sábado, 26 de julho de 2025

COMENTARIO LITURGICO - 17 DOMINGO COMUM - 27.07.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – A ORAÇÃO PODEROSA– 27.07.2025


Caros Confrades:


Neste 17º domingo comum, a liturgia enfoca um tema super importante nos dias atuais, qual seja, o poder da oração, que é uma consequência do poder da fé. Afinal, o que significa orar? Desde criança, nós somos orientados a aprender certas orações de cor e recitá-las. Mas se uma pessoa que tem fé ora espontaneamente, sem se prender a fórmulas padronizadas, isso faz diferença?. Coloca-se, portanto, nesse contexto, a discussão acerca das orações repetitivas em contraposição à oração criativa. Ao rezar o terço, repetimos cinquenta vezes a Ave Maria, isto é válido ou é melhor deixar falar o coração? Há justificativas teológicas para um e outro casos.


A primeira leitura, retirada de Gênesis (18, 20-32), é a continuação da leitura do domingo anterior, quando Abraão dialogou com os mensageiros desconhecidos, que o visitaram e anunciaram a gravidez de Sarah. Os mensageiros anunciaram também que, dali, iriam visitar Sodoma, a fim de conferir se aquilo que bradava aos céus contra os seus habitantes era realmente fato ou era alguma notícia inverídica, para que fossem tomadas providências. É muito curioso esse estilo do escritor sagrado de comparar Javeh com as pessoas humanas, como se Deus não tivesse condição de saber o que estava ocorrendo e necessitasse de mensageiros espiões para darem seu testemunho. Na verdade, o objetivo da narrativa é demonstrar a força que possui a oração do justo diante de Deus. Abraão intercede sucessivas vezes pelos habitantes 'justos' de Sodoma, para que Javeh não os destrua assim como iria fazer com os ímpios. Abraão vai criando coragem e baixando o perfil: se houver 50 justos... e se forem 45... e se forem apenas 30... ou 20... ou 10... E Javeh o atende, dizendo que se houver 10 justos na cidade, ela não será destruída. Acontece que não havia nenhum. No caso, portanto, o que interessa para nós não é a antropologização de Deus, mas a lição bíblica de que ele atende as orações dos justos e também que a presença de pessoas justas, ainda que em pequeno número, faz a diferença no mundo dos ímpios. Conforme Jesus explicou em suas parábolas, o justo funciona como o fermento na massa, isto é, embora em pequena quantidade, é capaz de fazer toda a massa levedar. É o mesmo caso do exemplo da luz que, por menor que seja, ilumina todo um ambiente que antes estava escuro. O poder da oração tem uma carga energética de grande potencial, cuja ação na sociedade é capaz de produzir efeitos extraordinários.


Na leitura do evangelho, da autoria de Lucas (11, 1-13), lemos duas importantes lições de Cristo acerca da oração. Primeiro, os discípulos pedem a Ele que lhes ensine a orar, e Ele compõe na hora aquela famosa prece que continua sendo repetida hoje como “a oração que o Senhor ensinou”. Em seguida, temos as exortações que Ele faz acerca do vizinho que atende ao pedido do outro, mesmo que não seja por causa da amizade, mas até para se livrar do incômodo, e ainda acerca do pai que atende ao pedido do filho e não lhe fará nenhum mal. Ora, diz Ele: “se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem”. As lições de Cristo seguem o mesmo padrão doutrinário do texto do Gênesis acerca da força da oração e da importância de cada um rogar a Deus segundo as suas necessidades. Pois quem pede, recebe; quem procura, encontra; e, para quem bate, se abrirá. Se observarmos bem, até mesmo a figura literária dos mensageiros que foram a Sodoma “conferir” o que estava se passando, como se Javeh não soubesse, está, de outro modo, reproduzida no ensinamento de Cristo com o “pedi e recebereis”. É claro que Deus sabe das nossas necessidades e, na lógica humana, não seria preciso que nós pedíssemos. Mas a lógica divina ensina que devemos pedir, não porque Deus não saiba, mas porque o ato de pedir é um ato de humildade, é uma confissão de carência, é um reconhecimento de incompletude, é um golpe no nosso orgulho. Mesmo que, em tese, não houvesse a necessidade de fazer o pedido, Jesus ensina que devemos pedir como uma forma de nos aproximarmos sempre mais daquele que dispõe de tudo e que tudo pode. Acima de tudo, o ato de pedir é um ato de fé, pois aquele que não crê acha que não precisa de Deus e, desse modo, sucumbe na sua autossuficiência.


Desponta, nesse contexto temático, aquela famosa polêmica do modo segundo o qual devemos orar: seguindo as orações formulares, lidas ou memorizadas, ou fazendo preces espontâneas, ditadas pela sensibilidade e pela emoção de cada momento? Obviamente, Cristo nunca mandou escrever orações modelares. A prece que chamamos de “pai nosso” não foi, com certeza, dada como modelo por Cristo, mas como um exemplo de como devemos nos dirigir ao Pai. A própria estrutura tríplice do “pai nosso” demonstra que devemos sempre, em nossas orações, em primeiro lugar, agradecer e louvar; depois, pedir e, por fim, ter misericórdia. É importante observar isso, porque na maioria das vezes, as pessoas rezam apenas para pedir algo, fazem uma espécie de contrato com Deus (aquilo que o povo chama de promessa): me dê isso que eu rezo durante tantos dias. E se zangam com Deus porque não recebem. Alguns até abandonam a religião em protesto. Lamentavelmente, a pedagogia catequética tradicional levou as pessoas a identificarem a oração com um pedido de suprimento de alguma necessidade. Daí se criaram as “promessas”, os novenários, os devocionais, o costume de orar somente quando a pessoa se encontra em necessidade premente, precisa de ser urgentemente atendido, senão perde a fé e não vai rezar mais. Não podemos deixar de reconhecer que este é um fato corriqueiro na vida religiosa do nosso povo, sendo inclusive esse um motivo de “mudança de religião”, porque alguém não conseguiu o que pretendia numa igreja, então vai procurar outra, como se Deus estivesse mais presente ali do que aqui. Em verdade, o que muda não é o espírito divino, mas a fé do crente.


Pois bem. Ao longo dos séculos, as autoridades eclesiásticas foram compondo textos de orações que se tornaram padronizadas, de modo que a catequese tradicional consistia, em grande parte, na memorização desses textos orantes. E a grande maioria dos fiéis só sabe rezar esses textos oficiais, como se apenas estes fossem válidos diante de Deus. É bem verdade que algumas pessoas não têm aquele “dom” de fazer preces bonitas, com palavras e frases bem-compostas. Isso não se refere apenas aos fiéis leigos, mas também aos sacerdotes. Nos primeiros tempos do cristianismo, não havia um “cânon” da missa, aquela oração ritual repetida em todas as missas, mas cada celebrante inventava o texto na hora da celebração. Ocorre que alguns sacerdotes mais cultos e devotos conseguiam compor orações mais completas e que agradavam mais à comunidade, enquanto outros tinham dificuldade em fazer belas preces. Assim, aos poucos foram se introduzindo textos padronizados para a celebração da missa e para as diversas orações a serem ditas nos cultos públicos. Chegou a um ponto tal essa burocracia do texto orante que, em determinada época, o celebrante cometia pecado venial se mudasse as palavras das orações oficiais da missa. Atualmente, o celebrante tem certa liberdade para inovar, o que antes não era permitido. Ora, há pessoas que até questionam a tradução de certos trechos litúrgicos, quando são passados para as línguas vernaculares, o que demonstra que a prática da oração formular ainda é bastante forte.


