sábado, 22 de janeiro de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - 23.01.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 23.01.2022 – AUTOPROCLAMAÇÃO


Caros Confrades,


A liturgia deste 3º domingo comum traz um dos textos mais significativos para o reconhecimento de Jesus Cristo como Filho de Deus. Em sua costumeira modéstia e sempre falando por metáforas ou parábolas, raras vezes Jesus se referiu diretamente à sua pessoa como sendo aquele que as escrituras anunciaram. Ao concluir a leitura do texto de Isaías (61, 1), conforme o testemunho do evangelista Lucas, ele complementou: hoje se cumpriu isso que acabastes de ouvir. Mas ele estava na sinagoga de Nazaré, sua cidade natal, e ali todos o conheciam, assim como conheciam seus pais e familiares, então ninguém levou a sério o que ele falou e a sua autoproclamação não surtiu efeito, apesar de outras evidências que ele já apresentara.


Mas a primeira leitura, extraída do livro de Neemias (8, 2-10), contém também um texto interessante que relata uma atividade do sacerdote e escriba Esdras lendo e explicando ao povo a Lei (Torah), em linguagem acessível, de modo que todos ficaram atentos desde o amanhecer até o meio dia e alguns até se emocionaram, chegando às lágrimas. Observemos o contexto histórico, para compreender melhor o motivo de tanta emoção da parte do povo: Neemias foi o governante que trabalhou na reconstrução das muralhas de Jerusalém, após o retorno dos hebreus do exílio da Babilônia. Naquela época, poder ouvir a leitura da Torah em Jerusalém era, para os hebreus recém-retornados do exílio, a realização de um sonho que eles acalentaram durante muito tempo e esperaram muito ansiosamente por ele. Para eles, era uma experiência totalmente nova, porque haviam nascido no exílio. Então, voltar a Jerusalém já era, por si só, uma emoção muito forte e poder celebrar seus cerimoniais na cidade reconstruída era algo ainda mais emocionante. Daí porque tanto o governador Neemias quanto o sacerdote Esdras falavam ao povo: “não fiqueis tristes nem choreis”, porque todo o povo chorava ao ouvir a leitura. E o governador instruiu o povo a banquetear-se naquele dia, porque aquela era uma ocasião abençoada: “'Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor'.” (8, 10) Um detalhe curioso que chama a atenção nesse texto é que, costumeiramente, os hebreus realizavam suas cerimônias religiosas ao entardecer (por do sol), mas neste caso específico, o ato se deu na parte da manhã (do amanhecer até o meio dia), sugerindo que se tratava de uma celebração não rotineira, em horário não habitual, para comemorar a reconstrução do muro. Na sequência desse texto, diz o escritor sagrado que o povo ergueu cabanas na praça, de acordo com a tradição mais antiga dos hebreus, e habitaram nelas por sete dias, dando origem a uma festa ainda hoje celebrada (festa dos tabernáculos), uma das três mais importantes da religião judaica.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (ICor 12, 12-30), o Apóstolo apresenta outra versão da sua doutrina sobre os modos de agir do Espírito Santo, desta vez através da imagem do corpo na sua relação com os membros (o corpo místico). “Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo. ” (12,27) A dialética do corpo e dos membros aponta para a diversidade dos dons com os quais são dotadas as pessoas da comunidade, o que as torna diferentes umas das outras, no entanto, essas diferenças não isolam as pessoas, mas as complementam. E cada uma delas vai agir de acordo com o que o Espírito a inspira: “De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito. ” (12, 13) O texto evidencia o grande problema que Paulo enfrentava naquela ocasião, a conhecida questão dos judaizantes. A isso se juntava a questão econômica, porque havia ricos e pobres entre os convertidos. Então, ele explica que, assim como há diferenças de etnias ou de classes sociais na sociedade civil, também na comunidade cristã nem todos são iguais, pois há diferentes ministérios: “em primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois, outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção, dom de línguas.” (12, 28) Essas diferenças, porém, não devem causar dissensões dentro da comunidade, porque todas elas são formas variadas de ação do mesmo Espírito. E assim como, no corpo, não há membros mais honrosos ou decentes do que outros, pois todos detém igual importância e honorabilidade, assim também entre os fiéis não deve haver inveja, porque uns têm o dom da profecia, enquanto outros tem o dom para o governo e a direção. Com efeito, não poderiam ser todos apóstolos, todos profetas, todos dirigentes, todos intérpretes, então essa diversidade é que produz a riqueza e a complementaridade recíproca, do mesmo modo como os órgãos corporais formam sistemas e se harmonizam. Podemos ver, nessa visão pedagógica paulina, que ele antecipou em vários séculos a teoria dos sistemas, que só surgiu cientificamente no século XIX. Nessa visão teológica de Paulo, o Espírito é o ponto de referência comum, para o qual todos os “sistemas” particulares convergem.


O texto litúrgico escolhido para a leitura do evangelho é da autoria de Lucas e contém duas notas bastante significativas para a nossa informação. Primeiro, no prólogo, ele afirma que “muitas pessoas” já escreveram sobre os acontecimentos que se realizaram entre nós, relatados por aqueles que foram testemunhas oculares, por isso também ele, Lucas, após meditar bastante, decidiu escrever a sua versão. Esse comentário traz, nas entrelinhas, a informação de que havia numerosos escritos acerca de Jesus, de seus ensinamentos, de seus feitos miraculosos, os quais teriam sido resumidos ou compilados nos evangelhos oficiais que hoje temos. Não foram apenas os evangelistas a escrever. Lucas diz que resolveu escrever “de modo ordenado”, deixando-nos entender que os outros textos eram dispersos, ou talvez eram textos diversos contendo as mais diferentes histórias e testemunhos. Daí dizer-se que os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são “sinóticos”, ou seja, reuniões de textos diversos reescritos e adaptados por eles. Cada evangelista utilizou esses textos e acrescentou suas próprias notas ou comentários. No caso de Lucas, sabe-se que ele incluiu muitas informações colhidas de sua convivência com Maria, que não haviam sido escritas por ninguém, mas ele as tinha em primeira mão.


Em seguida, o texto da leitura dá um salto para o capítulo 4, relatando a ida de Jesus à sinagoga de sua cidade natal, Nazaré, num dia de sábado, para o culto regular. A essas alturas, Jesus já era famoso, o milagre das bodas de Caná havia sido bastante comentado e Jesus já havia pregado nas sinagoras de outras cidades da Galileia, causando admiração. Mas ali estava ele em Nazaré, sua terra natal, onde as pessoas conheciam a sua origem, seus pais e familiares, todos sabiam que ele não era um escriba ou um levita, muito menos um mestre da Lei. Mas a sua fama já era conhecida e ele se apresentou para fazer a leitura, provavelmente, ele pediu o livro de Isaías, pois sabemos, através de outras passagens, que esse era o Profeta preferido dele. Jesus escolheu deliberadamente o cap. 61, onde diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres.” Jesus conhecia o texto, ele não abriu casualmente nessa passagem, ele fez de propósito, ele queria dizer aos presentes quem ele realmente era. Diz o escritor sagrado que, após ter lido, ele se sentou e todos ficaram olhando para ele, esperando que ele dissesse algo. Então, ele se declarou abertamente: o Profeta estava falando sobre mim.


