domingo, 26 de outubro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - O MAIOR MANDAMENTO - 26.10.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – O MAIOR MANDAMENTO – 26.10.2014

Caros Confrades,

Na liturgia deste 30º domingo comum, o tema central enfoca a questão do maior mandamento da lei divina. Desde a antiguidade bíblica, o profeta Moisés apresentou ao povo hebreu a lista com os mandamentos, isto é, com as determinações divinas para serem por eles cumpridas. O primeiro da lista é exatamente o amor de Deus, conforme consta em Êxodo cap.20 e com mais detalhes em Deuteronômio 6,5. No Antigo Testamento, eles são listados em número de dez. No evangelho, Jesus os resume a dois. E Santo Agostinho, nos seus comentários bíblicos, resume a um só: ama e faze o que quiseres.

Na primeira leitura, extraída do livro do Êxodo (22, 20-26), vemos que nas lições iniciais de Javeh ao povo hebreu já constava o cuidado com o próximo, o amor ao próximo, que Jesus iria enfatizar mais tarde. No trecho lido hoje, Javeh instrui o povo a tratar bem os estrangeiros: “Não oprimas nem maltrates o estrangeiro, pois vós fostes estrangeiros na terra do Egito. Não façais mal algum à viúva nem ao órfão. Se os maltratardes, gritarão por mim, e eu ouvirei o seu clamor.” (Ex 22, 20) O estrangeiro, nesse contexto, é a figura do próximo, que só iria aparecer no evangelho. Não era esse o costume antigo, isto é, tratar bem os estrangeiros. Esses eram potenciais inimigos, não faziam parte do povo, por isso deviam ser tratados com reserva e de forma diferente dos irmãos de sangue. Na Roma antiga, era assim também o costume em relação aos não romanos. Os estrangeiros eram excluídos da sociedade, não possuíam direitos, eram explorados em seus serviços e não podiam reclamar dos maus tratos, porque não tinham o sangue romano. E Javeh lembra ao povo: vós também fostes estrangeiros na terra do Egito e sofrestes humilhações, por isso, deveis ter um comportamento diferente dos povos pagãos. E diz mais: o estrangeiro maltratado recorrerá a Mim e “minha cólera, então, se inflamará e eu vos matarei à espada; vossas mulheres ficarão viúvas e órfãos os vossos filhos”. (Ex 22, 23) Ou seja, neste caso, Javeh se voltará contra o seu próprio povo, para vingar os maus tratos feitos aos estrangeiros.

É interessante a liturgia chamar a atenção para esse comportamento que não era comum na época e que Javeh determinava para o seu povo. Digo determinava, porque isso era um mandamento, não era um conselho, uma recomendação. E pairava uma gravíssima ameaça contra quem não cumprisse. Curiosamente, essa regra do “amor ao próximo” não foi bem assimilada pelos doutores da lei, sendo necessário que Jesus viesse a chamar a atenção para isso. Basta lembrar aquela famosa parábola do “bom samaritano”, que foi contada por Jesus quando um dos fariseus perguntou a Ele: quem é o meu próximo. Outra regra interessante colocada nesse contexto é a não cobrança de juros dos empréstimos aos estrangeiros. Assim era também a prática dos romanos. Se o contrato de empréstimo era entre romanos, era proibida a cobrança de juros; mas se fosse entre um romano e um não romano, então aí podia. Os judeus também não cobram juros entre eles próprios, no entanto, todos nós conhecemos a história do enriquecimento dos judeus europeus no período anterior às guerras mundiais, pela sua habilidade em negociar com os não judeus cobrando juros, a ponto de despertar a ganância do governo “quebrado” da Alemanha, após a depressão econômica de 1930, levando-os ao holocausto. Por incrível que pareça, isso está na Torah deles, porém sempre foram palavras mortas na hora de colocar em prática. Até parece que sofreram a vingança do próprio Javeh, quando prometeu que os mataria à espada, caso praticassem a usura.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 1, 5-10), o Apóstolo os exalta porque, pelo seu comportamento, eles se tornaram modelo para as demais comunidades da Macedônia e da Acaia. Diz Paulo: nem é mais preciso que eu diga nada, porque “as pessoas mesmas contam como vós nos acolhestes e como vos convertestes, abandonando os falsos deuses, para servir ao Deus vivo e verdadeiro ” (1Ts 1, 9). Aquela cidade de Tessalônica era a capital da Macedônia, um importante porto comercial e um local estrategicamente colocado no meio das grandes estradas romanas, de modo que para lá acorriam muitas pessoas de diversificadas culturas, então Paulo tinha a preocupação para que a semente do cristianismo ali lançada por ele não fosse suplantada por essa variedade de povos e costumes. Daí o seu motivo de felicidade quando soube, através de Timóteo e Silvano, que os cristãos de lá continuavam firmes na fé e até influenciavam os estrangeiros, servindo-lhes de exemplo. Uma outra característica dessa carta é a crença que Paulo tinha, no sentido de que o “retorno” de Cristo estava próximo, assim era o entendimento de então, Jesus havia ressuscitado mas logo logo retornaria. O próprio Paulo parecia acreditar que ele ainda estaria vivo, quando Jesus retornasse. Por isso, lê-se no versículo 10: Jesus, que nos livra do castigo, está por vir. Consta que essa carta foi escrita por volta do ano 50 d.C., ou seja, nessa época a doutrina cristã ainda era muito incipiente e muitas questões ainda não estavam amadurecidas na reflexão teológica. Essa da vinda de Cristo era uma delas.

Na leitura do evangelho, retirada de Mateus (Mt 22, 24-30), lemos outra disputa doutrinária entre Jesus e os fariseus, que mais uma vez tentavam apanhá-lo em alguma contradição e por isso testavam Seu conhecimento das escrituras. Daí que diz o evangelista: para testá-Lo, perguntaram: Mestre, qual é o maior mandamento da lei? E Jesus, demonstrando que conhecia a lei de Moisés melhor do que eles próprios, dá a resposta que eles já sabiam: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!” (Mt 22, 37). Essa frase está contida textualmente em Deuteronômio 6, 5 e eles queriam ver se Jesus dizia algo diferente, mas com essa resposta, Jesus não os surpreendeu. A surpresa veio quando Ele continuou e disse também o segundo mandamento, algo que eles nem tinham perguntado: “Não procurem vingança nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor.” (Levitico 19, 18). Isso, sim, foi novidade para eles, sobretudo quando Jesus completou a resposta dizendo: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.(Mt 22, 40). Talvez, eles esperassem que Jesus fosse citar os mandamentos na sua forma tradicional, como eles (fariseus) costumavam fazer. E Jesus outra vez os surpreende. O amor ao próximo já estava determinado na Torah e eles, fariseus, não haviam se tocado para isso. A religião era, para eles, uma relação puramente vertical com Javeh, cada um por si, individual e privadamente. E a surpresa foi ainda maior quando Jesus falou que o segundo mandamento era semelhante ao primeiro. Não basta amar a Deus sobre todas as coisas, se não somos capazes de amar o próximo como a nós mesmos.