Uma outra forma orante que causa certo incômodo para alguns fiéis é a das orações repetitivas. O terço mariano, por exemplo, é uma dessas orações criticadas. Que sentido faz repetir o mesmo texto de uma oração por cinquenta vezes? Por outro lado, há vários testemunhos de videntes que afirmam ter recebido de Maria a instrução-recomendação para a recitação do rosário, assim como de outros textos devocionais consagrados pela prática religiosa popular. Embora devamos reconhecer que essas repetições levam, na maioria das vezes, à distração mental porque se torna um comportamento mecânico e tedioso, não podemos deixar de reconhecer que muitas pessoas têm conseguido a obtenção de favores miraculosos com essas orações. Portanto, o que podemos dizer acerca desses vários tipos de orações é que, mais importante e mais operante do que o texto da oração será a fé do crente. Aquele que reza expressando sincera e honestamente a sua fé estará realizando o mandamento de Cristo “pedi e recebereis”, seja através das orações com textos prontos, seja através das orações espontâneas e criativas, porque acima das palavras da prece está a comunhão espiritual com Deus, através da fé. E isso é o que efetivamente Deus escuta e retribui: o coração sincero.


Que a nossa oração seja sempre a verdadeira expressão da nossa fé.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 19 de julho de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 16º DOMINGO COMUM - 20.07.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO COMUM – HOSPITALIDADE CRISTÖ 20.07.2025


Caros Confrades,


Neste 16º domingo comum, as leituras tratam do tema da hospitalidade. Abraão recebe a visita de viajantes ilustres e os recepciona da melhor maneira em sua tenda, no deserto. Jesus é recebido com simpatia na casa das irmãs Marta e Maria. Esses relatos trazem à tona a ideia da boa hospitalidade. Numa abordagem metafórica, esse fenômeno da visita pode também estender-se à visita no sentido espiritual, de tratar bem os irmãos, percebendo Deus na presença deles.


Na primeira leitura (Gn 18, 1-10), vemos como Abraão recebeu a visita de três desconhecidos forasteiros e trata-os com toda cortesia, percebendo em sua sensibilidade a presença de Deus através daqueles estranhos. O autor sagrado diz que Deus se manifestou a Abraão na pessoa daqueles três viajantes. Nâo precisa grande esforço exegético para divisarmos nessa imagem uma prefiguração remota da Trindade Santa, pois os três visitantes eram anjos do Senhor. Etimologicamente, a palavra anjo chegou à língua portuguesa através do latim “angelus”, que é uma transliteração do grego “anghelos” e que significa “mensageiro”. Com efeito, aqueles três visitantes vieram trazer a Abraão uma importantíssima mensagem de Javeh: a gravidez de Sara. Vendo avançar a idade e sem gerar filhos legítimos, Abraão foi servir-se da regra tradicional hebraica para casos similares, qual seja, de gerar um filho na pessoa de uma escrava. Mas para cumprir a sua promessa, Javeh não se contentaria com esse filho enviesado e assim os mensageiros vieram trazer a notícia de que Abraão geraria um filho na sua esposa Sara, apesar da idade avançada de ambos. Este episódio traz também logo à mente um caso semelhante de gravidez em avançada idade, acontecido com Isabel, prima de Maria, quando nasceu João Batista. Podemos perceber o quanto os fatos do Antigo Testamento se entrelaçam com os do Novo Testamento, em contextos diferenciados.


Mas o que chama a atenção nesse episódio é a hospitalidade de Abraão para com aqueles viajantes desconhecidos. Implorou para que não seguissem viagem, mas parassem na tenda dele e mandou preparar o melhor alimento: pão, leite, coalhada e o cordeiro mais tenro, para que os viajantes de recuperassem da cansativa viagem. Meus amigos, todos se recordam que esse era o costume do sertão, até algum tempo atrás. Hospedava-se um viajante desconhecido, oferecendo-lhe o que havia de melhor em casa. O exemplo de Abraão, infelizmente, foi desbancado pelas rotinas de violência e de insegurança dos tempos modernos. Hoje em dia, ninguém mais tem coragem de oferecer abrigo e pousada para um desconhecido. Desconfia-se até de quem lhe pede um copo d'água, e não é sem propósito. No caso de Abraão, os visitantes predisseram a gravidez de Sara para dentro de um ano, levando Sara a rir incrédula quando ouviu a notícia. Ao nascer a criança, ela colocou-lhe o nome de Isaac – aquele que me fez rir. Em síntese, a hospitalidade devotada por Abraão àqueles viajantes decorreu do fato de ter ele percebido, através deles, a presença de Javeh. Tempos depois, Jesus vai dizer na sua pregação que quem recebe a um pequenino é a Ele que recebe. A presença de Deus através do irmão é a outra lição que podemos colher da leitura deste fato extraordinário.


Na leitura do evangelho (Lc 10, 38-42), temos o conhecido diálogo entre Marta e Jesus, a respeito do comportamento da irmã dela, Maria, que não a ajudava no trabalho da casa. Uma curiosidade que nos chama a atenção nesse trecho de Lucas é quando ele diz que “uma certa mulher de nome Marta o recebeu em sua casa”. Ora, nós sabemos que os três irmãos (Marta, Maria e Lázaro), que moravam em Betãnia, eram pessoas que desfrutavam de grande amizade com Jesus. Causa estranheza o modo como o evangelista Lucas se refere a Marta identificando-a como 'uma certa mulher'. E também a referência que ele faz ao lugar: “Jesus entrou num povoado...”, como se o local fosse desconhecido e aquela passagem fosse casual. Pelas leituras de outros trechos do NT, sabemos que Jesus hospedava-se com frequência naquela residência, onde ele até operou um de seus milagres mais emotivos, a ressurreição de Lázaro, ocasião em que Jesus chorou. (Jo 11, 35). Trata-se, sem dúvida, de um modo inesperado como o evangelista Lucas se refere à família com a qual Jesus tinha grandes relações de amizade.


Mas não ficam por aí as estranhezas dessa narração de Lucas. No trecho seguinte (Lc 10, 39-40), ele diz: “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres.” Para em seguida, narrar a queixa de Marta a Jesus porque a irmã Maria ficava ali sentada aos pés dele, enquanto ela, Marta, ficava com todo o encargo das tarefas domésticas. Convenhamos, Jesus não andava sozinho, os discípulos sempre o acompanhavam, então a chegada daquele grupo numeroso numa casa implicava uma certa quantidade de tarefas fora da rotina e eram elas, Marta e Maria, as donas da casa, as responsáveis por aquele trabalho. Com certeza, chegando de viagem a pé, os visitantes queriam tomar um banho, alimentar-se, repousar, e isso significava aumento do serviço doméstico. Só que Maria ficou sentada ouvindo Jesus a conversar, enquanto Marta fazia todo o trabalho. E quando esta foi se queixar, Jesus ainda caçoou dela, dizendo que ela se preocupava demais e que Maria tinha escolhido a melhor parte.


Meus amigos, com todo respeito dos que pensam em contrário, parece-me que Lucas queria dar algum recado direcionado a alguém ou a algum grupo, quando escreveu essa história com esses pormenores. Apenas Lucas narra esse diálogo entre Jesus e Marta que, embora não se possa entender como uma repreensão, todavia soa incoerente naquele contexto. Sabendo que a Sua presença ali fazia aumentar o trabalho doméstico e vendo Marta a cuidar das atividades, enquanto Maria nada fazia, era de esperar que Jesus dissesse a Maria que fosse ajudar a irmã. Acerca dessa atitude pouco colaborativa de Jesus, eu li dois comentários. Um comentarista dizia que, com isso, Jesus estava colocando um valor mais acentuado na pessoa dele do que no trabalho, como se ele estivesse a dizer a Marta que deixasse aquelas tarefas pra depois e fosse ouvi-lo também. Assim, disse esse comentarista, devemos colocar Deus em primeiro lugar e tudo o mais virá como consequência. Parece-me que essa interpretação já foi muito usada, inclusive nos conventos, para colocarem-se os clérigos nas tarefas intelectuais (Maria) e os leigos nas tarefas domésticas (Marta). Evidentemente, dando mais importância às lides intelectuais, num seguimento literal àquilo que Jesus dissera. Não gostei dessa explicação.