O texto litúrgico pára por aqui, mas o discurso de Jesus não se encerrou com isso. Aquelas pessoas tinham ouvido falar dos milagres que ele havia feito em outras cidades e, certamente, esperavam que ele fizesse ali uma “demonstração”, um milagrezinho, quem sabe, até pediram isso, porque as palavras posteriores de Jesus foram muito ríspidas com os presentes, a ponto de eles o expulsarem da cidade e o levarem até uma montanha, de onde iriam precipitá-lo, de tão irritados que ficaram. Foi nessa ocasião que Jesus disse: nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Aqueles conterrâneos de Jesus, certamente, o provocaram, talvez prevalecendo-se do fato de serem “velhos conhecidos”, tentando receber dele um tratamento privilegiado. Porém, ele quis demonstrar que a sua missão se dirigia a todos sem distinção e, sobretudo, aos mais necessitados, tal como predissera o Profeta. Se trouxermos esse fato para os dias de hoje, podemos observar que algumas pessoas tentam se utilizar da religião para lograr proveito pessoal, promoção social, ações interesseiras. Jesus está ensinando que a fé não se presta para isso, está acima de tudo isso. Não é pelo número de missas assistidas ou pela quantidade de terços rezados que alguém deverá se considerar mais merecedor do que outrem, que não frequenta a missa nem reza o terço. Deus valida o que vai no íntimo de cada um, não aquilo que transparece externamente, muitas vezes sem a necessária convicção.


Que o Divino Mestre nos afaste de praticar uma religião de fachada e nos inspire a prática da fé verdadeira e coerente.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 8 de janeiro de 2022

COMENTARIO LITURGICO - BATISMO DO SENHOR - 09.01.2022

 

COMENTÁRIO LITURGICO – SOLENIDADE DO BATISMO DO SENHOR – 09.01.2022


Caros amigos,


O calendário litúrgico celebra hoje a festa do Batismo do Senhor. Esta cerimônia, realizada no rio Jordão, representa o início da vida pública e missionária de Jesus. Igual a todos os bons judeus, Jesus sempre cumpriu os rituais próprios do judaísmo: comparecimento regular à sinagoga no sábado, jejuns, romarias para a festa da páscoa, festa dos tabernáculos, total observância da lei mosaica. O batismo não fazia parte, propriamente, da Lei, mas passou a ser um ritual de transição entre a antiga lei e a lei nova, através da pregação de João Batista, o último profeta do Antigo Testamento. João conclamava todos os judeus à metanóia (mudança de pensamento – conversão) e ao arrependimento, de modo que o símbolo da adesão a este movimento era o fato de alguém apresentar-se para receber o batismo. Sabemos que, na verdade, Jesus não precisava ser batizado, pois o batismo se destina ao perdão dos pecados, mas Ele quis cumprir todo o protocolo e foi nessa ocasião que, pela primeira vez, ocorreu a manifestação da Trindade divina.


O tema do batismo sempre despertou severas polêmicas entre a Igreja Católica e as demais igrejas cristãs, por diversas razões históricas, que todos conhecemos. Penso que as querelas mais significativas se concentram em dois pontos: 1. o batismo de crianças recém-nascidas, fato que não ocorria no início do cristianismo, tendo sido introduzida como prática muito tempo depois; 2. o ritual do batismo por mera aspersão (derramamento de pouca água na cabeça do batizando) e não por imersão (mergulho na água). Lutero, por exemplo, discordava do batismo por aspersão, insistindo na validade apenas do batismo por imersão, tal qual era realizado por João.

Com efeito, o batismo operado por João Batista era feito por imersão no rio Jordão. Mas isso foi uma novidade trazida por João, porque os rituais judaicos prescreviam diversas formas de purificação com água, sem necessidade de mergulhar nela. Então, a questão a ser debatida é saber se a imersão é a única forma válida de realizar o batismo.


Para melhor esclarecimento do tema, iniciemos com uma análise gramatical do vocábulo “batizar”, derivado do verbo grego BAPTIZÔ, que significa mergulhar, submergir, mas também significa lavar. Por exemplo, na antiguidade, havia uma espécie de pena de morte, que consistia em mergulhar um condenado até ele morrer sem fôlego. Essa ação era denominada “batismo” e tinha, portanto, o sentido de imersão. Mas em Lucas (11, 38), no episódio em que os fariseus se admiraram porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer, a frase latina é “quare non baptizatus esset” e a frase grega é “ou proton ebaptiste” (sem que antes se batizassem), uso gramatical que indica o sentido do verbo “baptizô” como “lavar”. Para lavar as mãos, às vezes, as mergulhamos na água, mas muitas vezes apenas derramamos água sobre elas e assim o verbo “baptizô” não tem como significado único de imergir. E podemos ainda levar em consideração o aspecto da praticidade. Como batizar por imersão uma pessoa que esteja enferma, sem correr o risco de piorar sua condição de saúde? E mesmo no caso de pessoas sadias, o ritual seria extremamente incômodo pela necessidade de ter de realizar o batismo nos rios, lagoas, açudes, etc., ou em tanques de água preparados dentro dos templos, o que (a meu ver) desvirtua o sentido da imersão de acordo com o batismo de Jesus, que ocorreu numa fonte de água natural. Se é para seguir o ritual, então, que se o siga por completo.


Em relação ao aspecto doutrinário, o batismo por imersão era a prática dominante no Antigo Testamento e o próprio Jesus se submeteu a ela. Contudo, no Novo Testamento, há diversos relatos sobre o batismo que sugerem uma forma diferente da imersão, como por exemplo, em Atos 16, 33, quando Paulo batizou pessoas na prisão. Certamente ali não havia um local com água para imersão. O próprio batismo de Paulo por Ananias (Atos 9, 18), realizado na casa de Judas, não deve ter sido por imersão. Do mesmo modo, o episódio ocorrido após Pentecostes (Atos 2, 37-41), quando cerca de 3.000 pessoas foram batizadas após a pregação de Pedro, não deve ter sido por imersão. De qualquer modo, as duas formas (imersão e aspersão) eram conhecidas desde os tempos cristãos primitivos e ambas eram utilizadas circunstancialmente. Mas a oficialização do batismo infantil e por aspersão ocorreu após as disputas com Lutero, no século XVI. A Igreja adotou a forma de aspersão e as razões teológicas para justificar isso são duas fundamentais: 1. o fato de que a pessoa deve ser purificada do pecado (no caso da criança, o pecado original) o quanto antes possível, ou seja, logo após nascer, sem esperar a idade adulta; 2. embora a criança de pouca idade não saiba o que está ocorrendo, a Igreja age como mãe amorosa e faz isso por ser o melhor para o pequeno fiel, assim como toda mãe só quer o bem dos filhos, ficando com os pais e padrinhos a responsabilidade de ensinar a criança e conscientizá-la, quando tiver entendimento.


Devemos ainda considerar a hipótese da carência da água em quantidade suficiente para a imersão, como ocorre, por exemplo, em certas localidades nordestinas e em outros locais do mundo, onde a água é um bem escasso. Além disso, se as duas formas de realizar o ritual foram sempre aceitas na antiguidade (imersão ou aspersão), o simples fato de que o batismo de Jesus foi por imersão não deve ser adotado para afirmar como modo exclusivo, considerando-se inválida a outra forma. Além do mais, eu diria que o modo de realizar o batismo, se por imersão ou por aspersão, não é isso que realmente importa, e sim a fé que deve motivar o fiel a receber o batismo. No caso de crianças pequenas, a fé é dos adultos que as levam a batizar e que se comprometem a catequizar o batizado na mesma fé que professam.


Atendo-nos agora às leituras litúrgicas, o evangelho de Lucas (3, 15-22) relata o batismo de Jesus por João, no rio Jordão. Evidentemente, Jesus não precisava ser batizado e o próprio João se admirou ao ver a chegada de Jesus. Na verdade, Jesus pediu para ser batizado por João, diante da relutância deste. Com este ato, Jesus estava ensinando o valor do batismo e consagrando a sua importância para o cristão. Podemos concluir que Jesus batizou-se não para converter-se e purificar-se, porque já era totalmente puro, mas para purificar as águas do Jordão, e nestas, simbolicamente, abençoar todas as águas da terra, para conferir a elas o poder de nos purificar pelo batismo na fé da sua doutrina.


Além disso, o batismo de Jesus foi o primeiro momento em que se manifestou publicamente a Trindade divina: o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba. E do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho amado… (Lc 3, 21) isto é, o início da missão pública de Jesus foi oficialmente homologado pelas três pessoas divinas. Obviamente, naquele momento, as pessoas que presenciaram o fato não compreenderam o que havia acontecido, mas posteriormente, após a ressurreição de Jesus, quando as comunidades dos primeiros fiéis fizeram a rememoração dos acontecimentos da Sua vida, de onde provêm os textos primitivos que deram origem aos evangelhos, puderam compreender o alcance dessa sublime manifestação trinitária.


Uma curiosidade que releva tratar aqui é que, do ponto de vista da fé, a data do batismo do cristão deveria ser comemorada assim como se comemoram as datas natalícias, porque essa data representa o nascimento para a comunidade eclesial. Com certeza, todos se recordam de que, desde quando recebíamos a batina no seminário, nós não comemorávamos mais o dia do aniversário, mas o dia do onomástico, isto é, o dia do santo padroeiro do seu nome, numa clara referência a um novo nascimento, que ocorria com a vestição religiosa. Essa mesma ideia bem que poderia ser adotada em relação à data do batismo. Porém, o que mais comumente ocorre é que a maioria dos cristãos não sabe ou não se recorda o dia do seu batismo, como se não atribuísse importância a essa data. As Paróquias mesmo não estimulam os fiéis a essa lembrança, no que fariam muito bem se assim procedessem.


Para finalizar, gostaria de ponderar que o batismo não deve ser um fato longínquo e esquecido na nossa caminhada existencial, mas um fato a ser testemunhado diuturnamente, na nossa vivência de cristãos, seja na família, seja no trabalho, nas relações familiares, nas amizades, na vida social em geral, através do nosso comportamento de pessoas engajadas e comprometidas com a fé assumida no batismo. Que o divino Espírito nos assista constantemente no exercício dessa missão.


Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos

sábado, 1 de janeiro de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 02.01.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 02.01.2022


Caros Confrades:


Nesta passagem de ano, as festividades litúrgicas ficaram acumuladas. Na sexta feira, 31/12, foi a festa da Sagrada Família; no sábado, dia 01/01, a solenidade de Maria Mãe de Deus e já neste domingo, 02/01, celebra-se a festa litúrgica da Epifania do Senhor, configurando-se dessarte um final de ano bem atípico, sob a ótica da liturgia. Vamos concentrar este comentário no tema da “epifania”, palavra grega que significa “manifestação” e que comemora a visita que a família de Nazaré recebeu pelos Magos vindos do Oriente. A epifania designa também a universalidade da salvação trazida por Cristo, representada na presença dos dignitários vindos de terras distantes, portanto, de fora do território judaico. O texto bíblico não informa a cidade de onde eles vieram, mas apenas que vieram de terras longínquas no oriente, guiados pela estrela. Também não afirma que eram reis, sendo essa designação creditada a tradições muito antigas. Alguns estudos associam a figura da estrela com o cometa de Halley ou talvez um outro astro errante no espaço sideral, contudo não há conclusões definitivas. Este fato é relatado apenas pelo evangelista Mateus, por isso há quem afirme que não é um acontecimento real, mas trata-se de uma história composta pelo evangelista, com o objetivo de enfatizar a profecia de Miqueias e demonstrar a origem familiar de Cristo no clã do rei Davi. Todas, porém, são opiniões que entretem as discussões dos especialistas. Tratemos sobre os Magos.


O evangelho de Mateus fala em 'magos do Oriente', mas também não se deve entender esta palavra no sentido que ela tem hoje, como se eles fossem pessoas dedicadas à magia. Conforme registros históricos muito antigos atribuídos a Heródoto, eram chamados de Magos os sacerdotes eruditos de uma religião que teria existido na região da Mesopotâmia, região terrestre que hoje corresponde ao Irã ou Iraque. Essa religião era, na verdade, uma forma arcaica da ciência astronômica e esses sacerdotes eram pessoas que estudavam os livros sagrados e costumavam observar os astros no céu, ou seja, eram uma espécie de antigos astrônomos. Com isso se explica o fato de que notaram uma “estrela” diferente e tentaram interpretá-la, com o conhecimento que eles tinham de antigas cartas astrais. Eles eram provavelmente sacerdotes do Zoroastrismo, religião oriental fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e originária da Mesopotâmia, terra de Abraão. Bem, o modo como este fato aconteceu, assim como as motivações envolvidas, fazem parte do universo das polêmicas históricas, sendo mais amparado por antigas tradições do que por documentos escritos. Essa é a abordagem histórica, geográfica, cultural.


Sob o aspecto litúrgico, a festa da Epifania do Senhor, ou seja, a visita dos Magos, é também a data em que as igrejas católicas ortodoxas orientais celebram do Natal do Senhor, pois lá não se comemora o Natal em 25 de dezembro, como na Igreja católica romana. Aliás, este foi um dos motivos que levou ao cisma das igrejas cristãs, em 1054, porque não houve acordo acerca desse e de outros pontos de discussão. Os católicos orientais acusam os católicos europeus de terem cedido ao poder do imperador romano, que estabeleceu o Natal nesta data e forçou autoritariamente os bispos ocidentais a aceitá-la. Com isso, nós concluímos que a festa da Epifania é mais antiga do que a celebração do Natal, como nós temos na Igreja romana; também concluímos que as Igrejas católicas orientais celebram em conjunto as duas festas: o Natal e a Epifania, porque na verdade, elas são uma festa só.


Com efeito, o termo grego “epiphania” é o substantivo derivado do verbo “epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se. A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu efetivamente no Natal. Ao separar as datas, e portanto, a comemoração em duas festas, a Igreja romana celebra dois Natais: um em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo e outro, nesta data, o Natal – manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na pessoa dos “magos” orientais. O dirigente romano em Jerusalém, Herodes, tinha no palácio um conselho de sacerdotes, adivinhos, magos, que além de chefes religiosos, eram também os cientistas daquele tempo, os que sabiam ler e estudavam os poucos documentos conhecidos. Foi a estes que Herodes recorreu para tentar entender aquela notícia que os magos orientais traziam, acerca do nascimento do rei dos Judeus.


A liturgia da Epifania procura integrar os textos do Antigo e do Novo testamentos, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No livro de Isaías (deutero-Isaías), cap. 60, 1, o autor conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6): “será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor. ” Por certo, a viagem dos “magos” era acompanhada de uma caravana de camelos e dromedários, pois pela liderança que eles deviam ter e por tratar-se de uma viagem de longa distância, deviam trazer grande séquito. Com grande certeza, eles não viajavam sozinhos, apenas os três cujos nomes são conhecidos.


No evangelho de Mateus (2, 2), se concretiza o que foi dito pelo profeta Isaías: “eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.' ” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao cantar: “Os reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de trazer-lhe oferendas e tributos. ” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais essas referências se reproduzem. O evangelista, que conhecia, como bom judeu, a Lei e os Profetas, trata de integrar as profecias no seu texto, como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época em que muitos chefes e sacerdotes judeus teimavam e duvidavam em admitir isso. Embora os textos escritos e demais documentos históricos sejam escassos, verificamos que esta é a fé que se construiu desde os primeiros tempos do cristianismo, de modo que a sua credibilidade está no fato de ser uma tradição muitíssimo antiga.