Observemos que Jesus repete a lei antiga, demonstrando que ela continuava em vigor, que Ele não veio mudar a lei, e sim aperfeiçoá-la. E o aperfeiçoamento consiste exatamente nessa nova visão da religião voltada para a comunidade, para o próximo. Assim como se deve amar a Deus com todo o coração, toda a alma e todo o entendimento, assim também se deve amar o próximo. O Padre João Mohana, conhecido escritor maranhense que fez sucesso literário nos anos 70, dizia uma frase, que eu acho muito criativa e nunca esqueci: Deus mandou que nos amássemos, não que nos amassemos. Um trocadilho bem interessante, que nos mostra o quão difícil é amar o próximo, tão difícil que os fariseus haviam “esquecido” esse trecho da lei, como se não fosse necessário. E é importante observarmos também as três dimensões do amor a Deus e ao próximo: com todo o coração, ou seja, o amor emotivo, espontâneo, intuitivo; com toda a alma, ou seja, o amor sobrenatural, divino transcendente; com todo o entendimento, ou seja, o amor racional, esclarecido, voluntário e intencional. Os povos antigos, que não tinham muito conhecimento sobre a anatomia humana, pensavam que o ser humano tinha três “almas”, sendo que uma delas se localizava no coração (fonte da emoção), outra se localizava nos rins (fonte da agressividade) e outra na inteligência (fonte da racionalidade). Assim era a doutrina de Platão, que naturalmente não foi inventada por ele, mas sistematizada nos seus escritos, algo que era comum nas culturas antigas. Com isso, devemos entender que o nosso amor a Deus e ao próximo não admite reservas nem limitações, mas deve envolver o nosso ser inteiro, com todas as nossas forças e potencialidades.

****

domingo, 19 de outubro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - O CIDADÃO E O CRISTÃO - 19.10.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – O CIDADÃO E O CRISTÃO - 19.10.2014

Caros Confrades,

Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas chamam a nossa atenção para a conduta do cristão, que deve ser exemplar também como cidadão. Em plena campanha eleitoral, essa advertência chega em hora bastante oportuna, porque devemos refletir cristãmente acerca do nosso papel como cidadãos no momento de optar pelo voto civil, porque é na sociedade que vivenciamos a nossa religião. Simpatias, antipatias, interesses, aversões não podem ser os parâmetros para a nossa decisão na hora de votar, e sim o nosso compromisso com a nossa fé e com a justiça social.

A primeira leitura, do livro do profeta Isaías (45, 1-6), mostra o imperador persa Ciro II, como o governante ungido por Javeh sem que o próprio soubesse, porque Javeh o havia escolhido para ser o libertador do povo de Israel. Com efeito, Ciro derrotou os exércitos de Nabucodonosor e deu a liberdade aos hebreus, que se encontravam no cativeiro da Babilônia. A habilidade militar de Ciro II fez dele o monarca do maior reino que se viu naquele tempo, além de ter sido um rei tolerante com os inimigos vencidos, dado o seu bom coração. Tudo isso fez com que os hebreus entendessem na pessoa dele um enviado de Javeh e, ao retornarem para a Palestina, os hebreus tornaram-se seus aliados políticos, fazendo com que o reinado dele ganhasse ainda maior território. Conforme já tive ocasião de comentar alhures, o livro do profeta Isaías, a partir do cap 45, é chamado pelos biblistas como “deutero Isaías”, ou segundo Isaías, pois os fatos que aborda são historicamente posteriores à morte de Isaías. No caso, Isaías morreu no ano 681 a.C., enquanto o reinado de Ciro II teve início em  559 a.C., e a libertação dos hebreus cativos se deu em 539 a.C., ou seja, mais de um século após a morte de Isaías. O deutero Isaías foi escrito pelos discípulos do profeta, dando continuidade ao seu vaticínio. Em várias passagens anteriores, Isaías havia prenunciado a libertação do povo, quando chegasse o momento escolhido por Javeh. Então, os seus discípulos quiseram mostrar que o Profeta havia acertado suas previsões.

Durante muito tempo, os estudiosos acreditaram que o texto completo houvesse sido escrito por Isaías, mas a crítica histórica que começou a organizar os livros da Bíblia, a partir do final do século XIX, confrontando os relatos bíblicos com os fatos da história universal, chegou a essa distinção entre o proto Isaías, escrito pelo Profeta mesmo, e o deutero Isaías, escrito por seus discípulos. Na fé do povo hebreu, o grande império que Ciro II veio a formar, mesmo ele não sendo crente em Javeh, no entanto, isso mostra o poder de Javeh, que é insuperável por qualquer outro deus. “ Armei-te guerreiro, sem me reconheceres, para que todos saibam, do oriente ao ocidente, que fora de mim outro não existe. Eu sou o Senhor, não há outro.” Santo Agostinho, interpretando essa tradição hebraica de sempre perceber a presença de Javeh nos eventos históricos, mostrando a ação divina através desses acontecimentos, criou uma doutrina conhecida como “teologia da história”, que está exposta no seu livro A Cidade de Deus, e que representa uma grande contribuição dele para a cultura ocidental.

Na leitura do evangelho (Mt 22, 15-21), lemos aquele famoso diálogo de Jesus com os fariseus, acerca da moeda do tributo. Temos lido, nesses domingos sucessivos, diversas altercações de Jesus com os fariseus, narradas por Mateus sempre com a finalidade de mostrar a dureza dos seus corações e para justificar o fato de que o evangelho fora anunciado aos pagãos, porque aqueles para quem a mensagem se destinava, recusaram-se a recebê-la. Por diversas vezes, os fariseus armaram ciladas para apanharem Jesus em algum passo em falso e essa foi uma das mais ardilosas que eles tramaram. De fato, eles colocaram Jesus num beco sem saída, porque qualquer resposta que Ele desse seria comprometedora. O povo hebreu amargava o fato de estar dominado pelos romanos e uma das consequências dessa dominação era o pagamento de pesados impostos. Pagar imposto ao imperador romano era uma humilhação para os hebreus, além de que era uma sangria na economia da região. Vários protestos se levantaram contra o pagamento desses impostos, sendo que o grupo mais revoltado com essa situação eram os zelotes, que tentavam convencer o povo a sonegar, porém esse era um risco enorme e os castigos para os omissos era cruel. Consta que Judas Iscariotes pertencia ao grupo dos zelotes e tinha a idéia de que Cristo iria liderar uma grande rebelião do povo contra os romanos, expulsando-os do seu território. Teria sido esse o motivo pelo qual Judas se aproximou de Jesus e também teria sido esse o motivo pelo qual, no final das contas, entregou Jesus aos romanos e depois suicidou-se, porque ficara desiludido quando percebera que Jesus não iria liderar revolta nenhuma.

Então, nesse contexto político de grande insatisfação, se Jesus dissesse que não era para pagar os tributos, Ele estaria se pondo contra os romanos e os fariseus teriam um motivo forte para acusá-lo. E se ele dissesse que o tributo era lícito, atrairia para si a ira do povo que o seguia, porque todos tinham aquele pagamento como iníquo e injusto. Porém, Jesus percebeu desde logo o embuste em que queriam lançá-lo e os desmascarou de uma forma totalmente inesperada: se vocês usam a moeda romana, então paguem aos romanos o que eles cobram; por outro lado, se vocês dirigem suas orações a Javeh, então façam isso com a mesma fidelidade. E os fariseus, como se diz no popular, tiveram que enfiar a viola no saco e sair pra cantar em outra freguesia. Eu me referi, há pouco, ao livro de Santo Agostinho “A Cidade de Deus”, pois bem, lá ele coloca as coisas mais ou menos nos seguintes termos: nós somos cidadãos do mundo e também cidadãos do céu, um fato está inteiramente incluído no outro, não há como separar. E nem é isso necessário, porque a nossa salvação é alcançada a partir da nossa vida na comunidade e nós não precisamos deixar de ser cidadãos para ser cristãos. A nossa cidadania celeste é construía juntamente com a nossa cidadania terrena, uma não obstrui nem substitui a outra. Ao contrário, elas se sustentam reciprocamente. O que Jesus quer de nós é que vivamos a nossa cidadania civil exercitando nela os deveres e compromissos da nossa fé. Nós não somos cristãos apenas quando vamos à igreja, quando rezamos o terço, quando damos esmolas, quando fazemos leitura espiritual, etc. No nosso dia a dia do trabalho, das relações sociais, dos círculos de amizade, das atividades de lazer, em tudo o nosso comportamento deve demonstrar a nossa opção de vida e de fé cristã.

Nesse período eleitoral, é comum ouvir-se falar algo assim: católico não vota em candidato comunista, porque o comunismo é contrário à religião. Meus amigos, isso é falta de conhecimento tanto do que é o catolicismo quanto do que é o comunismo. Não estou dizendo aqui que não haja divergências doutrinárias sérias entre as duas ideologias, mas sim que a desinformação de certas pessoas as leva a fazerem juízos precipitados, baseados em noções estereotipadas e distorcidas do que sejam as doutrinas políticas. Esse é o grande problema que impede que certos grupos católicos aceitem e admitam a chamada “teologia da libertação”. E muitos setores da Cúria Romana também estão nesse patamar. A legislação canônica proibe os sacerdotes de participarem da eleição para cargos políticos, dependendo de licença especial do Bispo para isso. Enquanto isso, temos dezenas de políticos, em todas as esferas, oriundos das igrejas cristãs não católicas, defendendo as causas de seus fiéis. Vejamos o quanto a comunidade católica “perde” politicamente por causa de uma regra bastante questionável e de finalidade prática duvidosa. Dizem os canonistas que os leigos católicos é que devem exercer essas atividades, do que ninguém irá discordar. Contudo, nem todos os católicos têm tendência e habilidade para o exercício da função política e o Direito Canônico não deveria inibir os clérigos, que se entendem chamados a esse mister, de assumi-lo em nome da fé.

Aproveitando esse mesmo viés, quero fazer um brevíssimo comentário sobre o Sínodo das Famílias, que se encerra hoje no Vaticano. Lamentavelmente, não saiu da mesmice, da tradição, do engessamento doutrinário. Nada de concreto para as situações novas e cruciais, que são enfrentadas todos os dias pelos cristãos e pelos párocos, só palavreado retórico e vazio. As diretrizes lançadas corajosamente pelo Papa Francisco foram totalmente boicotadas por pessoas sem qualquer sensibilidade social e humanística, que estão mais interessados em ajeitar seus barretes para saírem bem na foto. Fico aqui imaginando a decepção do Seráfico Papa e peço a Deus que ele não esmoreça no seu mister de trazer o catolicismo para dentro da realidade social do mundo de hoje.

****

domingo, 5 de outubro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - A VINHA DO SENHOR - 05.10.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – A VINHA DO SENHOR – 05.10.2014

Caros Confrades,

Neste 27º domingo comum, o tema da liturgia se concentra na imagem da vinha do Senhor, representando a casa de Israel. Jesus repete, no seu sermão contra os fariseus, a mesma imagem do profeta Isaías 700 anos antes. Os doutores da lei ouviram e nada entenderam. Só faltou mesmo Jesus dar os “nomes dos bois”. Mas isso também acontece conosco, quando nós estamos tão embevecidos com a nossa soberba e autossuficiência, de modo que não conseguimos ver a mensagem de Deus através dos acontecimentos.

Na primeira leitura, o profeta Isaías fala de Jerusalém usando a figura da vinha, construída pelo seu proprietário, e arrendada a vinhateiros, que dela não cuidaram devidamente. Resultado: em vez de produzir bons frutos, produziu uvas selvagens. Para a nossa realidade, a figura do vinhedo não é tão significativa, como é, por exemplo, para os gaúchos, donos dos mais famosos vinhedos do nosso país. Por não ser uma realidade típica do ambiente nordestino, a leitura do evangelho não proporciona uma exata visão da metáfora usada por Jesus. Talvez se ele tivesse comparado com um roçado de milho e feijão, fosse uma figura mental mais apropriada para a nossa compreensão cultural. De todo modo, era um tema bastante comum para o povo de Israel, assim como o arrendamento dessas plantações para agricultores, o que se tornava um assunto bem familiar para eles. E nem era preciso grande esforço para alcançar o sentido figurado da imagem, porque o Profeta explicou bem claramente: “a vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel, e o povo de Judá, sua dileta plantação; eu esperava deles frutos de justiça — e eis injustiça; esperava obras de bondade — e eis iniquidade.” (Is 5, 7) A época histórica vivida pelo profeta Isaías foi um período de grandes convulsões sociais e políticas, em que a nação hebraica vivia em permanente ameaça de invasão por estrangeiros, principalmente egípcios e assírios. O Profeta alertava para o perigo da idolatria e consequente afastamento de Javeh, que ameaçava: “vou mostrar-vos o que farei com minha vinha: vou desmanchar a cerca, e ela será devastada; vou derrubar o muro, e ela será pisoteada” (Is 5, 5). Por fim, depois de tanto falar e não ser ouvido pelas autoridades, consta que o profeta Isaías foi serrado ao meio, por ordem do rei, sendo assim a sua morte. O que ocorreu logo depois foi a derrota dos assírios para os babilônios e, por causa da aliança que o rei de Israel havia feito com os assírios, os babilônios invadiram Jerusalém e levaram o povo cativo. Aconteceu exatamente como o Profeta anunciara.

Temos neste domingo um salmo responsorial totalmente contextualizado com a primeira leitura, como se fosse uma continuação desta. Consta ser esse um salmo de Assaf, um personagem que viveu na época pós-exílica, quando ocorria a reconstrução de Jerusalém. O salmista personifica a alma do hebreu arrependido, que compreendeu o castigo merecido do exílio e agora pede perdão a Javeh, prometendo não mais afastar-se dele. “E nunca mais vos deixaremos, Senhor Deus!/ Dai-nos vida, e louvaremos vosso nome!/ Convertei-nos, ó Senhor Deus do universo,/ e sobre nós iluminai a vossa face!/ Se voltardes para nós, seremos salvos!”, diz ele, após ter feito uma súplica de arrependimento: “Voltai-vos para nós, Deus do universo!/ Olhai dos altos céus e observai./ Visitai a vossa vinha e protegei-a!” O texto do salmo reflete o ânimo predominante no povo hebreu, naquele momento de retorno à terra prometida. Consta, no livro das Crônicas (1Cro 16, 7) que Assaf foi encarregado por Davi para ser o chefe dos cantores que vinham à frente da Arca da Aliança, quando essa relíquia foi trazida de volta para Jerusalém, após a libertação do povo e que os filhos dele foram os cantores que levaram a Arca para o templo, já no tempo de Salomão, após a restauração. Desse modo, a salmodia funciona, ao mesmo tempo, como eco e como complementação da leitura do profeta Isaías.

Temos na leitura do evangelho de hoje (Mt 21, 33-43), outra parábola contada por Cristo, na tentativa de ser entendido pelos fariseus e seus doutores da lei. Os dois domingos anteriores trouxeram algo similar, todavia, nessa parábola da vinha, Jesus foi perfeitamente claro e os fariseus entenderam a história contada, só não compreenderam que aquilo tinha a ver com eles. Eles já conheciam o discurso sobre a vinha, feito pelo profeta Isaías, porque na condição de doutores da lei e sacerdotes judeus, a Torah era o seu livro de leitura diária na sinagoga, não havia como não relacionar de imediato a parábola contada por Jesus com a advertência do profeta, em época histórica diversa. Percebe-se, pela leitura, que os fariseus ficaram indignados com a reação daqueles “vinhateiros rebeldes”, pois sugeriram que eles deviam ser castigados com morte violenta e a vinha devia ser entregue a outros operários. Porém, a sua mente preconceituosa contra Jesus não permitia que eles enxergassem, na Sua pessoa, a figura do “filho do dono da vinha”. E assim, a história contada por Jesus entrou nos ouvidos deles como “história de trancoso”, como se Jesus estivesse apenas testando o senso de justiça deles.

