COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE – 26.05.2024
Caros Confrades,
Celebramos, neste último domingo de maio, a festa litúrgica da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático do tempo pascal. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum até a festa de Cristo Rei, quando se encerra o ano litúrgico. A verdade de fé sobre a Santíssima Trindade ocupa o ponto central de toda a fé cristã, ponto de convergência de todas as demais verdades teologais. Esse conceito de Deus Uno e Trino não havia no Antigo Testamento, tendo sido revelado por Jesus, nas suas pregações. É a imagem do Deus do Novo Testamento, que os antigos não conheceram. Por isso, esta solenidade se coloca no ponto final da catequese litúrgica anual, que tem início no advento, prossegue com a paixão-ressurreição, depois, ascensão e pentecostes, todos esses eventos anteriores fazem a corrente preparatória para o desfecho na celebração da Trindade.
Nos tempos atuais, existe uma resistência às verdades dogmáticas, isto é, aquelas que nunca mudam. Na verdade, este é “o grande mistério do cristianismo”, pois não há similar em nenhuma outra religião, a Divindade que é, ao mesmo tempo, una e trina. Algumas religiões antigas (Egito, Índia) apresentam trilogias de deuses, ou seja, grupos de três deuses, mas em nenhuma delas existe a trindade-unidade, a divindade ao mesmo tempo trina e una, três pessoas em um só Deus, essa figura só existe no cristianismo. E lembrando-nos de que a palavra mistério significa, em grego, “revelação”, um conhecimento que não seria alcançado apenas com os recursos da razão humana e que só é possível de obter se alguém revelar. Pois esta verdade da nossa fé somente veio a ser conhecida no Novo Testamento, através da revelação de Cristo. Por várias vezes ele explicou aos discípulos que Ele e o Pai são um só e que, depois dele, virá o Paráclito, o consolador, o mentor que vem confirmar e esclarecer todas as verdades ensinadas, para que não pairem dúvidas sobre elas. Através do Espírito, Jesus prometeu permanecer conosco todos os dias, até o fim do mundo. (Mt 28, 20). Na antiga Torah dos hebreus, não se conhecia ainda a Trindade, pois não havia sido revelada. Para os hebreus, havia apenas Javeh, o Deus criador.
Na primeira leitura deste domingo, retirada do livro do Deuteronômio (4, 32-40), lemos o discurso de Moisés ao povo hebreu, ensinando: “ grava-o em teu coração, que o Senhor é o Deus lá em cima do céu e cá embaixo na terra, e que não há outro além dele.” (Dt 4, 39) Moisés e os patriarcas do Antigo Testamento não conheceram a Trindade. Para eles, havia somente Javeh, que fez uma aliança com Abraão e se mostrou fiel sempre com grandes sinais e prodígios. Mas Javeh, esse Deus onipotente, cujo nome os hebreus não pronunciavam com receio de invocá-lo em vão e provocar a sua ira, tinha a voz igual ao trovão e era ciumento e vingativo com os deslizes do seu povo. O Senhor dos exércitos (em hebraico transliterado para o latim: Deus sabaoth, como antigamente se cantava no Sanctus), era terrível e mais poderoso do que uma tropa treinada para o combate, implacável, invencível e inevitável, essa era a imagem que dele tinham os hebreus. Então, veio Jesus e disse: vocês estão enganados, vocês estão transferindo para Deus a imagem dos seus reis insensíveis e prepotentes. O Pai não é assim, o Pai é amor. Isso foi uma reviravolta tão enorme e inesperada na crença dos hebreus, que eles nunca conseguiram assimilar e compreender. Jesus desenhou para eles uma imagem de Deus totalmente diferente daquela da tradição recebida por Moisés, os hebreus não conseguiram absorver isso, tamanho foi o choque de ideias e não acreditaram. Viram e não creram.
