COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – O CIDADÃO E O CRISTÃO - 19.10.2014
Caros Confrades,
Neste 29º domingo comum, as leituras litúrgicas chamam a nossa atenção para a conduta do cristão, que deve ser exemplar também como cidadão. Em plena campanha eleitoral, essa advertência chega em hora bastante oportuna, porque devemos refletir cristãmente acerca do nosso papel como cidadãos no momento de optar pelo voto civil, porque é na sociedade que vivenciamos a nossa religião. Simpatias, antipatias, interesses, aversões não podem ser os parâmetros para a nossa decisão na hora de votar, e sim o nosso compromisso com a nossa fé e com a justiça social.
A primeira leitura, do livro do profeta Isaías (45, 1-6), mostra o imperador persa Ciro II, como o governante ungido por Javeh sem que o próprio soubesse, porque Javeh o havia escolhido para ser o libertador do povo de Israel. Com efeito, Ciro derrotou os exércitos de Nabucodonosor e deu a liberdade aos hebreus, que se encontravam no cativeiro da Babilônia. A habilidade militar de Ciro II fez dele o monarca do maior reino que se viu naquele tempo, além de ter sido um rei tolerante com os inimigos vencidos, dado o seu bom coração. Tudo isso fez com que os hebreus entendessem na pessoa dele um enviado de Javeh e, ao retornarem para a Palestina, os hebreus tornaram-se seus aliados políticos, fazendo com que o reinado dele ganhasse ainda maior território. Conforme já tive ocasião de comentar alhures, o livro do profeta Isaías, a partir do cap 45, é chamado pelos biblistas como “deutero Isaías”, ou segundo Isaías, pois os fatos que aborda são historicamente posteriores à morte de Isaías. No caso, Isaías morreu no ano 681 a.C., enquanto o reinado de Ciro II teve início em 559 a.C., e a libertação dos hebreus cativos se deu em 539 a.C., ou seja, mais de um século após a morte de Isaías. O deutero Isaías foi escrito pelos discípulos do profeta, dando continuidade ao seu vaticínio. Em várias passagens anteriores, Isaías havia prenunciado a libertação do povo, quando chegasse o momento escolhido por Javeh. Então, os seus discípulos quiseram mostrar que o Profeta havia acertado suas previsões.
Durante muito tempo, os estudiosos acreditaram que o texto completo houvesse sido escrito por Isaías, mas a crítica histórica que começou a organizar os livros da Bíblia, a partir do final do século XIX, confrontando os relatos bíblicos com os fatos da história universal, chegou a essa distinção entre o proto Isaías, escrito pelo Profeta mesmo, e o deutero Isaías, escrito por seus discípulos. Na fé do povo hebreu, o grande império que Ciro II veio a formar, mesmo ele não sendo crente em Javeh, no entanto, isso mostra o poder de Javeh, que é insuperável por qualquer outro deus. “ Armei-te guerreiro, sem me reconheceres, para que todos saibam, do oriente ao ocidente, que fora de mim outro não existe. Eu sou o Senhor, não há outro.” Santo Agostinho, interpretando essa tradição hebraica de sempre perceber a presença de Javeh nos eventos históricos, mostrando a ação divina através desses acontecimentos, criou uma doutrina conhecida como “teologia da história”, que está exposta no seu livro A Cidade de Deus, e que representa uma grande contribuição dele para a cultura ocidental.
Na leitura do evangelho (Mt 22, 15-21), lemos aquele famoso diálogo de Jesus com os fariseus, acerca da moeda do tributo. Temos lido, nesses domingos sucessivos, diversas altercações de Jesus com os fariseus, narradas por Mateus sempre com a finalidade de mostrar a dureza dos seus corações e para justificar o fato de que o evangelho fora anunciado aos pagãos, porque aqueles para quem a mensagem se destinava, recusaram-se a recebê-la. Por diversas vezes, os fariseus armaram ciladas para apanharem Jesus em algum passo em falso e essa foi uma das mais ardilosas que eles tramaram. De fato, eles colocaram Jesus num beco sem saída, porque qualquer resposta que Ele desse seria comprometedora. O povo hebreu amargava o fato de estar dominado pelos romanos e uma das consequências dessa dominação era o pagamento de pesados impostos. Pagar imposto ao imperador romano era uma humilhação para os hebreus, além de que era uma sangria na economia da região. Vários protestos se levantaram contra o pagamento desses impostos, sendo que o grupo mais revoltado com essa situação eram os zelotes, que tentavam convencer o povo a sonegar, porém esse era um risco enorme e os castigos para os omissos era cruel. Consta que Judas Iscariotes pertencia ao grupo dos zelotes e tinha a idéia de que Cristo iria liderar uma grande rebelião do povo contra os romanos, expulsando-os do seu território. Teria sido esse o motivo pelo qual Judas se aproximou de Jesus e também teria sido esse o motivo pelo qual, no final das contas, entregou Jesus aos romanos e depois suicidou-se, porque ficara desiludido quando percebera que Jesus não iria liderar revolta nenhuma.
Então, nesse contexto político de grande insatisfação, se Jesus dissesse que não era para pagar os tributos, Ele estaria se pondo contra os romanos e os fariseus teriam um motivo forte para acusá-lo. E se ele dissesse que o tributo era lícito, atrairia para si a ira do povo que o seguia, porque todos tinham aquele pagamento como iníquo e injusto. Porém, Jesus percebeu desde logo o embuste em que queriam lançá-lo e os desmascarou de uma forma totalmente inesperada: se vocês usam a moeda romana, então paguem aos romanos o que eles cobram; por outro lado, se vocês dirigem suas orações a Javeh, então façam isso com a mesma fidelidade. E os fariseus, como se diz no popular, tiveram que enfiar a viola no saco e sair pra cantar em outra freguesia. Eu me referi, há pouco, ao livro de Santo Agostinho “A Cidade de Deus”, pois bem, lá ele coloca as coisas mais ou menos nos seguintes termos: nós somos cidadãos do mundo e também cidadãos do céu, um fato está inteiramente incluído no outro, não há como separar. E nem é isso necessário, porque a nossa salvação é alcançada a partir da nossa vida na comunidade e nós não precisamos deixar de ser cidadãos para ser cristãos. A nossa cidadania celeste é construía juntamente com a nossa cidadania terrena, uma não obstrui nem substitui a outra. Ao contrário, elas se sustentam reciprocamente. O que Jesus quer de nós é que vivamos a nossa cidadania civil exercitando nela os deveres e compromissos da nossa fé. Nós não somos cristãos apenas quando vamos à igreja, quando rezamos o terço, quando damos esmolas, quando fazemos leitura espiritual, etc. No nosso dia a dia do trabalho, das relações sociais, dos círculos de amizade, das atividades de lazer, em tudo o nosso comportamento deve demonstrar a nossa opção de vida e de fé cristã.
Nesse período eleitoral, é comum ouvir-se falar algo assim: católico não vota em candidato comunista, porque o comunismo é contrário à religião. Meus amigos, isso é falta de conhecimento tanto do que é o catolicismo quanto do que é o comunismo. Não estou dizendo aqui que não haja divergências doutrinárias sérias entre as duas ideologias, mas sim que a desinformação de certas pessoas as leva a fazerem juízos precipitados, baseados em noções estereotipadas e distorcidas do que sejam as doutrinas políticas. Esse é o grande problema que impede que certos grupos católicos aceitem e admitam a chamada “teologia da libertação”. E muitos setores da Cúria Romana também estão nesse patamar. A legislação canônica proibe os sacerdotes de participarem da eleição para cargos políticos, dependendo de licença especial do Bispo para isso. Enquanto isso, temos dezenas de políticos, em todas as esferas, oriundos das igrejas cristãs não católicas, defendendo as causas de seus fiéis. Vejamos o quanto a comunidade católica “perde” politicamente por causa de uma regra bastante questionável e de finalidade prática duvidosa. Dizem os canonistas que os leigos católicos é que devem exercer essas atividades, do que ninguém irá discordar. Contudo, nem todos os católicos têm tendência e habilidade para o exercício da função política e o Direito Canônico não deveria inibir os clérigos, que se entendem chamados a esse mister, de assumi-lo em nome da fé.
Aproveitando esse mesmo viés, quero fazer um brevíssimo comentário sobre o Sínodo das Famílias, que se encerra hoje no Vaticano. Lamentavelmente, não saiu da mesmice, da tradição, do engessamento doutrinário. Nada de concreto para as situações novas e cruciais, que são enfrentadas todos os dias pelos cristãos e pelos párocos, só palavreado retórico e vazio. As diretrizes lançadas corajosamente pelo Papa Francisco foram totalmente boicotadas por pessoas sem qualquer sensibilidade social e humanística, que estão mais interessados em ajeitar seus barretes para saírem bem na foto. Fico aqui imaginando a decepção do Seráfico Papa e peço a Deus que ele não esmoreça no seu mister de trazer o catolicismo para dentro da realidade social do mundo de hoje.
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