Outro comentarista interpretou dizendo que cada uma das irmãs, Marta e Maria, amavam muito a Jesus, porém, ao seu modo: Marta através do trabalho prestativo, Maria através da atenção aos seus ensinamentos. Com isso, esse comentarista queria significar que cada pessoa tem um modo próprio de amar a Jesus e Ele ama cada um de acordo com o modo como cada qual é. Parece uma interpretação interessante, menos literal do que a anterior e teologicamente mais consistente. Porém, em relação ao trabalho, nós sempre aprendemos que existe tempo para tudo: tempus orandi, tempus laborandi, tempus ludendi, tempus ridendi, tempus dormiendi, etc (tempo de orar, de trabalhar, de divertir-se, de rir, de dormir, etc), o que não significa que a pessoa deva escolher uma opção, mas o conjunto deles é que compõe a vida. Quem não se lembra que, no Noviciado, nós rezávamos enquanto fazíamos as tarefas domésticas e uma coisa não atrapalhava a outra. Era lavando os pratos e rezando a ladainha, cavando a horta e rezando o terço, “ora et labora”, dizia o Padre Mestre. O fato é que esse episódio narrado por Lucas já serviu pra muita gente justificar a preguiça, afirmando que tinha escolhido “a melhor parte”, como fez Maria. Continua me parecendo uma incoerência a narrativa de Lucas em relação aos ensinamentos de Jesus. É como se fosse, repito, um escrito destinado a dar um recado para determinadas pessoas ou comunidades, o que hoje nos dificulta a compreensão.


Mas abstraindo essa incógnita, observa-se nas atitudes de Abraão e de Marta o cuidado em bem receber. A hospitalidade verdadeira é aquela que decorre da caridade, que por sua vez é decorrente do amor de Deus, que nós enxergamos através da pessoa do irmão. Não precisa ser hospedando em casa, mas pode ser também no trato cordial, no gesto fraterno, no cumprimento respeitoso, na conversa bem humorada, na delicadeza dos gestos, são outras atitudes que equivalem a uma boa hospitalidade que podemos devotar aos irmãos.


Que o divino Mestre nos ensine a saber unir as duas atitudes (de Marta e de Maria) nas nossas tarefas do dia a dia.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 12 de julho de 2025

COMENTARIO LITURGICO - 15 DOMINGO COMUM - 13.07.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MEU PRÓXIMO – 13.07.2025


Caros Confrades,


Neste 15º domingo do tempo comum, temos aquela leitura emblemática do texto de Lucas, conhecido como a parábola do “bom samaritano” e o tema litúrgico em destaque é o confronto entre a lei e a misericórdia, o mandamento e a caridade. O que é mais importante: orar a Deus, ler a Bíblia ou ajudar os irmãos? Resposta óbvia: os três são importantes, claro. Sim, mas o que é preferencial? Com a parábola do bom samaritano, Jesus ensina que a caridade para com o próximo é preferencial ao cumprimento puro e simples das obrigações religiosas. A misericórdia é a chave da porta que conduz à salvação, não basta a observância ritual e formalista dos mandamentos da lei.


Na primeira leitura, colhida do livro do Deuteronômio, Moisés ensina ao povo que a palavra de Deus está dentro de cada um, ou seja, está dentro da nossa consciência. Diz ele: a lei de Deus não está no céu, porque assim ficaria muito difícil de ser alcançada e alguém poderia dizer que não a conhece porque está inacessível. Também não está do outro lado do mar, porque assim também estaria muito distante e ninguém conseguiria atingi-la. Lembremo-nos de que, na época de Moisés, o conceito de mar era bem outro do que conhecemos, ter de atravessar o mar era uma tarefa onerosa, perigosa e demorada, tomando como referência o Mar Vermelho, o Mar Mediterrâneo, que eram os mares então conhecidos. Mas não, diz Moisés, esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir. (Dt 30, 14) Este é o conceito da lei divina enquanto lei natural, isto é, aquela regra que cada pessoa traz dentro de si mesma e que a cultura costuma chamar de consciência.


De acordo com a doutrina tradicional, esta lei natural encontra-se inscrita no íntimo de cada pessoa, na sua razão como uma ideia inata, colocada pelo próprio Deus como parte da Sua atividade criadora. A lei natural decorre da própria racionalidade, está situada no âmago da razão humana, como sua fonte permanente de inspiração e de avaliação de conduta. No entanto, os filósofos da modernidade passaram a contestar essa noção de lei natural como algo inerente à natureza humana e passaram a afirmar que as noções básicas do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto não nos vêm embutidas na razão mesma, de forma inata, mas são aprendidas e assimiladas a partir das vivências e experiências de cada um na família e na sociedade. De um modo ou de outro, a lei divina enquanto lei natural é reconhecida por todas as pessoas como aquela regra básica de sempre fazer o bem. Se observarmos cuidadosamente o conteúdo da lei de Moisés, a grande exigência que Javeh sempre fez ao Seu povo foi honrá-lo e adorá-lo como único Deus, desprezando a idolatria, que era muito comum entre os povos da época. Todos os outros preceitos são compatíveis com o que chamamos de lei natural: honrar pai e mãe, não matar, não levantar falso testemunho, não querer os bens pertencentes a outrem... Esta é a lei antiga, que Jesus não veio negar nem modificar, mas sim confirmar e cumprir de forma plena, conforme Ele afirmou por diversas vezes. O exemplo mais claro e pedagógico que Jesus deixou de como deve ser o nosso cumprimento da lei se encontra na parábola do “bom samaritano”.


O evangelista Lucas (10, 25) narra o diálogo de Jesus com um doutor da lei. Quem eram os doutores da lei? Eram os escribas, os sábios instruídos na lei de Moisés, os rabinos, aqueles que ensinavam ao povo os preceitos da lei dada por Javeh a Moisés, podendo ser eles sacerdotes ou não. Portanto, teoricamente, um doutor da lei devia saber (mais do que as outras pessoas) o que era de seu dever e obrigação cumprir. Dentre os judeus daquele tempo, o grupo dos fariseus era aquele formado por aqueles doutores da lei mais fervorosos e formalistas, aqueles que se esmeravam no conhecimento da lei e no seu cumprimento acima de qualquer outra exigência. E faziam questão de demonstrar isso publicamente, para que todos os vissem como exemplares cumpridores da lei. Jesus não era nenhum ingênuo e quando aquele fariseu veio perguntar-lhe o que era preciso fazer para ganhar a vida eterna, Ele respondeu com outra pergunta: me diga o que está na Lei? Ora, o fariseu sabia de cor e respondeu imediatamente: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Então Jesus disse: pois faça isso e terá a salvação. Talvez o fariseu esperasse que Jesus fosse ensinar algo diferente do que estava na Lei para assim poder acusá-lo de heresia. Quando Jesus disse “cumpra a lei”, o fariseu ficou desapontado. Em outras palavras, Jesus estava dizendo para aquele fariseu e para todos nós que a lei divina, aquela que se encontra no coração de cada homem, esta lei não passa, não muda, esta lei não é ensinada apenas pelos judeus, mas está em todos os povos desde as épocas mais antigas e em todos os lugares do mundo, o mandamento de fazer o bem sempre esteve persente em todas as culturas. Não é necessário que os parlamentos a aprovem, pois ela já se mostra evidente e presente por si mesma, reconhecida pela sadia racionalidade.