A primeira manifestação da Trindade, de acordo com a Escritura, ocorreu no batismo de Jesus no Jordão, quando ouviu-se a voz do Pai e o Espírito Santo se tornou visível em forma de pomba. Evidentemente, naquela hora, ninguém entendeu do que se tratava. Foi no dia a dia da sua vida de pregador que Cristo aos poucos foi ensinando aos apóstolos esta novidade. Essa foi a lição mais difícil de todas que Jesus ensinou a eles, não lhes entrava na cabeça pouco afeita a raciocínios profundos. Somente Paulo, com a sua cultura filosófica grega, foi capaz de melhor compreender essa doutrina e explicá-la nas suas cartas. Na segunda leitura de hoje, lemos a explicação que Paulo fez aos cristãos de Roma (Rm 8, 14-17): “Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. … E, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo.” E na primeira carta aos cristãos de Corinto, ele dá essa mesma lição, com outras palavras (1Cor 12, 3): “Portanto, vos quero fazer compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus diz: Jesus é anátema, e ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo.” Com palavras simples e excelente didática, Paulo foi aos poucos transmitindo aos cristãos das diversas comunidades essa verdade fundamental, que chegou até ele por revelação de Cristo, na sua conversão, diretamente com certeza, pois os outros apóstolos não saberiam repassar-lhe tão elevado conhecimento. E as cartas de Paulo foram fundamentais para a formulação da verdade teológica da Santíssima Trindade, ainda nos primeiros séculos do cristianismo, época em que havia muitas divergências e falsos entendimentos doutrinários.
O esclarecimento da doutrina da Trindade historicamente se deu na discussão sobre o arianismo, no século IV d.C. Destacou-se nesta disputa o Bispo de Alexandria, Santo Atanásio, considerado o autor de um poema-declaração de fé, no qual elenca as principais verdades do cristianismo, proclamando contra Ario e seus seguidores a identidade divina das três pessoas trinitárias. Seu ensinamento consistente e bem definido serviu de fundamento para a elaboração do “símbolo dos Apóstolos”, o Credo, que ainda hoje é recitado nas missas, e que foi oficialmente aprovado no Concílio de Niceia, em 325 d.C. O Pai criou todas as coisas, mas o Filho não foi criado e sim gerado. Essa distinção conceitual é importante porque indica que há uma diferença entre as coisas criadas (que não são iguais ao criador) e o Filho gerado, que é igual ao Pai. E o Espírito procede do Pai e do Filho, sendo também igual a ambos, e foi Ele quem falou pelos profetas, mesmo que esses não soubessem disso e mesmo que o povo hebreu nunca tenha percebido isso. As formulações precisas e coerentes de Santo Atanásio fazem dele uma figura venerável em todas as tradições cristãs ortodoxas e romana, sendo ele considerado o pai da ortodoxia.
Então, nós tomamos conhecimento desse mistério trinitário pela pregação de Cristo. A revelação disso é uma liberalidade de Deus ao ter aberto seu cofre de segredos para nós, através dos ensinamentos de Cristo. E a compreensão dessa verdade só se tornou possível por meio da ação do Espírito, que inspira a Igreja e que habita em nós, que o recebemos pela transmissão outorgada aos apóstolos por Cristo. No evangelho de Mateus, lido hoje (28, 16-20), lemos a última recomendação-determinação de Jesus, antes de retornar definitivamente para o seio do Pai: “'Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” Foi na sequência desse mandato que a fé cristã chegou até nós, que agora podemos estar refletindo e acreditando nesses sábios ensinamentos. No início da vida pública de Jesus, ao ser batizado no Jordão, revelou-se pela primeira vez a Trindade divina. E agora, na sua despedida, ele novamente faz presente a Trindade, através da ordem batismal em nome das três pessoas divinas. A Trindade percorre, desse modo, toda a missão salvífica de Cristo, formando a linha mestra de toda sua catequese, e é por isso que a verdade de fé da Trindade Santa é a verdade central e fundamental do cristianismo.
Meus amigos, reflitamos: um Deus em três pessoas, sendo cada pessoa um Deus inteiro, mas sem perder a unidade. Na nossa experiência corporal, jamais essa realidade poderia ser alcançada somente com as nossas potências racionais. Os discípulos só entenderam isso depois de Pentecostes, quando o Espírito veio confirmar todos os ensinamentos de Cristo e os transformou em doutores. O apóstolo Paulo começou a desvendar esse mistério nas suas cartas, ao passo que a necessidade catequética exigia dele a busca de palavras adequadas para explicá-la de forma simples. A teologia somente veio a consolidar essa verdade muitos anos mais tarde, no Concílio de Niceia (século IV). Atualmente, os teólogos simplificam a exposição dessa doutrina, dizendo que a Palavra (Verbo) de Deus é tão poderosa que se transforma em outra pessoa divina. E o amor do Pai pelo Verbo é tão enorme que se torna outra pessoa divina, o Paráclito (assistente, advogado). Três pessoas, mas um só Deus.
Tenhamos sempre em mente essa verdade ao nos persignarmos, para que esse não seja apenas um ato mecânico e automático, mas uma demonstração da fé de que a Santíssima Trindade está presente em nós.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos