COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO
COMUM – INCOERÊNCIA DA FÉ – 30.08.2015
Caros Leitores,
Neste 22º domingo comum, o cântico da
comunhão sintetiza a mensagem do evangelho: o mal que sai de nós e
vem do coração impuros, sim, nos faz. A liturgia nos convida a
refletir sobre a qualidade da nossa prática religiosa. Temos
atitudes coerentes com o que afirmamos ou praticamos uma religião de
fachada? A nossa fé está integrada na nossa vida ou praticamos a
vida dupla: na igreja somos orantes, fora dela somos maledicentes? O
espírito farisaico, criticado por Jesus naquele tempo, ronda sempre
os templos e as vidas dos crentes.
A primeira leitura litúrgica é
retirada do livro do Deuteronômio (4, 1), mas antes de ingressar no
seu conteúdo, vejamos uma curiosidade etimológica. A palavra
“deuteronômio” é de origem grega, no entanto, este livro faz
parte do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) e foi
escrito em hebraico. Por que tem esse nome grego, então?
Deuteronômio, em grego, significa literalmente “segunda lei”,
porém o nome original deste livro, em hebraico, é Devarim e
significa “coisas”. Lembro-me bem que o Padre Uchoa, meu
professor de Bíblia, dizia que o papiro com esse manuscrito foi
encontrado por pedreiros que faziam uma reforma no altar do templo de
Jesuralém. Era um rolo muito antigo, que estava enterrado sob a
pedra do altar. Ao lê-lo, os escribas verificaram que se tratava de
uma espécie de “repetição” ou adaptação dos discursos de
Moisés, contendo muitas orientações práticas sobre a vida do
povo, tendo sido escrito, provavelmente, quando os israelitas já
estavam bem próximo de adentrarem a terra prometida, ou seja, no
final da vida de Moisés. Assim se entende porque carrega esses dois
nomes: deuteronômio (segunda lei, repetição da lei) e devarim
(coisas, aspectos práticos da sociedade hebraica). Sempre devemos
ter em mente que, naquela época em que não havia separação entre
estado e religião e que as autoridades religiosas e estatais eram as
mesmas, era perfeitamente comum que as normas sociais e estatais se
confundem com preceitos religiosos. Assim era não apenas entre os
hebreus, mas entre todas as sociedades primitivas. Quem tiver
interesse em ler mais aprofundadamente sobre esse assunto, sugiro o
livro “A Cidade Antiga”, da autoria de Fustel de Coulanges.
Pois bem, passando ao texto, Moisés
fala ao povo sobre as leis e decretos dados por Javeh aos seus
ancestrais, lembrando a eles a exigência da fidelidade a essas
normas, como uma maneira de demonstrar sabedoria diante dos povos
vizinhos, porque nenhum dos deuses dos outros povos tinha este mesmo
cuidado com os seus seguidores do que o Deus de Abraão. Diz o vers.
6: “Vós
os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está
vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo
todas estas leis, digam: 'Na verdade, é sábia e inteligente esta
grande nação! ”
Os fariseus gostavam muito do Deuteronômio, porque havia nele uma
grande diversidade de preceitos, os quais eles procuravam decorar
para observar e também para fiscalizar se os demais hebreus os
estavam observando.
Segundo os estudiosos, os fariseus
fizeram um resumo de cerca de 600 preceitos, em geral, proibitivos,
coletando-os dessas leis antigas. Eram esses preceitos que
determinavam coisas (devarim) básicas de saúde, como, por exemplo,
lavar as mãos antes das refeições, tomar banho quando chegavam da
praça pública, jejuar nos dias estabelecidos, dar esmolas, etc.
Para facilitar a memorização, fizeram uma espécie de tabela com
especificações bem detalhadas. A questão que Jesus pôs para eles,
desafiando-os, era porque dentro do excessivo formalismo deles, quem
cumprisse aquilo rigorosamente era um bom crente, quem não os
cumpria estava desobedecendo a lei. Desse modo, se a norma mandava
que, no dia de jejum, o máximo que alguém podia ingerir era, por
exemplo, 300g de alimento, então era preciso pesar na balança as
refeições para não passar dessa cota, sob pena de descumprir o
preceito. Ou seja, a sua preocupação era exagerada em relação aos
detalhes exteriores, no entanto, intimamente eles podiam ser
desonestos, maledicentes, exploradores, caluniadores, injustos,
porque essas atitudes interiores não contavam, mas somente o que
eles faziam externamente.
Esta leitura tem, pois, conexão direta
com o evangelho de Marcos (7, 6), que narra mais uma das altercações
entre Jesus e os fariseus, estes sempre tentando apanhá-lo em algum
deslize. Viram que os discípulos de Jesus não lavaram as mãos
antes de iniciarem a refeição e então eles foram interpelar Jesus
perguntando 'por que os discípulos dele não cumpriam a lei de
Moisés'? Jesus lançou-lhes em rosto o texto de Isaías: “Bem
que Isaías falou a respeito de vocês: este
povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim.
De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam
são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para
seguir a tradição dos homens'
” (Mc 7, 6). Os fariseus argumentavam que aquela era uma tradição
dos antigos, fazendo referência não exatamente à lei de Moisés,
mas aos costumes dos ancestrais, por isso Jesus os censurou porque
deixaram de lado a verdadeira lei divina e se ampararam nas
tradições. Daí que Jesus disse: vocês não entenderam nada, não
é nada disso, porque se importam muito com o exterior, mas no seu
íntimo os seus pensamentos não são coerentes com as suas atitudes.
Trazendo para os dias atuais, meus amigos, essa atitude hipócrita
dos fariseus ainda pode ser encontrada nos cristãos que se benzem
quando passam diante do templo, mas viram o rosto para não
oferecerem ajuda a um irmão necessitado, que está sentado na porta.
De que adianta apresentar exteriormente um comportamento quando o
interior é vazio? De que adianta andar com o terço na mão, o
escapulário pendurado no pescoço, a Bíblia embaixo do braço e ter
a mente ocupada com frivolidades, o coração cheio de más
intenções? Daí o veredito de Cristo: esse povo me honra só com os
lábios, mas o coração deles tem outro dono. E completou: o que
torna impura a pessoa não é o que entra nela vindo de fora, mas o
que sai dela vindo do seu interior. O alimento ingerido sem lavar as
mãos pode até, eventualmente, causar algum dano à saúde, mas pior
do que isso é a maldade que sai distilada em palavras e atitudes,
que causam danos mais desastrosos à felicidade das outras pessoas. E
isso é o que realmente importa.
Portanto, Cristo está nos ensinando
que a verdadeira religião é a que se pratica ao nível do coração,
do entendimento, da intencionalidade e que se expressa em atos de
caridade. Ter um comportamento contrito e piedoso quando está dentro
do templo não é suficiente, se ao sair de lá essa contrição e
essa piedade não se revelarem no relacionamento com os irmãos. Não
se quer dizer que a oração, a piedade não são boas coisas, de
modo nenhum, são ótimas atitudes. O erro está no descompasso, na
incoerência entre o interior e o exterior. O nosso agir deve ser uma
expressão concreta do nosso pensar, bem como a recíproca atitude.
Por diversas vezes, Jesus brandiu contra os fariseus por causa disso.
Por exemplo: quando jejuardes, não precisa por cinzas na cabeça e
andar com roupa esfarrapada para que os outros vejam, porque o Pai do
céu sabe do que se passa no vosso coração; quando derdes esmolas,
fazei-o de forma reservada e não alardeando publicamente, de modo
que não saiba a tua mão direita o que faz a tua esquerda. A
verdadeira religião, a verdadeira fé é a que começa no
pensamento, no coração e se traduz em atitudes relacionadas.
E agora uma breve mensagem sobre a
segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (1, 17), que reforça
essa mensagem com seu conselho aos judeus da diáspora: “sede
praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós
mesmos. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai,
é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações.
” Quem não pratica a religião que ensina aos outros está se
enganando a si próprio, como se diz na linguagem de hoje, é uma
'empresa fantasma', tem só a aparência, armadilha com o intuito de
ludibriar os incautos. A verdadeira religião é a que se revela nas
obras de caridade, como fruto do amor ao próximo. A referência aos
órfãos e viúvas reflete uma realidade daquele tempo e hoje deve
ser entendida como “os irmãos necessitados”, começando com
aqueles que estão mais próximos de nós. De forma direta ou
indireta, através de entidades e associações que prestam esse tipo
de serviço, a sociedade de hoje, talvez mais do que no tempo do
apóstolo Tiago, necessita desse nosso exemplo de solidariedade.
***