Pois bem, disso o fariseu já sabia. Mas para o cumprimento pleno da Lei, é preciso amar também o próximo. Daí ele pergunta: e quem é esse próximo, que eu devo amar? Aqui entra a parábola do bom samaritano. Um homem ferido, necessitando de ajuda é observado por um sacerdote e por um levita, ambos judeus, que se desviam dele e passam pelo outro lado, na estrada. Observemos a fina ironia de Jesus, quando colocou no exemplo da parábola um sacerdote e um levita. Esses dois termos eram até certo ponto sinônimos, mas não por completo, havia levitas que não eram sacerdotes. Seriam como os diáconos, aqueles que auxiliavam os sacerdotes no serviço do templo. Então, quando Jesus colocou na parábola um sacerdote e um levita, era como se Ele estivesse dizendo para o seu interlocutor: alguém conhecedor da lei, um judeu igual a você. Por que motivo o sacerdote e o levita teriam se desviado do ferido e moribundo? O evangelista não entra nesse detalhe, mas poder-se-ia supor, na melhor das hipóteses, que fosse porque eles estariam com pressa se dirigindo ao templo e não poderiam se atrasar para o serviço do culto. Ou numa hipótese mais malvada, porque eles realmente não se preocupavam mesmo com os sofrimentos dos outros. Era como se Jesus estivesse lançando a carapuça na cabeça daquele doutor da lei.


E para completar a ironia, Jesus colocou na parábola a figura do samaritano, como aquele que fez a coisa certa. Ora, meus amigos, os judeus tinham uma inimizade rigorosa com os samaritanos, achavam que esses não cumpriam a lei, eram intrigados entre si e não se falavam. De propósito, Jesus colocou um sacerdote e um levita dando mau exemplo e, de outro lado, o samaritano como autor do bom exemplo. Desse modo, duplamente Ele puxou as orelhas do doutor da lei. Uma, porque alguém da classe dele (sacerdote ou levita) preferiu passar apressado para não se atrasar no cumprimento da lei. Duas, porque o rival dos judeus foi aquele que teve misericórdia do ferido e o amparou. E para não deixar só no plano das especulações, Jesus ainda perguntou ao doutor da lei, para que ele tirasse a conclusão: quem desses três, a seu ver, foi o próximo para o ferido? O doutor da lei não tinha alternativa senão concordar que tinha sido o samaritano, saindo dali com as orelhas pegando fogo.


Mas, enfim, como é cumprir plenamente a lei, segundo Jesus ensinou? Agora podemos concluir: é juntando o cumprimento formal da lei com a prática da caridade. Não se pode dizer que, a rigor, o sacerdote e o levita descumpriram a lei. Eles deviam ter seus motivos. Mas o samaritano cumpriu a lei da forma mais perfeita, que foi dando a preferência ao atendimento do irmão necessitado, mesmo que isso implicasse o atraso de outras obrigações. Então, como podemos observar, quando Jesus disse que não veio para destruir a lei de Moisés, mas para cumpri-la de forma integral, Ele estava querendo dizer que ninguém pode dizer que ama a Deus se não ama o próximo. Amar a Deus é a dimensão vertical da religião, ou seja, a oração, a meditação, o jejum, o terço, a novena, a missa, o templo. Amar o próximo é a dimensão horizontal da religião, ou seja, a caridade, a estima, a ajuda mútua, o compartilhamento dos bens, a misericórdia com os irmãos. Uma dimensão se completa com a outra e a dimensão vertical, sem a horizontal, torna-se inócua. Várias vezes, no evangelho, temos exemplos patéticos nas parábolas de Jesus, como quando aqueles que foram mandados para a “esquerda” perguntaram: quando foi que Te vimos com fome e não Te demos de comer? E ele respondeu: foi quando deixastes de ajudar o irmão necessitado. Ou seja, se ponderarmos bem, a dimensão horizontal tem um peso bem maior na hora de aquilatar o cumprimento da lei, porque é a dimensão horizontal que leva a outra dimensão à perfeição. O bom samaritano é o exemplo clássico e insuperável do amor ao próximo.


Com um cordial abraço.

Antonio Carlos

sábado, 5 de julho de 2025

COMENTARIO LITURGICO - 14 DOMINGO COMUM - 06.07.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A PAZ E O BEM – 06.07.2025


Caros Confrades:


A liturgia deste 14º domingo do tempo comum tematiza o envio de setenta e dois discípulos de Jesus para saírem de cidade em cidade anunciando o evangelho, curando doentes e expulsando demônios, tendo como único instrumento a paz. Enviados como cordeiros no meio dos lobos, vão sem mochila e sem armamento algum, sem comida, sem dinheiro, levando apenas a palavra e semeando-a por onde passarem. Esse tema do envio é recorrente na liturgia, pois na verdade ele é sempre atual e ecoa nos nossos ouvidos a cada dia, nas nossas atividades e nos nossos relacionamentos, lembrando-nos do nosso compromisso de cristãos. Por isso, quero destacar neste comentário a saudação que Cristo lhes recomendou: Em qualquer cada onde entrardes, dizei primeiro – A paz esteja nesta casa. O Seráfico Patriarca Francisco também escolheu essa lição da Paz como norma de sua vida e a ela acrescentou o Bem. A saudação franciscana é exatamente o que Cristo encomendou aos setenta e dois que enviou: levar a Paz e fazer ao Bem.


A primeira leitura, colhida no deutero Isaías (Is 66, 10-14), lembra a paz que reinou em Jerusalém, após o retorno dos exilados da Babilônia. “Alegrai-vos com Jerusalém e exultai com ela todos vós que a amais; tomai parte em seu júbilo, todos vós que choráveis por ela.” Aquela conhecida e belíssima ária de Verdi, que faz parte da nossa juventude, Va Pensiero, é um cântico de lamento dos hebreus no exílio, chorando e lembrando de Jerusalém. “O mia patria, si bella e perduta...” era o lamento dos hebreus às margens do rio da Babilônia sobre Jerusalém destruída. Então, após o retorno dos exilados, diz o profeta Isaías: alegrai-vos todos vós que choráveis por ela. E mais: “Diz o Senhor: 'Eis que farei correr para ela a paz como um rio e a glória das nações como torrente transbordante.” A paz chegará a Jerusalém como um rio caudaloso, levando prosperidade para esta cidade e tornando-a a glória das nações. Daí em diante, até o tempo de Cristo a cidade de Jerusalém se destacou como uma metrópole na região, vindo a sofrer nova derrota somente para os romanos, tempos depois. Esta segunda destruição de Jerusalém foi prevista por Cristo, conforme consta no evangelho de Lucas (19, 43): virá o dia em que os inimigos cavarão um fosso ao redor e sitiarão o local, levando grande angústia para os teus filhos e não deixarão pedra sobre pedra. Foi o preço pago por Jerusalém pelo fato de que os seus habitantes, além de não crerem em Cristo, ainda o crucificaram. Jerusalém não reconheceu o príncipe da paz, então aquele rio caudaloso de que falou o profeta se transformou num fosso mortal, cavado pelos inimigos, que levaram à sua destruição.