O evangelista Mateus, no versículo 39, coloca na boca de Jesus a previsão do que iria acontecer com Ele, algum tempo depois, por ação dos fariseus instigando o povo: “Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram.” Outra vez, a figura da vinha representava a cidade de Jerusalém, para fora da qual Jesus foi levado a fim de ser crucificado. E ainda segundo o evangelista Mateus, Jesus teria encerrado dizendo que: o reino de Deus será tirado de vocês e será entregue a outro povo, que produzirá bons frutos”. (vers 43) Na minha opinião pessoal, diria que essa parte final não deve ter feito parte da parábola original contada por Jesus aos fariseus, porque assim Ele estaria sendo direto demais e até grosseiro, esse não era o estilo de Jesus. Parece-me mais um “comentário” feito pelo evangelista por ocasião da produção do seu texto, pois aquele evangelho se destinava aos convertidos de Antioquia, um grupo composto por judeus da diáspora e por pagãos de outras nacionalidades, todos afastados do judaísmo tradicional. Por isso, Mateus faz questão de salientar que o reino de Deus, que outrora havia sido entregue nas mãos dos judeus (leia-se fariseus), agora havia sido retirado deles e passado para os outros povos. Como se sabe, as palavras de Jesus não foram escritas na hora em que ele falava, mas foram guardadas na mente e na fé dos seus seguidores, que se encarregaram de divulgá-la, após a sua morte e ressurreição. Por isso, não se pode entender o texto do evangelho como se fossem palavras literalmente pronunciadas por Jesus, mas sim como testemunhos das verdades por Ele ensinadas.

Meus amigos, aproveito o espaço para fazer uma referência à memória litúrgica do Seráfico Patriarca São Francisco, celebrada ontem. Esta é, de longe, a grande festa religiosa do nordeste, fazendo ecoar em diversas localidades o hino “cheio de amor, as chagas trazes do Salvador.” É curioso como algumas pessoas têm uma vida breve, porém muito fecunda. São Francisco viveu apenas 44 anos e foi canonizado logo dois anos após sua morte. Quantas realizações fez ele em tão curto espaço de tempo vivido, quanta densidade na sua biografia e nos seus exemplos e ensinamentos. A imagem do santo pobre e humilde se encaixou muito bem no tipo cultural do povo nordestino, de modo que a empatia foi instantânea e profunda. Está fazendo cerca de um século que os primeiros frades chegaram nas terras nordestinas (Maranhão, final do século XIX e Ceará, início do século XX), trazendo a bandeira de São Francisco e a sua presença cativante e amiga. Nós somos testemunhas vivas e herdeiros dessa formação franciscanista, que cada um incorporou ao seu modo. Os diversos santuários e as diversas obras sociais espalhadas por diferentes cidades atestam a presença vibrante do franciscanismo no meio da sociedade nordestina. É certo que não foi apenas no nordeste que se desenvolveu a devoção a São Francisco, mas é também certo que é no nordeste onde essa devoção tem seus adeptos mais fervorosos e suas marcas mais visíveis. Basta lembrar a gigantesca estátua de São Francisco, em Canindé, não tenho certeza, mas deve ser a maior do mundo erguida para este Santo. Isso mostra, numa dimensão material, o tamanho da credibilidade que São Francisco tem entre o nosso povo.

E pensar que ele, na sua sincera humildade, não pretendia jamais tal popularidade nem tanta fama. No entanto, nele se cumpriu aquilo que Maria falou quando recebeu a saudação do anjo: pôs os olhos na humildade de sua serva e por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada. A vida de São Francisco e a obra dos seus seguidores vem comprovar, sem nenhuma dúvida, que Deus exalta os humildes. O nosso Papa Francisco é uma pessoa que, no nosso tempo, incorpora a alegria e a humildade franciscanas, fato que vem conquistando a simpatia de pessoas das mais diversas origens e crenças ao redor do mundo. É a prova de que o carisma franciscano continua atual e ativo, numa época em que o mundo tanto necessita de pessoas com esse perfil. Seráfico Pai São Francisco, rogai por nós.

****