A aliança original de Javé foi com os judeus, mas estes não reconheceram em Jesus o Messias que veio confirmar a promessa, então diante da descrença deles, o evangelho foi pregado aos gentios, ou seja, aos pagãos, àqueles que não descendem dos antigos patriarcas. A figura dos “magos” colocada nesse contexto do nascimento de Jesus faz parte do propósito do evangelho de mostrá-Lo como o Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. Foi isso que Jesus ensinou aos discípulos, em diversas ocasiões, ao observar a indiferença e mesmo a hostilidade daqueles que deveriam recebê-lo como Salvador e por isso mandou que os discípulos divulgassem a sua mensagem aos outros povos, porque a aliança proposta por Javé não se limitava a um punhado de israelitas. Mateus quer mostrar que, desde o seu nascimento, Jesus atraiu para si também os povos pagãos, representados pelos magos.


Esta universalidade da salvação trazida por Cristo é o tema da carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o anúncio do evangelho aos gentios: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, Constantinopla, só bastante tempo depois, o cristianismo finalmente chegou a Roma e de lá espalhou-se pela Europa, vindo depois para a América, onde atualmente estão localizados os católicos em maior profusão no mundo todo. Sem deixar de mencionar o grande número de fiéis das diversas igrejas cristãs não católicas e ainda daqueles homens e mulheres de boa vontade que, mesmo sem professarem abertamente a fé cristã, no entanto, realizam em suas vidas o ensinamento de Cristo contido nos evangelhos. O Papa Francisco já proclamou, em diversas ocasiões, que também os ateus que seguem retamente a sua consciência estão no caminho da salvação, porque ao praticarem o autêntico humanismo, estão em sintonia com o pensamento cristão.


Curioso notar que nem Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”, deixando-nos a cogitar se eles não tinham conhecimento desses fatos ou se não consideraram suficientemente importantes para incluí-los nos seus textos. O mais provável, conforme explicam os exegetas, é que esta fonte era conhecida apenas por Mateus e provavelmente não chegou ao conhecimento dos outros dois evangelistas. Uma prova disso seria que os evangelhos de Lucas e Marcos foram escritos na língua grega, portanto, na região das colônias gregas do império romano, enquanto o evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico, a mesma língua falada por Jesus, e só depois traduzido para o grego. Isso justificaria o fato de que, no local onde Marcos e Lucas moravam, essa tradição dos magos não era conhecida e, por isso, não foi mencionada por eles.


Mas independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que nos interessa é destacar na epifania o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. A nossa fé é o maior testemunho dessa universalidade, pois é graças a isso que chegou até nós a mensagem da salvação.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos


PS: Sugiro aos Confrades que busquem no Youtube um filme intitulado “O quarto sábio”, que conta de um modo inusitado outra história referente a esses estudiosos, cognominados de Magos.

sábado, 25 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - NATAL DO SENHOR - 26.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – NATAL DO SENHOR – A ENCARNAÇÃO – 25.12.2021


Caros Confrades,


Então é novamente Natal. É curioso como essa festividade se repete a cada ano, porém sempre se mostra como algo novo, nenhum Natal é idêntico aos anteriores, tem-se aquela sensação de estar celebrando, a cada vez, uma festa inédita. Em nosso subconsciente, o Natal convida à renovação e os nossos pensamentos buscam se reinventar, como se a vida fosse de fato recomeçar. O Natal tem essa força extraordinária de mexer com a nossa acomodação e nos desafiar a “endireitar os caminhos e limpar as veredas de nossas vidas”, como disse o profeta. O Natal nos convida a refletir sobre o admirável mistério da encarnação: Deus humanizou-se, fez-se carne, isto é, tornou-se gente como nós. Os profetas diziam que isso aconteceria “na plenitude dos tempos” e isso significa que nós vivemos nesse tempo de plenitude, porque depois da encarnação de Cristo, a plena intervenção de Deus na história se tornou perene. Dali em diante, os tempos chegaram ao seu grau mais completo e dessa completude todos nós partilhamos. Talvez por isso o Natal sempre se apresente para nós como uma festa diferente.


As leituras litúrgicas contribuem para isso, trazendo fatos e reflexões para lá de inspirados, explicando com extrema clareza o fenômeno miraculoso da encarnação divina. Na primeira leitura, da Carta aos Hebreus, o seu autor, provavelmente um judeu convertido, procura demonstrar a continuidade da tradição hebraica em Jesus Cristo, com o objetivo de converter aqueles que, porventura, estivessem em dúvida sobre a sua messianidade. Ele inicia com uma afirmação taxativa e convincente: Jesus é a nova palavra, pela qual o Pai se comunica com a humanidade. Diz o texto: Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo. (Hb 1, 1-2). Isto é, a palavra de Deus transmitida através dos Profetas era uma forma de comunicação indireta com a humanidade. Mas nesses dias (os últimos, segundo ele, os tempos plenos), a Palavra de Deus foi transmitida diretamente por ele mesmo, sem intermediários. Agora o interlocutor não fala mais um discurso indireto: o Senhor disse..., ele agora fala na primeira pessoa: Eu vos digo... Não se trata mais do porta-voz, e sim do próprio mandante.


O texto não podia ser mais claro: Jesus fala com autoridade divina própria, não como um mensageiro, assim como foram os profetas. Mas, parece que ele não falou o discurso esperado pelos dirigentes do povo da aliança que, por isso, nele não acreditaram. Os chefes religiosos do povo hebreu, os sumos sacerdotes puseram Jesus em prova por diversas vezes, na tentativa de certificar-se da sua origem, tendo ele sempre repetido aquilo que estava nas escrituras, especialmente em Isaías. Apesar disso, muitos não creram nele. O autor da epístola aos Hebreus tenta, através de uma argumentação bem construída, mostrar que em Jesus se consumam as profecias e, na pessoa dele, temos o esplendor da glória do Pai e a expressão do seu ser (Hb 1, 3). A palavra de Deus, transmitida por Cristo, é assim a palavra autêntica, aliás, Cristo é a própria palavra e, como tal, sustenta o universo, perdoa os pecados, coloca-se acima dos anjos, pois a nenhum dos anjos Deus se referiu dizendo “tu és o meu filho, eu hoje de gerei”, somente para Cristo essa declaração foi ouvida.


Essa “teologia da palavra” está descrita, em sua forma mais perfeita, no prólogo do evangelho de João, que antigamente era lido no final de todas as missas, com o título de “último evangelho”. Tratando-se de um texto escrito já no final do primeiro século, tem-se uma perfeita síntese teológica do sentido do mistério da encarnação, reflexão que não aparece nos demais evangelhos, marcadamente descritivos. A leitura do texto de João demonstra o desenvolvimento da compreensão da doutrina de Cristo pelas primeiras comunidades, através das contribuições trazidas pelos “gentios” de cultura grega, sobretudo Paulo. Segundo os historiadores, João estava bastante idoso e tinha se estabelecido em Éfeso, onde era o líder da igreja local. Os seus seguidores fizeram-lhe diversos pedidos para que ele escrevesse o seu testemunho da vivência com Cristo, mas João havia se recusado a fazer isso antes. Porém, vendo se aproximar o fim dos seus dias, resolveu aceitar o desafio de escrever as suas memórias. Consta que não foi ele próprio o escritor, mas um secretário dele, a quem João teria ditado as palavras.


Antes de iniciar o trabalho de resgate de suas memórias, João e o escriba teriam feito uma semana de orações e jejum, preparando-se para a tarefa e pedindo a iluminação divina para que a composição dos fatos se desse com precisão e inteireza. Também há de se levar em conta que João, provavelmente, conhecia os demais evangelhos, os quais eram lidos nas catequeses das igrejas orientais, e ainda os escritos de Paulo. Acresça-se a isso o fato de que João foi testemunha ocular do que escreveu, diferente dos demais, que só ouviram falar. Por isso, o texto de João, além de ser mais elaborado, inclui diversas passagens de vida de Cristo, que não são relatadas nos demais textos.


João inicia assim (Jo 1, 1): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” Esta é a tradução oficial. No texto latino, temos: no princípio era o Verbo... no texto grego, temos: no princípio era o Lógos. Com o intuito de tornar o texto bíblico mais popular, sem perda do caráter teológico, a tradução oficial é a Palavra. Nesta pequena frase, João faz afirmações marcantes da doutrina teológica, que já se desenvolvera naquela época. De trás para frente, temos: a Palavra (o Verbo) é Deus, isto é, Cristo não é apenas um profeta, é mais do que um profeta, é o próprio Deus. A Palavra (o Verbo) estava com Deus, isto é, antes de se humanizar, a Palavra estava unida a Deus, a Palavra se fundia com Deus. Isso aconteceu desde o princípio, pois no princípio de tudo, a Palavra (o Verbo) já existia, isto é, a Palavra (o Verbo) não começou a existir apenas agora que se humanizou, mas já existia desde sempre. E no versículo 14, logo adiante, está a tradicional e conhecidíssima verdade: E a Palavra (o Verbo) se fez carne e habitou entre nós. E no versículo 11: a Palavra (o Verbo) veio para o que era seu, mas os seus não a reconheceram. Aqui é que entra a ligação direta do evangelho de João com a carta aos Hebreus: Jesus é a Palavra do Pai, não reconhecida pelos hebreus.


Todo esse hino sobre a Palavra tem seu ponto central na frase: “o Verbo se fez carne”. A Palavra de Deus veio habitar no mundo e se tornou um de nós. É interessante compreendermos a expressão grega, na qual o evangelho de João foi originalmente escrito. Diz assim: kai ó Lógos sarx egéneto. Só uma explicação rápida: Kai=preposição “e”; ó Lógos = o Verbo, a Palavra; Egéneto = forma passiva do verbo “gennaw” (gerar, produzir); Sarx é aqui o vocábulo chave. Traduz-se literalmente por “carne”, vindo daí o substantivo “encarnação”. Mas “carne” significa no grego bem mais do que este vocábulo da língua portuguesa. Em grego, existe a palavra “soma”, que significa “corpo”, porém, João preferiu usar a palavra “sarx” e isso tem um sentido teológico especial. Corpo é um nome mais genérico, que se aplica a inúmeros objetos, sendo sinônimo de matéria em geral. Todo ente material é corpóreo. Porém quando nos referimos a corpo vivo, colocamos carne em oposição aos ossos, portanto, num sentido bem especificado. Na língua grega, “sarx” significa o corpo inteiro feito de carne e osso, o corpo dos seres vivos, o corpo humano quando se refere às pessoas. Num sentido figurado, “sarx” significa “natureza humana”. Portanto, dizer que o Verbo tornou-se “sarx” quer dizer que a Palavra tornou-se gente, transformou-se em ser humano, encarnou-se, humanizou-se. Desse modo, quando a Bíblia se refere a “toda a carne” isso quer dizer todas as pessoas, as pessoas inteiras, não apenas os músculos, que constituem a parte carnal biologicamente falando. O Credo fala na “ressurreição da carne”, não é na ressurreição dos corpos. Pode parecer uma distinção insignificante ou meramente retórica, mas não é. A ressurreição da carne significa a ressurreição da pessoa inteira, porém, não da sua materialidade. Daí porque a teologia não aceita a doutrina da “reencarnação”, porque ela confunde os conceitos de “soma” (corpo) e “sarx” (carne). Por isso, reencarnar não é sinônimo de ressuscitar, porque reencarnação equivale a reunir-se novamente o corpo com o espírito e não é esse o sentido do mistério da encarnação. A expressão “o Verbo se fez carne” deve ser entendida como a Palavra assumiu a natureza humana, virou gente e não como se um espírito tivesse adquirido um corpo. Atentem para a profundidade dessa distinção. Jesus Cristo não foi um espírito que adquiriu um corpo e depois livrou-se dele, com a morte. A Palavra encarnou-se, ou seja, adquiriu a natureza humana e nunca mais a deixou. Jesus Cristo continua encarnado, mesmo não tendo mais materialidade corpórea. Ao adquirir a natureza humana associada à natureza divina, Jesus passou a ter dupla natureza de forma permanente e é por isso que Ele é nosso modelo perene de perfeição, aquele perfil que, um dia, nós alcançaremos, pela salvação que Ele nos conquistou.


Nesse espírito, quero renovar sinceros votos de Feliz Natal a todos.

Antonio Carlos

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - 19.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – PRIMEIRA TESTEMUNHA – 19.12.2021


Caros Confrades,


Aproxima-se o Natal e a liturgia deste quarto domingo do Advento nos lembra quem foi a primeira testemunha da iminente chegada do Salvador: foi Isabel, esposa de Zacarias, quem recebeu a primeira notícia da chegada do Messias, através da reação de menino João, em seu ventre. A liturgia comemora a visita de Maria à sua prima Isabel, que morava nas montanhas, aonde ela foi apressadamente a fim de dar-lhe assistência nas primeiras semanas após o nascimento de João. A gravidez de Maria, então incipiente, era segredo apenas do casal, mas “o menino exultou de alegria” nas entranhas de Isabel e ela foi inspirada pelo Espírito Santo para reconhecer e interpretar aquele fato.


Antes de dar prosseguir no tema da visita de Maria, eu gostaria de ressaltar aqui a espetacular previsão do profeta Miqueias, com um grau de acerto de cem por cento, sobre o local onde nasceria o Messias: Belém de Judá. Miqueias era natural também do reino de Judá, morador na cidade de Mirasti, próxima de Belém e era contemporâneo do profeta Isaías, tendo vivido por volta de 700 anos antes de Cristo. Ele é um dos chamados 'profetas menores', porque o seu livro tem apenas sete capítulos, contudo, foi Miqueias o único dos profetas a afirmar que Belém seria o berço terreno do Messias. Observemos como se pode perceber o dedo de Javé conduzindo as ações humanas na história, para a realização de suas promessas a Abraão. Quando Miqueias profetizou a chegada do Messias em Belém, foi cerca de 700 anos antes de José e Maria se casarem. E eles não moravam em Belém, e sim em Nazaré. São Tomás de Aquino afirmava que Deus age por “causas segundas”, isto é, não de modo direto, mas servindo-se dos acontecimentos. No caso, o agente da vontade de Javé foi o governador da Síria, Quirino (Lc 2,2), que era pagão, determinando um recenseamento de todos os moradores do império romano. Quando o rei Arquelau, da Síria, foi vencido pelos romanos, Quirino era o magistrado (governador) romano supremo na região do Oriente Médio, tendo ordenado o recenseamento dos habitantes do seu território, o qual, conforme estudos históricos, se deu entre os anos 8 e 6 a. C. Na Galileia, o governador era Herodes, mas o evangelista Lucas, se refere a Quirino porque Herodes era só o governador local, subordinado a Quirino, que era a autoridade romana máxima da região.


