhecê-lo, o que causava grande incômodo e desespero para os chefes dos fariseus, que não podiam impedir isso. É possível imaginar o rumor que circulou na cidade quando, após a prece de Jesus ao Pai, este respondeu sob a forma de uma “voz de trovão”. E Jesus ainda completou: a voz que ouvistes é o julgamento deste mundo! Sem dúvida, a fama que Jesus alcançara colocava em risco o poder e a autoridade dos fariseus, como mestres e líderes religiosos, levando-os a convocarem às pressas uma reunião com o objetivo de deliberarem o que fazer diante disso.
Causa um certo espanto a expressão contida no texto de João (12, 31), onde lemos uma frase bem enigmática, que está assim traduzida: “agora o chefe deste mundo vai ser expulso”. O 'chefe' deste mundo? Quem seria este? Se observarmos o texto grego original de João, lá consta o seguinte: 'ó arkhon tou kosmos', onde arkhon significava, para os gregos, o arconte, ou seja, um magistrado, um tirano, um déspota. Provavelmente, João queria se referir aos chefes religiosos do povo, que tramavam a morte de Jesus na ocasião. Jesus sabia das maquinações que eram tramadas contra ele exatamente por aqueles a quem competia mostrar ao povo o caminho da verdadeira fé no Deus da promessa, no entanto, utilizavam esse poder em seu próprio proveito. E prossegue no vers. 32: “e Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a Mim.” João conclui: ele estava se referindo ao modo como deveria morrer. E eu penso que podemos concluir mais além: literalmente, ele estava profetizando que a Sua cruz passaria a ser o símbolo maior da nova lei, que seria impressa nos corações dos fiéis, e que a Sua cruz estaria presente em todos os cantos do mundo.
Prezados amigos, no próximo domingo, iniciaremos a Semana Santa e as comemorações da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. As leituras deste domingo nos colocam no limiar dessas singulares comemorações que, embora celebradas todos os anos, nunca são repetidas. Ou pelo menos, nós não podemos nunca pensar que se trata de mera repetição. A mensagem de Cristo renova, a cada vez, a promessa divina feita no passado aos patriarcas realizada plenamente por Ele e a cada vez nos desafia, como Seus verdadeiros seguidores, a imitá-Lo na fidelidade e na obediência ao plano de Deus para cada um de nós. Na celebração das festas pascais, que se avizinham, aproveitemos para reavivar nos nossos corações a promessa que Cristo veio escrever no mundo com a sua Cruz e que foi impressa em cada um de nós através do nosso batismo.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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