Na segunda leitura, de Paulo dos Gálatas, volta o tema da paz como sinônimo da nova criação, aquela que foi redimida pela paixão e morte de Jesus. É quando Paulo, mais uma vez doutrinando contra os judaizantes, ensina que agora está num novo tempo, quando a circuncisão e a incircuncisão já não têm valor, porque o que realmente conta é ser uma nova criatura em Jesus. Esta nova criatura se faz pelo renascimento no batismo em nome de Cristo “e para todos os que seguirem esta norma, como para o Israel de Deus, paz e misericórdia.” (Gl 6, 16). Vemos que Paulo indica a paz como fruto do batismo, da adesão ao evangelho de Cristo. A antiga aliança foi recuperada pela cruz, de modo que ele diz: “Doravante, que ninguém me moleste, pois eu trago em meu corpo as marcas de Jesus.” (Gl 6, 17). E diz mais: “ que eu me glorie somente da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele, o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o mundo.” (Gl 6, 14). Ao ser crucificado, Cristo atraiu para si os pecados de toda a humanidade, de modo que, redimindo-os, trouxe a paz a todas as pessoas de outrora e de hoje, de tal modo que não há mais distinção entre judeu e grego, entre escravo e livre, entre rico e pobre, mas todas as diferenças se diluem na graça do batismo. E o resultado que isso traz para todos é um só: paz e misericórdia.


Na leitura do evangelho, Lucas relata (Lc 10, 1-12) o envio de setenta e dois discípulos na frente de Jesus, para cidades por onde ele deveria passar depois, a fim de que preparassem o povo para a sua chegada. É curioso notar que Lucas não tenha tido interesse em citar nenhum nome desses setenta e dois enviados nem os nomes das cidades aonde eles foram. Com certeza, não foi nenhum dos doze apóstolos, a quem Jesus estava preparando para a missão futura, pois diz o evangelista (Lc 10,1), que foram escolhidos “outros setenta e dois”.. E também eles não foram a localidades muito distantes, pois o próprio Lucas relata o retorno deles (Lc 10, 17) muito contentes pelas ações miraculosas que tinham realizado: “até os demônios nos obedeceram”, disseram a Jesus.


Mas o que é também interessante nesse relato do envio dos setenta e dois discípulos são as 'regras' ditadas por Jesus para que cumprissem: não levar bolsa, nem sacola, nem sandália e não cumprimentar ninguém pelo caminho. Chegando a uma casa, dirão primeiro: a paz esteja nesta casa. Comerão os alimentos que forem oferecidos e curarão os doentes. E se não forem bem recebidos, deverão sacudir a poeira contra os habitantes. Sobre esta mesma passagem, em Mateus 10, 9, consta que não deverão levar nem ouro, nem prata, nem bens, nem duas túnicas, e manda ressuscitar os mortos, curar os doentes, limpar os leprosos, expulsar os demônios e anunciar que o reino de Deus está próximo. Lendo esses dois textos em paralelo, concluímos que esta é a mensagem de Jesus para nós, os enviados dos tempos de hoje. A diferença está em que não necessitamos sair de cidade em cidade, mas em nossos relacionamentos, em nossos ambientes de família, de trabalho e de lazer, podemos exercer essa missão, do mesmo modo como já o fizeram pessoas abnegadas, missionários do passado, que cumpriam à risca as ordens dadas por Cristo aos setenta e dois.


Pois bem, mas eu queria destacar nesse contexto a saudação que Jesus mandou fazer: a paz esteja nesta casa. Se ali houver um “amigo” da paz, a paz repousará sobre ele; do contrário, retornará para vós. Eu destaquei entre aspas a palavra “amigo” porque é a tradução oficial do texto da CNBB, no entanto, no original latino da vulgata, texto de São Jerônimo, a expressão é “filius pacis”, ou seja, filho da paz. Esta é a mesma expressão do original grego de Lucas: “yios eirenes” (filho da paz). Não sei por qual razão os tradutores da CNBB trocaram de ‘filho da paz’ para 'amigo da paz', pois me parece que ser filho da paz tem um significado muito mais profundo e denso do que apenas amigo da paz. Ser filho de Deus é muito superior a ser apenas amigo de Deus. Penso que seja senso comum na nossa cultura que o status de filho é bem mais elevado do que o de amigo, então fico realmente sem entender o motivo que leva os tradutores e alterarem assim a equivalência das palavras. Nosso Seráfico Patriarca Francisco era, com certeza, um autêntico filho da paz, não apenas amigo desta. Tomando aqui emprestado uma famosa afirmação atribuída a Sócrates, quando lhe perguntaram se ele era um sábio (“sóphos”, em grego), ele negou e disse que se considerava apenas um “philos sophia”, isto é, amigo da sabedoria. Ora, nessa mesma linha de raciocínio, um “sóphos” seria um filho da sabedoria, mas na sua humildade, Sócrates se considerava apenas um amigo da sabedoria. Podemos ver, assim, que não apenas na nossa cultura brasileira, a relação entre os conceitos de “filho” e “amigo” atribui um valor muito superior ao filho do que ao amigo. Fica difícil mesmo entender o objetivo dos nossos liturgistas oficiais, quando preparam as traduções dos textos das leituras.


Então, seguindo a norma dada por Cristo, se naquela casa morar um filho da paz, a paz recairá sobre ele; se não houver, a paz retornará para o seu emissor. A lição que devemos tirar dessa ordem de Cristo é que nós devemos ser esses filhos da paz. Quando o irmão que sofre alguma perturbação nos procura, então devemos ser esse filho da paz, que recebe a paz quando ela é emitida e também transmite a paz, quando a outra pessoa dela necessita. Para sermos distribuidores da paz, é necessário sermos filhos da paz, ou seja, é necessário que a paz habite em nós, pois só podemos distribuir aquilo que possuímos e para possuir a paz, devemos haurir seus fluidos nos ensinamentos do príncipe da paz, que é Jesus. Assim, aquele rio de paz que o profeta Isaías previu para correr em Jerusalém, após o retorno dos exilados, invadirá também o nosso coração e a paz banhará todo o nosso ser. Isso significa ser filho da paz. Isso significa que, assumindo o nosso batismo, nos tornamos novas criaturas e, como diz São Paulo aos Gálatas, para todos os que seguirem essa norma, o resultado será paz e misericórdia.


Que o Senhor nos dê a sua paz. Que o Seráfico Patriarca Francisco nos dê a sua Paz e o seu Bem.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos.

sábado, 28 de junho de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - 29.06.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO – 29.06.2025


Caros Confrades:


A liturgia do 13ª domingo comum cede espaço para a solenidade de São Pedro e São Paulo, ambos martirizados no ano 67, sob as ordens do imperador Nero. Ambos tiveram importante função na igreja cristã primitiva. Até o ano 45, Pedro chefiava a Igreja de Antioquia, a mais importante da região oriental, indo então para Roma, a convite de Paulo. E Paulo foi o grande divulgador do cristianismo no mundo greco-romano, tendo fundado também a comunidade de Roma. Ambos deram seus testemunhos de fé e perseverança, cumprindo o mandato do Mestre e seguindo-o também no martírio: Pedro através da cruz, Paulo através da espada. Pedro foi crucificado, Paulo foi degolado. A fé semeada por eles e regada com o próprio sangue frutificou intensamente em todo o continente europeu, espalhando-se daí para o solo americano.