Por que essa referência a Herodes, que nem foi citado na leitura do evangelho? Porque este fato está associado com a visita dos magos do oriente, que chegaram ao palácio do rei Herodes perguntando onde estava o rei dos Judeus recém-nascido... para Herodes aquilo foi um choque, pois o rei era ele e não havia nascido nenhum filho dele. De todo modo, Herodes chamou os sacerdotes e adivinhos para saber do que se tratava, porque aquilo podia ser um sinal de alguma insurreição popular contra os romanos, talvez algum descendente real de uma tribo daquele povo. Logo, logo os sacerdotes lembraram da profecia de Miqueias: Belém, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel, e então os magos foram orientados para irem até Belém. E depois Herodes mandou matar todos os recém-nascidos da região, por via de dúvidas, embora ele não acreditasse naquelas balelas de profecias. A narrativa do evangelista Lucas, que é como sempre recheada de detalhes históricos, nos ajuda a contextualizar os fatos e a fundamentar historicamente a época do nascimento de Cristo.


Na segunda leitura, da carta aos Hebreus, o autor sagrado desconhecido faz referência ao nascimento de Cristo, dizendo que Javé não se satisfazia com os holocaustos e oferendas de animais, sacrifícios imperfeitos que não expiavam os pecados da humanidade, por isso mandou seu próprio Filho para tornar-se a oferenda definitiva. Cristo, sacrificando-se de uma vez por todas, suprime e substitui todos os demais holocaustos e redime a humanidade. Ele veio para cumprir a promessa: “Eis que eu venho. No livro está escrito a meu respeito: Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade.' ” (Heb 10, 7) O “livro” onde isso está escrito não é outro senão “a Bíblia (biblos)”, ou simplesmente, “o livro” escrito pelos profetas. São vários os profetas, mas o livro é um só, porque todos os seus escritores colocaram ali um conteúdo que se integra e se correlaciona, daí que não interessam os nomes dos autores materiais, já que um só é o seu autor intelectual: Javé. (Apenas para esclarecer aos colegas, esta carta era antigamente atribuída a Paulo e se dizia “carta de São Paulo aos Hebreus”, mas estudos posteriores dos biblistas levaram à conclusão de que não foi Paulo o seu autor, e visto que não se sabe quem foi, diz-se apenas “carta aos Hebreus”.)


No evangelho de Lucas (Lc 1, 39-45), lemos o relato muito conhecido da visita de Maria a Isabel, que se tornou a primeira testemunha da gravidez divina de Maria, por inspiração do Espírito Santo. A narração de Lucas é bastante rica em detalhes e, ao longo da história, estimulou a imaginação dos artistas dos mais variados modos, motivando a produção de inúmeras obras de arte retratando o tema. E Lucas foi aquele agente escolhido, pela sua convivência com Maria após a morte de Cristo, tendo sido escolhido por Deus para recolher d'Ela os segredos mais reveladores da vinda de Cristo, que não teriam sido conhecidos pela humanidade se não fosse essa situação privilegiada de ser ele uma pessoa letrada e da total confiança de Maria. Por conta disso, o seu evangelho tem uma característica singular, no que diz respeito ao conhecimento da infância de Jesus e à vida pessoal de Maria.


Pois bem. Diz Lucas que Maria foi apressadamente à região das montanhas, para visitar sua prima Isabel, que estava nos dias próximos do parto. Maria também estava grávida, embora de pouco tempo, gravidez ainda não perceptível, portanto, a própria Isabel não tinha conhecimento disso. E como era costume (e ainda é em grande parte da região interiorana do Nordeste), as parentas próximas (mãe, irmãs, primas) vão prestar assistência à parturiente, no período pós-parto, denominado de “resguardo”, especialmente quando se trata do primeiro filho. Tem aquela tradição que diz que Isabel mandou acender uma grande fogueira em frente da sua casa lá no alto, para que Maria e os parentes, que moravam no vale fossem avisados da proximidade do seu parto. Evidentemente não há embasamento bíblico para esse justificar tal procedimento, mas de qualquer modo, essa seria a origem das fogueiras juninas, que ainda hoje anunciam São João.


Ao se encontrarem, Isabel fez aquele célebre discurso teológico, que se tornou o tema da oração mais tipicamente mariana: ave, cheia de graça, bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Com certeza, Lucas relata esses detalhes para destacar o reconhecimento da divindade de Cristo, mesmo antes do seu nascimento. Isabel, como as mulheres judias daquele tempo, não era uma pessoa letrada, mas devia frequentar a sinagoga, como todos os judeus, e certamente sabia das promessas de Deus através dos profetas, pela explicação dos rabinos, acerca da vinda do Salvador. Muito provavelmente, o discurso teológico de Isabel foi recomposto por Lucas, a partir de sucintas narrações feitas por Maria, que na sua humildade e tendo sido ela e Isabel as únicas pessoas a testemunharem o evento, não iria fazer para si mesma um cântico de exaltação. Diz Lucas que Isabel ficou cheia do Espírito Santo quando Maria chegou e sentiu o bebê mover-se de modo diferente no seu ventre, o que a levou a proferir essas palavras inspiradas sobre a gravidez da prima. Na tradição teológica, diz-se que a primeira manifestação do Espírito Santo ocorreu no batismo de Cristo, quando ele já era adulto, juntamente com a “voz” do Pai, ou seja, a primeira manifestação da trindade divina. Mas podemos dizer que foi, de fato, Isabel a primeira pessoa que sentiu a inspiração do Espírito Santo com a presença de Maria, ao mesmo tempo em que isso indica a missão especial que deveria ter o filho dela, Isabel, na preparação do povo judeu para o reconhecimento do Cristo Messias.


Por fim, é importante destacar que a celebração da festa do Natal em 25 de dezembro não corresponde aos fatos históricos narrados por Lucas. Provavelmente, o nascimento de Jesus ocorreu no mês de março, isso também não ficou registrado. No entanto, foi uma imposição do imperador romano Constantino a data de 25 de dezembro para a celebração do Natal, sacralizando a festa pagã do deus saturno (saturnalia), que acontecia tradicionalmente em Roma nesta época da passagem do solstício de inverno, entre os dias 17 e 23 de dezembro, festas acompanhadas de lautos banquetes e distribuição de presentes. Independentemente disso, porém, para nós cristãos, o que interessa é o nascimento de Cristo, que aconteceu uma vez na história, mas que se repete constantemente em nossos corações, quando renovamos nosso compromisso de viver segundo o evangelho.


Com sinceros votos de Feliz Natal a todos.

Antonio Carlos

sábado, 11 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DO ADVENTO - 12.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 12.12.2021


Caros Confrades,


Neste 3º domingo do advento, a liturgia retoma o tema da alegria sobre Jerusalém, servindo-se das palavras do profeta Sofonias. Alegra-te, Jerusalém, diz ele, o Senhor teu Deus está no meio de ti. O contexto em que o Profeta faz essa invocação é bem diferente deste que se celebra no Advento, como explicarei em seguida, mas o texto aqui é utilizado para invocar o Senhor que está para chegar. Este domingo é também conhecido como o “domingo laetare”, em que a liturgia nos convida a ficarmos alegres com a aproximação do Natal. E a leitura do evangelho escrito por Lucas nos traz uma interessante sugestão de reflexão, na perspectiva do ano novo litúrgico, que nos conclama à revisão de nossas atitudes e a renovar nossos compromissos de cristãos.


O profeta Sofonias (3, 14-18) convida o povo a se alegrar, porque o Senhor afastou os inimigos de Jerusalém. Este profeta viveu antes do cativeiro da Babilônia, numa época em que o povo hebreu dividia suas preferências políticas entre os reinos do Egito e da Assíria, buscando qual seria o melhor para fazer aliança. Dentre as autoridades hebraicas, havia os simpatizantes da aliança com o Egito e os que defendiam a aliança com a Assíria, tendência esta que era a favorita do rei de Judá, na época de Sofonias (por volta do ano 630 a.C.), o rei Josias. Não demorou muito para que a Assíria fosse dominada pelos exércitos babilônicos, liderados por Nabucodonosor. Visto que os hebreus tinham essa aliança com a Assíria, tiveram a mesma sorte que os seus amigos assírios e foram levados cativos por Nabucodonosor para a Babilônia. Então, Sofonias profetizou nessa época anterior ao domínio babilônico, conclamando o povo a alegrar-se, porque Javé é o valente guerreiro que salva seu povo. Era uma tentativa de exaltar o nacionalismo judaico diante das ameaças de dominação por povos estrangeiros. Hoje nós sabemos que essa alegria durou pouco tempo, porque logo veio a escravidão. Então, a liturgia retira o texto de Sofonias do seu contexto histórico para encaixá-lo na temática do Advento.


A segunda leitura, extraída de Paulo aos Filipenses, também está deslocada do seu contexto histórico, porque quando o Apóstolo recomendava aos cristãos de Filipos que se alegrassem sempre no Senhor, pois Ele está próximo, queria referir-se à segunda vinda de Cristo que, conforme era o entendimento da época, acreditava-se que seria 'em breve'. Outra vez, precisamos abstrair da situação concreta do texto para que possamos compreendê-lo na perspectiva da temática do Advento. O fato de Paulo exortar os Filipenses à alegria sobre a proximidade da vinda do Senhor passa a ser então apropriado dentro do roteiro do “domingo laetare”, nessa etapa de preparação para a celebração do Natal. Portanto, a liturgia faz uma espécie de silepse histórica, levando-nos a fazer um certo exercício mental para compreendermos dentro do contexto do Advento dois textos que se referem a outras circunstâncias históricas. Na verdade, parece-me que a única justificativa é porque ambos contemplam o tema da alegria, que a liturgia pretende atribuir a este terceiro domingo.


Agora, afastando-nos do tema da alegria, examinemos o evangelho de Lucas (3, 10-18), que destaca a figura de profética de João Batista, pregando o batismo da conversão e batizando no Jordão. Diz Lucas que as pessoas convertidas procuravam João perguntando “o que devemos fazer” para viverem em coerência com o batismo da conversão. E João exortava a todos, de acordo com a atividade social exercida pelo batizado, recomendando-lhes o fiel cumprimento da missão de cada um. Aos vendedores e compradores, ele dizia: quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo. Ou seja, saibam partilhar os bens com os mais pobres. Aos cobradores de impostos, esses que, desde aquele tempo, já eram vistos pelo povo como corruptos, pecadores públicos, João dizia: não cobreis mais do que foi estabelecido, ou seja, pratiquem a sua atividade com justiça, não façam extorsão. Aos soldados, esses que eram também considerados pessoas costumeiramente violentas e perversas, João dizia: não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações, ou seja, não exerçam o poder com abuso de autoridade. E mais: ficai satisfeitos com o vosso salário, ou seja, controlem a ambição de sempre querer mais. È proveitoso meditarmos sobre esse discurso de João, exortando o convertido a viver conforme sua conversão.


Com efeito, o discurso de João até parece que está direcionado para a sociedade dos nossos dias. O tempo do Advento é uma época adequada para fazermos um exame das nossas atitudes e avaliarmos como está a fidelidade à nossa vocação. João Batista está mostrando que, para cada um de nós, o Menino Deus tem um pedido especial, qual seja, a de vivermos com dignidade a nossa missão no dia a dia. Se tivermos o cuidado de 'ouvir' a voz de Deus nas nossas consciências em cada decisão que tomamos na vida, poderemos perceber que, em cada situação, Ele nos pede e espera de nós uma atitude de compromisso com a solidariedade, com a justiça, sempre no sentido do melhor cumprimento das verdades que Ele ensinou. Essa leitura do evangelho de Lucas nos sugere que, antes de cada tarefa e diante de cada nova missão que assumamos, na vida pessoal ou profissional, façamos perante a nossa própria consciência aquela indagação dos discípulos de João: para podermos viver a cada dia a nossa constante conversão ao chamado de Cristo, o que devemos fazer? E fiquemos atentos para o que Deus falará ao nosso coração.


E João Batista, ciente de sua própria missão, quis deixar claro, para aqueles seus discípulos que viam nele a figura de um provável Messias, quem era ele, confessando humildemente: eu não sou o Messias, mas virá aquele que é mais forte do que eu e eu não sou digno de desamarrar os cadarços da Suas sandálias (Lc 3, 16) e Ele vos batizará no espírito santo e no fogo. E completa: Ele virá com uma pá para limpar sua eira e uma peneira para separar o trigo do carrapicho. Embora o texto apresentado na versão oficial da CNBB use a palavra pá na mão, no texto latino, a palavra é “ventilabrum”, cuja tradução mais própria seria “joeira”, palavra que não é comum na nossa cultura, e que é algo mais parecido com a peneira. A ideia é fazer aquilo que os produtores rurais fazem com o feijão, o milho, o arroz depois que eles põem pra secar, para separar os grãos quebrados dos inteiros, separar os grãos de suas palhas: peneirar. No nosso meio sertanejo, além da peneira, faz-se também a prática de “ventilar” o feijão, o milho, ou seja, passar pelo vento, pra separar os grãos das cascas, é outra técnica rudimentar que tem o mesmo objetivo.


A meu ver, seria essa a mensagem que João Batista queria transmitir. Eu não sou o Messias, mas ele está perto de chegar e virá com uma peneira pra separar os grãos perfeitos das cascas, os grãos inteiros dos quebradiços. Os grãos selecionados serão recolhidos ao celeiro, enquanto as palhas serão lançadas ao fogo (Lc 3, 17). Então, o caminho de preparação para a celebração do Natal coloca na nossa frente os desafios que devemos enfrentar para sermos dignos de vê-Lo nascer em nosso espírito, em nossas famílias, em nossa comunidade. Traz um alerta para que não relaxemos nos nossos compromissos de cristãos e uma oportunidade para fazermos um balanço sobre as práticas realizadas no período que termina. Ou seja, a liturgia nos remete à reflexão sobre o modo como realizamos, no dia a dia das nossas atividades, aquelas ações e práticas que devem espelhar o estilo de vida do verdadeiro cristão.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 4 de dezembro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - 05.12.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 05.12.2021


Caros Confrades,


No segundo domingo do advento, a liturgia traz a clássica figura profética da nova Jerusalém, agora na palavra do profeta Baruch. O nome hebraico deste profeta (Baruch) significa “abençoado”, “bendito” e ele era também escriba, tendo exercido a função de secretário do profeta Jeremias, na produção de seus escritos. Baruch viveu durante o exílio da Babilônia e descreve a alegria de Jerusalém, com o retorno dos seus filhos. A leitura do evangelho de Lucas, como de costume, traz importantes informações históricas, que nos permitem situar no tempo com grande precisão a época desses acontecimentos. Em seguida, ele evoca o tema da pregação de João Batista no deserto: endireitai os caminhos, aplainai as veredas. Ele veio materializar a profecia de Isaías (40, 3): a voz que clama no deserto.


O livro da profecia de Baruch teria sido sugerido pelo próprio Jeremias, quando aquele o acompanhara na fuga para o Egito, a fim de não serem compelidos a ir para a Babilônia. Depois ter escrito as obras de Jeremias e depois da morte deste, Baruch passou a escrever também as suas profecias, certamente a partir do que aprendeu com o mestre, mostrando a presença de Javeh nos fatos históricos. Assim, ele diz que Jerusalém verá o retorno triunfante daqueles que foram levados cativos e humilhados algum tempo atrás. E o nome Jerusalém passará a significar “paz da justiça” e “glória da piedade”. A bem da verdade, é importante destacar que existem dúvidas entre os estudiosos sobre a autoria destes escritos, se teriam sido do próprio Baruc ou apenas atribuídos a ele. Trata-se de um livro deuterocanônico, isto é, que não estava na lista antiga dos livros bíblicos judaicos, tendo sido reconhecido como autêntico e incluído no rol somente tempos depois. De todo modo, o contexto referido é o mesmo em que viveu o profeta Jeremias, no tempo do cativeiro babilônico. O profeta Baruch declama a alegria de Jerusalém, ao ver o retorno de seus filhos que foram levados pelo inimigo: “Saíram de ti, caminhando a pé, levados pelos inimigos. Deus os devolve a ti, conduzidos com honras, como príncipes reais.” (Br 5,6) Por isso, ele diz: Levanta-te, Jerusalém, despe de uma vez por todas as vestes de luto e reveste-te para sempre dos adornos da glória. A Nova Jerusalém é a igreja de Cristo, representada nesta figura desenhada pela profecia de Baruch.


O profeta Baruch também antecipou as palavras que seriam repetidas por João Batista, no deserto da Judeia, na sua pregação preparatória do Messias que estava para chegar: “Deus ordenou que se abaixassem todos os altos montes e as colinas eternas, e se enchessem os vales, para aplainar a terra, a fim de que Israel caminhe com segurança, sob a glória de Deus.” (Br 5, 7) Foi a mesma temática recolocada por João Batista, quando pregava: “'Esta é a voz daquele que grita no deserto: 'preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas.” (Lc 3, 4) Na visão de Baruch, ele se referia à Jerusalém geográfica, capital do reino de Judá. Mas dentro do simbolismo trans-histórico, que está presente na adequação entre o antigo e o novo testamentos, João Batista explicava que os caminhos a serem preparados não eram as estradas de pedra da Palestina, mas as vias internas do coração de cada um. Desse modo, João Batista convertia os judeus para um novo sentido a ser encontrado nas palavras da promessa de Javeh e por isso João Batista é considerado o último profeta do Antigo Testamento.


Na carta de Paulo aos Filipenses (Fl 1, 4-11), o Apóstolo se congratula com a comunidade de Filipos, a primeira onde ele pregou o evangelho, de modo que a sua lembrança dos filipenses era sempre cheia de muito carinho e gratidão. A cidade de Filipos recebera este nome em homenagem a Filipe da Macedônia, seu conquistador, e era uma das comunidades mais queridas por Paulo. Lá ele encontrou muita receptividade, quando foi pregar o evangelho pela primeira vez, desde quando tomou rumo diferente do apóstolo Barnabé, e obteve muitas conversões. Foi a partir de Filipos que o cristianismo começou a se espalhar pela Europa, até porque quando escreveu essa carta Paulo já estava preso e ele não tinha mais condições de sair pregando, como fizera antes. Os filipenses foram os continuadores do seu apostolado e Paulo os considerava uma espécie de comunidade modelo do cristianismo.


Os filipenses também estimavam muito Paulo, por causa do intenso trabalho que ele realizara lá, de modo que quando chegou a Filipos a notícia da sua prisão, a população organizou uma coleta e a mandou para Paulo, pois sabiam que ele passava necessidades. Daí que Paulo retribui, na carta, toda a amizade e afeição que os filipenses lhe dedicavam. E principalmente por saber que os filipenses se tornaram ardorosos divulgadores do cristianismo, então isso deixava Paulo ainda mais entusiasmado com os resultados do seu trabalho naquela comunidade. Daí ele dizer: “Deus é testemunha de que tenho saudade de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus. E isto eu peço a Deus: que o vosso amor cresça sempre mais. ” E lhes recomenda que permaneçam fiéis até o “dia de Cristo”, ou seja, até a sua segunda vinda. Essa referência constante de Paulo à “segunda vinda” de Cristo bem denota o entendimento que ele tinha (e os cristãos da época) sobre este retorno de Cristo, que era esperado para breves dias. No nosso caso, o Advento nos convida a nos prepararmos para a chegada comemorativa daquele que vem, não apenas uma ou duas vezes, mas vem a nós todas as vezes que o buscamos. Com a liturgia do advento, nós fazemos essa preparação para o retorno de Cristo, espiritualmente, na vida da Igreja e nas nossas vidas de cristãos.


O evangelista Lucas, como de costume, muito detalhista, faz referências históricas bem precisas sobre a época em que João Batista exerceu sua profecia: No ano décimo quinto do império de Tibério César, foi a palavra de Deus dirigida a João, no deserto. Tibério iniciou seu reinado no ano 14 d.C., portanto, o décimo quinto ano seria o ano 29. Pouco tempo depois, quando Jesus tinha 30 anos, ele foi batizado por João e assim iniciou sua vida de pregador. Essa referência histórica de Lucas fundamenta a contagem do tempo para o estabelecimento da data do nascimento de Jesus. E Lucas diz que João percorreu toda a região do Jordão, pregando o batismo da conversão, para o perdão dos pecados, a metanóia, ou seja, a mudança de mentalidade, aplicando um novo modo de compreender os textos sagrados, fazendo a passagem do antigo para o novo testamento. Na liturgia, o tempo do advento, em todos os anos, nos conclama a essa renovação interior, a viver a conversão pregada por João, a despertar para o cumprimento da promessa de Javeh aos patriarcas, fato que está para acontecer. Lucas se refere também às outras autoridades da época: Pilatos, governador da Judeia; Herodes, governador da Galileia; Filipe, governador da Itureia; Lisânias, governador de Abilene; Anás e Caifás, os sumos sacerdotes do templo. Ao contextualizar assim historicamente o início da vida missionária de Jesus, Lucas nos dá um testemunho bastante preciso não apenas deste fato, mas também da confirmação histórica da vida terrena de Jesus, pois esses personagens, cuja presença é bem viva nos textos dos evangelhos, tem existência real indubitavelmente confirmada. Apesar disso, ainda há pessoas que duvidam se Jesus Cristo realmente existiu...


Podemos observar na exortação de Paulo aos filipenses uma correlação com a pregação de João Batista, acerca da preparação dos caminhos, da seguinte forma. João se refere às ações iniciais da conversão, enquanto Paulo se refere à continuidade desta. A conversão do coração não é algo que acontece apenas uma vez na vida, não é um fenômeno único, mas permanente, renova-se a cada dia. Quando Paulo diz que aquele que começou em vós uma boa obra (a conversão), há de levá-la à perfeição, quer dizer, há de sustentá-los na fé, perseverantes até o final. A isso chamamos de conversão contínua e isso representa o crescimento espiritual, tanto no conhecimento quanto no discernimento. Essa é a mensagem que, a cada ano, o tempo do advento vem nos trazer.


A exortação de Paulo aos Filipenses, assim como a pregação de João Batista, se aplicam a todos nós. A preparação do Natal do Senhor é um tempo oportuno de renovação das nossas esperanças e dos nossos compromissos de cristãos, no sentido de tornar o nosso mundo um lugar melhor para todos.


Cordial abraço.

Antonio Carlos