Tendo saído de Antioquia, no ano 45, Pedro foi ser o chefe da Igreja de Roma, por isso ainda persiste até hoje a polêmica sobre a autoridade de Pedro para todas as comunidades católicas. A igreja ortodoxa de Antioquia reivindica o direito de primazia sobre Roma, pois Pedro exerceu a chefia ali por primeiro, e assim não reconhece a autoridade do Papa de Roma. Em relação às demais igrejas ortodoxas, essas não o reconhecem, no caso, cada uma delas possui seu próprio Patriarca. Desde o Papa Paulo VI, nos anos 60, iniciou-se um trabalho de aproximação de Roma com as igrejas orientais, passados 900 anos desde que houve a separação entre oriente e ocidente. O Papa Francisco trabalhou muito, estreitando sempre mais os laços entre as igrejas irmãs. O Papa Leão XIV mantém a mesma atitude, inclusive recebeu recente visita do Patriarca de Constantinopla, que o convidou a participar das comemorações dos 1700 anos do Concílio de Nicéia, que é celebrado neste ano de 2025. O mesmo interesse de unidade dos cristãos romanos e ortodoxos vem sendo manifestado, portanto, também pelos Patriarcas orientais, sinalizando uma sempre maior aproximação entre as diversas comunidades eclesiais, que se separaram no século XI..


As leituras litúrgicas deste domingo recordam fatos extraordinários atinentes à vida pessoal dos apóstolos Pedro e Paulo. Sobre Pedro, o escritor São Lucas narra, nos Atos dos Apóstolos (12, 1-11) a miraculosa libertação dele da prisão do rei Herodes, que o prendera para agradar os judeus adversários dos cristãos. Lucas destaca a liderança de Pedro e tamanho da fé que a comunidade romana tinha nele. O rei Herodes sabia da importância hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão com um esquema especial de segurança: quatro grupos de quatro soldados cada um, além dos guardas que ficavam na porta da prisão. E ainda por cima, Pedro estava amarrado com duas correntes, mas nada disso adiantou naquela ocasião em que Deus mandou o anjo para libertá-lo. O escritor sagrado destaca, neste episódio, a importância da oração da comunidade pelo seu pastor, fato que deve servir de exemplo para todos nós também nos dias de hoje. É muito comum as pessoas falarem mal dos padres e bispos quando, em certas ocasiões, se comportam de um modo não esperado ou até não condizente com o seu estado clerical. A narração de Lucas procura mostrar a integração que havia entre a comunidade de judeus convertidos e Pedro, destacando que a oração dos fiéis foi decisiva para que Deus mandasse o seu anjo para libertá-lo da prisão. A oração das nossas comunidades em prol dos seus pastores, assim como o apoio nas iniciativas da paróquia, faz parte da obrigação dos fiéis e demonstra a presença do espírito comunitário cristão.


A narrativa da libertação de Pedro tem um certo tom cinematográfico, assim como se costuma ver nos filmes de ficção científica. Na véspera do dia em que Herodes iria apresentá-lo ao público judeu, Pedro recebeu a visita do anjo do Senhor, que o conduziu para fora da prisão. Lucas diz (At 12, 9) que Pedro ficou sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele estava apenas tendo uma visão. Imaginemos a cena: Pedro dormia e despertou com uma luz, que no entanto, não despertou os soldados que dormiam ao lado dele. As correntes que lhe prendiam as mãos se soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem chamou a atenção dos demais guardas. Os portões abriram-se sozinhos diante dele e os guardas de plantão nada perceberam. Pedro seguia o anjo e via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era apenas um sonho ou realidade. Somente quando se viu do lado de fora e livre foi que tomou consciência da sua libertação miraculosa. Diz o texto que isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Podemos imaginar a grande festa que aconteceu na comunidade dos novos cristãos com a chegada de Pedro. E podemos imaginar também a ira e a decepção de Herodes, quando soube que Pedro não estava mais na prisão e ninguém sabia explicar como ele havia saído de lá. O fato é que a mão do Senhor não poderia faltar nessa hora crucial para a Igreja primitiva. A libertação de Pedro veio confirmar para a comunidade o valor da oração e atestar a proteção divina para com o seu líder.


Na segunda leitura, da Carta a Timóteo, o apóstolo Paulo, preso em Roma, diz que aguardava só a hora do seu sacrifício, expressando a sua fé e a confiança na salvação, segundo a promessa de Cristo, que ele anunciara por todas aquelas paragens. Combati o bom combate, terminei a corrida, mantive a fé, diz ele numa expressão que se transformou numa espécie de hino da vitória, que todo bom cristão pode entoar. A coroa da justiça, diz ele, está reservada não apenas para mim, mas para todo aquele que espera, com amor, a manifestação gloriosa de Cristo. As palavras de Paulo podem ser entendidas também como uma espécie de testamento espiritual, que ele depositou nas mãos do seu discípulo Timóteo, para ser distribuído com todos os cristãos. Ao chegar em Roma como prisioneiro, Paulo sabia que o seu fim estava próximo. Não foi necessário que a mão do Senhor providenciasse para ele a mesma atuação miraculosa que dedicara a Pedro, em outra circunstância similar, pois o trabalho de Paulo já estava concluído, conforme ele mesmo compreendera.


A leitura do evangelho de Mateus (Mt 16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de “pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com Pedro, porém não mencionam o detalhe das “chaves do reino do céu”, somente Mateus. Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz tal referência, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus. (Lc 9, 18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o poder do inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é um pouco diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt adversus eam”, ou seja, as portas infernais não prevalecerão contra ela. Esse trecho foi o que, por volta do século IV, deu origem à doutrina da autoridade superior do bispo de Roma sobre todas as demais igrejas, o que não é aceito pelas igrejas orientais. Sabemos, pela história, que a igreja cristã de Roma foi a última a ser constituída. As igrejas de Constantinopla, de Antioquia, de Alexandria, de Esmirna, da Capadócia, de Éfeso, da Armênia, por exemplo, são todas mais antigas do que a de Roma. Então, por que o bispo de Roma teria autoridade sobre as igrejas mais antigas? Os líderes dessas igrejas orientais nunca aceitaram esse fato, alegando adulterações no texto, o que foi objeto de calorosas discussões em diversos concílios, vindo por fim a provocar o cisma das igrejas de língua grega com a igreja de língua latina, no ano 1054. Somente após o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI começou um movimento de reaproximação da igreja romana com as igrejas orientais, o que vem sendo continuado pelos papas seguintes, com expressivos progressos. O papa Bento XVI, em sinal de deferência, nomeou como cardeais dois prelados orientais e espera-se que, num breve futuro, os elementos de discórdia sejam superados. O Papa Francisco e agora o Papa Leão continuam estreitando os laços entre católicos, judeus e islâmicos.


Pois bem, podemos concluir que Pedro e Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa reflexão, quando nos deparamos com a existência de tendências e grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de Cristo com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época. Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre deverá ser a fiel e esclarecida adesão à mensagem de Cristo, que tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo com fidelidade.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 21 de junho de 2025

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - 22.06.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O CRISTO DE DEUS – 22.06.2025


Caros Confrades,


Neste 12º domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas destacam a relação entre a cruz e o batismo, através da ação salvífica do Cristo de Deus, como assim Jesus foi definido por Pedro, pela inspiração do Espírito. Falando em particular com os doze apóstolos, depois da confissão de Pedro, Jesus revela-lhes detalhes acerca da sua futura paixão, preparando o espírito deles, para que não percam a fé, quando essas coisas terríveis vierem a acontecer e os proibe de falar a respeito de sua verdadeira identidade. Esse testemunho deveria ficar reservado para depois da ressurreição.


A primeira leitura traz um texto do profeta Zacarias, no qual há uma alusão bem explícita e direta à figura do Messias, que será torturado e morto, mas depois, esses mesmos que o matarem, irão chorar sobre o seu cadáver (Zc 12, 10): “hão de chorá-lo, como se chora a perda de um filho único,

e hão de sentir por ele a dor que se sente pela morte de um primogênito”. Este texto é reproduzido na liturgia da Semana Santa, onde se lê que “contemplarão aquele a quem traspassaram”. Trata-se de um prenúncio, com grande antecipação temporal, uma longínqua antecipação do sacrifício de cruz, considerando que a datação da profecia de Zacarias é do século IV antes de Cristo.


No versículo seguinte (Zc 12, 11), o Profeta faz referência a um dia tão calamitoso quanto aquele em que o Messias irá ser imolado, recordando que “haverá um grande pranto em Jerusalém, como foi o de Adadremon, no campo de Magedo.” O fato referido pelo Profeta é a morte do rei Josias, que pereceu em circunstâncias que poderiam ter sido evitadas, ocasionando grande comoção junto do povo. Com efeito, depois de experimentar vários reis injustos e idólatras, o povo de Israel tinha um rei bom e devotado à sua gente: Josias. Ele foi tentar impedir o trânsito do exército egípcio pelo território de Israel, numa ocasião em que o Faraó travava uma guerra contra os babilônios. Sem uma real necessidade, posto que os egípcios não perseguiam os judeus, o rei Josias tentou impedir a passagem do exército do Faraó e terminou morrendo numa batalha desnecessária. Este mártir inocente era a prefiguração do futuro Messias, que também seria inocentemente imolado. Esta primeira leitura, portanto, traz uma alusão direta ao sofrimento pelo qual o Messias teria de passar e também à reação de arrependimento que ocorreria entre aqueles mesmos que lhe causaram os sofrimentos. A começar por Judas e pelos soldados responsáveis pela crucifixão.


Na segunda leitura, continuando a carta de Paulo aos Gálatas (3, 26-29), lemos o ensinamento do apóstolo acerca da consequência mais importante que o batismo nos traz, que é o fato de sermos inseridos em Cristo e, com isso, nos tornamos herdeiros de toda a promessa que Javeh fez aos Patriarcas, desde os tempos antigos. “Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. … Sendo de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.” Pelo batismo, nós nos tornamos um em Cristo e isso nos unifica também entre nós, de modo que já não há mais distinção de raça, cor, sexo, origem, classe social, a adesão a Cristo nos torna membros de um só corpo e nos faz todos irmãos. Pelos sofrimentos na cruz, Cristo abriu para nós o acesso à casa do Pai. Pelo batismo, nos revestimos de Cristo e nos tornamos merecedores de sua graça. Observem que o batismo não apenas nos une a Cristo, mas nos reveste dEle, é muito mais profundo. O Papa Francisco, num dos seus sermões na Casa de Santa Marta, fez questão de destacar essa importante lição teológica: a porta da Igreja é o batismo, não a ordenação sacerdotal ou episcopal. Em outras palavras, isso é a tão falada e pouco compreendida sinodalidade. Trata-se de um puxão de orelhas no clericalismo reinante na Igreja, desde há muito tempo, reforçando o papel fundamental que possuem os leigos no interior da comunidade eclesial. Lamentavelmente, nossos pastores não pensam nem agem nessa direção e muitos católicos também pensam assim.


A leitura do evangelho nos mostra Jesus se revelando em particular para os apóstolos. Em Lc 9, 18-21, temos aquela conhecida passagem em que Pedro faz a definição mais perfeita de Jesus, quando responde à interrogação dele próprio sobre “quem vós achais que eu sou?” Pedro se antecipa aos demais e responde com determinação: Tu és o Cristo de Deus. Antes, Jesus havia perguntado o que o povo falava a respeito dele. Talvez algum dos antigos profetas que ressuscitou, era essa a opinião popular a seu respeito. Então, Jesus proibiu expressamente os apóstolos de ficarem falando para o povo quem ele era realmente, pois essa revelação deveria aguardar os acontecimentos futuros. E passa a dissertar sobre os detalhes do seu sofrimento iminente, usando para si mesmo a expressão “filho do Homem”: O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia (Lc 9, 22) Poderíamos questionar: por que Jesus fala sobre si mesmo como o Filho do Homem? Há para isso uma explicação interessante. Jesus se serve de uma expressão que era bem conhecida dos judeus, que em hebraico se diz “ben Adam” e que significa genericamente um ser humano, uma pessoa, um filho de Adão. Fazendo referência ao primeiro homem bíblico, que foi tirado do limo da terra (adam), Jesus usa essa expressão para representar, ao mesmo tempo, a si próprio e a todos os seres humanos, para os quais o seu sofrimento vai servir de redenção. Nesse momento, Jesus está-se referindo diretamente à sua humanidade, assumindo ser ele também um “ben Adam”, isto é, um filho da terra, assim como todos os seres humanos são. Para ilustrar melhor esse conceito, informo aos leitores que o plural dessa expressão significa, em hebraico, humanidade. Por outras palavras, Jesus está declarando que o seu ser humano vai passar por todas essas agruras. O Filho do Homem irá sofrer perseguição pelos chefes do povo, morrerá e depois ressuscitará.


Foram várias as vezes em que os apóstolos ouviram Jesus dizer isto: sofrer, morrer, ressuscitar, mas provavelmente eles só vieram a entender isso depois que esses fatos aconteceram. Judas foi um que ficou esperando, até o último momento, que Jesus fizesse uma grande demonstração de poder e liquidasse todos os inimigos de Israel. Pedro o negou por três vezes, porque não tinha compreendido o alcance daquelas palavras (sofrer, morrer, ressuscitar). João foi outro que se aproveitou do conhecimento que tinha com pessoas do palácio de Pilatos e conseguiu entrar no pretório para tentar ver o que estava acontecendo com Jesus, pois ele também não tinha entendido o sentido daquelas palavras. Aqueles dois discípulos que iam para Emaús eram outros descrentes, sem entender o que havia acontecido. Eles também não entenderam aquelas palavras. Dos demais, não se sabe, porque as reações não ficaram registradas. O certo é que, só após a ressurreição e as seguidas aparições de Jesus no meio deles, foi que começaram a juntar as ideias e compreender o que Ele havia dito. E tudo foi confirmado, depois, em Pentecostes.


E no final deste discurso, Jesus diz ainda palavras mais incompreensíveis para eles: “quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9, 24). Se eles já não tinham entendido a primeira parte, esse final era ainda mais enigmático. Quem veio trazer a explicação desse enigma foi Paulo, na epístola aos Gálatas, lida no domingo passado (Gl 2, 20): “Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim. Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou.” Quem quer salvar a sua vida, isto é, quem quer viver segundo seus próprios desígnios, sem seguir os ensinamentos de Cristo, vai ao final se perder, se destruir. Mas quem se deixar guiar pelos ensinamentos de Cristo, pode parecer que está perdendo o seu tempo e a sua vida, mas pela fé alcançará a salvação. A vida na carne, a vida material não pode fechar-se sobre si mesma, buscando acumular cada vez mais, possuir cada vez mais, desfrutar cada vez mais, porque quem age assim vai perdê-la. A vida material deve ser vivida na fé e na caridade, crendo no Filho do Homem e seguindo os seus ensinamentos. O cristão não abandona a vida material, a vida na sociedade, não recusa a posse dos bens materiais, mas vive tudo isso, possui tudo isso com espírito de solidariedade, utilizando esses bens a serviço dos irmãos. Isso é possível porque, pelo batismo, nos revestimos de Cristo e assim a nossa vida material se constrói numa vivência de fé, sabendo administrar os bens materiais em vista do bem de todos.


Que a lição de Paulo aos Gálatas possa se transformar no lema da nossa vida cristã.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 14 de junho de 2025

COMENTARIO LITURGICO - DOMINGO DA SANTISSIMA TRINDADE - 15.06.2025

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 15.06.2025


Caros Confrades,


A liturgia celebra hoje a festa da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático catequético, que se inicia com o Advento, passando pela Quaresma e a Páscoa, até o domingo de Pentecostes. A festa da Trindade Santa sintetiza toda a doutrina cristã, que tem no Antigo Testamento a manifestação do Deus Criador, e no Novo Testamento, as manifestações do Filho Redentor e do Espírito Santificador. A partir do próximo domingo, retornam os domingos do tempo comum, até o começo do próximo ano litúrgico, que retoma o tempo do Advento, dando início a um novo ciclo.


A fé na Santíssima Trindade é a verdade central do cristianismo, o grande mistério revelado por Jesus, que só se esclareceu definitivamente após o sopro do Espírito Santo. No Antigo Testamento, o conhecimento da divindade era unipessoal apenas, isto é, o Deus dos patriarcas havia se manifestado a Abraão e prometeu-lhe uma grande descendência, mas sequer disse o seu nome. Moisés foi o primeiro que teve a ousadia de perguntar o nome DELE, no episódio dramático do monte Sinai e ouviu como resposta um enigmático EU SOU (ehyeh, em hebraico, palavra que evoluiu depois para yhwh (javé) -יהוה). Isso era tudo que os hebreus sabiam acerca do Pai. Após vários episódios de submissão do povo hebreu, os profetas começaram a anunciar a vinda de um Messias, o Salvador. Quando veio Jesus, ele trouxe a revelação de que “Ele e o Pai são um só”. Terminada a sua missão, Jesus prometeu que o Pai enviaria o Paráclito, aquele que viria esclarecer tudo. Foi em Pentecostes que a revelação da Trindade se completou. Este é o mistério dos mistérios, aquele que perpassa toda a dimensão da fé cristã. Dizer que é um “mistério” significa que o conhecimento dessa verdade foi a grande revelação que Jesus veio trazer e tentou explicar com vários exemplos, mas isso não é possível de ser alcançado somente com o uso da razão, pois é necessário que venha a fé em suplemento, para possibilitar a compreensão. Quem não se recorda daquele verso que cantávamos no Tantum ergo: praestet fides suplementum sensuum defectui. (que a fé forneça suplemento ao defeito (limitação) dos sentidos)?


Sob o ponto de vista da teologia católica, os conceitos de revelação e mistério se atraem mutuamente. O mistério é aquela verdade que a nossa razão precisa aprender a identificar, o que só ocorre com a ajuda da fé. Os teólogos criaram um conceito recente (quanto eu estudei teologia, ainda não existia) para simbolizar esse aprendizado que a razão tem com a ajuda da fé: mistagogia. É uma combinação das palavras gregas “mysterion” (revelação) com “agogé” (ensinar). A revelação tem esse componente pedagógico de conduzir a razão pelos caminhos obscuros da fé. Embora o mistério da Trindade seja o fundamento e o alicerce de toda a fé cristã, ele só foi alcançado e esclarecido bastante tempo depois, dada a sua complexidade. Por isso, a compreensão sobre a Trindade conduziu a muitas discussões nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas doutrinas, depois consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Jesus é filho de Deus, mas não é igual a ele, Jesus seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma única natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os primeiros núcleos do cristianismo e foram objeto de muitos debates, antes de serem finalmente rejeitadas por decisões conciliares.


A definição oficial foi aprovada em dois Concílios: Niceia e Constantinopla. No Concílio de Niceia, em 325 (neste ano, comemora-se o aniversário de 1.700 anos), os padres conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”, a oração do Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que ficasse mais fácil de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi depois aperfeiçoada no Concílio de Constantinopla, em 381, porque no concílio anterior não ficara definida claramente a natureza do Espírito Santo. Assim é que o Credo atualmente rezado na liturgia é também chamado de símbolo niceno-constantinopolitano, porque sua redação passou pelos dois concílios. Em relação ao Filho, o Concílio de Niceia definiu que o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual acentua que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador, porque foram criadas. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. A “palavra” se fez carne, diz o evangelista João. Observemos que João afirmou isso por volta do ano 100, ou seja, esse entendimento sobre a natureza do Filho como Verbo de Deus já era conhecido na época de João. E também afirma-se que o Espírito é o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa potência racional não consegue alcançar, mas apenas a fé nos dá esta certeza.


Faz pouco tempo, eu li na internet uma matéria, onde se afirmava que a doutrina trinitária não foi inventada no cristianismo, mas é uma doutrina pagã, aproveitada pelo cristianismo. Diversas divisões protestantes negam a Trindade e algumas facções racionalistas do cristianismo também. Recusam-se a aceitar a Trindade, porque afirmam que na Bíblia, em diversas passagens, Yhvh afirma ser ele o “único” Deus e não pode haver outro. Afirmam ainda que em religiões mais antigas do que o cristianismo há também suas “trindades”, como por exemplo, no hinduismo, a trindade seria Brahma (deus da criação), Vishnu (deus da manutenção) e Shiva (deus da destruição). No antigo Egito, havia diversas “trindades”, como é o caso de Hórus, Isis e Osiris. Meus amigos, as pessoas que afirmam isso não conhecem a doutrina da Trindade católica. Esses exemplos pagãos são trios de três deuses distintos, diferentemente da trindade unitária cristã, em que o Pai, Filho e Espírito Santo não são três deuses, mas são um único Deus. E também não a entendem aqueles que se justificam dizendo que Yhvh se apresentou como o “único” Deus, pois a Trindade é um único Deus, não há contradição aí. O que falta a essas pessoas é a “fidei suplementum”, isto é, o suplemento da fé, elas querem entender tudo apenas pela razão e confundem as coisas, assim como fez S. Agostinho, naquela famosa cena em que ele viu o menino tentando colocar a água do mar num buraco da areia. Depois que S. Agostinho percebeu o tamanho da sua ingenuidade e petulância, então fez uma descoberta fascinante. Intelligo ut credam, credo ut intelligam (entendo para crer, creio para entender). Assim, ele pode finalmente solucionar a sua dúvida.


Nas leituras litúrgicas de hoje, temos na segunda leitura, um trecho da carta de Paulo aos Romanos (5, 1-5), onde o Apóstolo ensina que “estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo... porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. ” Paulo escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo, antes mesmo da escrita dos evangelhos, quando a doutrina da Trindade ainda estava em fase de elaboração, daí o seu ensinamento acerca da Trindade não ser tão direto como no evangelho de João, escrito muitos anos depois. Porém, vê-se o modo como Paulo demonstra a interligação entre as três pessoas divinas: o Pai criador, o Filho mediador, o Espírito que nos inunda. A comunidade de Roma, a quem Paulo se dirigia, era a mais eclética de todas pela própria condição da cidade, que era então a verdadeira capital do mundo e onde viviam pessoas das mais diversas procedências, costumes, idiomas e também crenças. Sem deixar de considerar que também, naquela época, o cristianismo era uma religião proscrita, perseguida, e só podia ser ensinada e praticada às escondidas. Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para apresentar a fé na Trindade aos romanos de uma maneira que fosse mais apropriada para ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais didática possível esta doutrina. Em Roma, havia muita influência da cultura grega nas classes sociais mais ricas, que eram o público preferencial da pregação de Paulo, dada a sua formação acadêmica. Paulo atendia às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e os outros atendiam às outras comunidades.


Em resumo, Jesus é a chave para o conhecimento da Trindade. E, para concluir, uma breve lição de S. Tomás de Aquino: “A fé católica consiste em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma é a divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos