COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO
COMUM – AINDA O PÃO – 09.08.2015
Caros Leitores,
Pelo terceiro domingo seguido, a
liturgia coloca em perspectiva o tema do pão: o pão vivo, o pão
que dá vida, o pão da palavra, o pão da eucaristia, aquele que é
penhor da vida eterna. Desta vez, Jesus vai responder aos comentários
maldosos dos judeus, que se admiraram ao ouvirem-no falar que ele é
o pão descido do céu. Eles conheciam o pai, a mãe, os familiares
de Jesus e sabiam a sua origem, como podia ter ele vindo do céu?
Difícil de entender, sob a ótica linear e humanística traçada
pelos judeus daquele tempo e, com todo respeito, também os de hoje,
para os quais Jesus não passa de judeu famoso, nada mais do que
isso.
Na primeira leitura litúrgica,
retirada do primeiro Livro dos Reis, o pão vivo do Novo Testamento
(Jesus Cristo) está prefigurado naquele pão especial, com que o
anjo alimentou Elias no deserto, o qual lhe deu sustança para
caminhar durante quarenta dias e quarenta noites. Embora fosse
especial, este pão do deserto saciava a fome corporal apenas, mas
não tinha o condão de preservar quem o comesse para a vida eterna.
E, como é bastante comum ocorrer nos textos do Antigo Testamento,
faz-se aqui mais uma referência à simbologia do número 40, que
deve ser entendida no sentido alegórico, não no sentido literal da
contagem matemática. Sempre que a simbologia do número 40 está
presente na Escritura, indica que algo extraordinário e grandioso
está por acontecer. O pão trazido a Elias pelo anjo deu-lhe alento
para caminhar durante quarenta dias e quarenta noites, sem sentir
fome, até chegar ao monte Horeb (Sinai), para onde ele se dirigia,
obedecendo a ordem de Javeh. Esse é o sinal do poder daquele pão.
É importante salientar que o nome
Elias significa “Javeh é meu Deus” e este profeta teve um papel
importantíssimo na defesa do monoteísmo hebraico, na época em que
o povo hebreu passava por um período de vacilação na sua fé
religiosa. A missão do Profeta era trabalhar junto às comunidades
da região do Sinai, para que abandonassem os deuses pagãos e
retornassem ao seu único Deus, Javeh. Ocorre que Elias não
conseguia sensibilizar aquele povo para ouvir suas palavras e
retornar ao seguimento da aliança e estava assim por demais
desgastado com a dureza dos seus corações. Passando de aldeia em
aldeia, anunciando a ordem de Javeh, ele não percebia a esperada
adesão por parte dos seus coirmãos de fé. Elias então entrou numa
verdadeira crise existencial. Parecia que Javeh tinha dado a ele uma
missão impossível. Além da incredulidade do povo, o cansaço
físico e a dificuldade de se alimentar, porque ele não era bem
recebido por onde andava.
Naquele dia, em meio a essa crise,
atravessando uma região desértica, padecendo em consequência da
fome e da descrença dos hebreus, Elias surtou. Deitou-se no chão,
na sombra do junípero e disse a Javeh: agora basta, Senhor, podeis
tirar a minha vida, eu não tenho forças para cumprir a missão que
me destes. E adormeceu. Foi despertado por um anjo, que lhe trouxe
para refeição um pão assado sob as cinzas, que ele comeu e dormiu
novamente. Daí a pouco, o anjo o acordou de novo e deu-lhe outra
porção do pão, que ele comeu outra vez e pronto. Com este
alimento, Elias não teve mais fome nem cansaço e pôde terminar sua
tarefa, percorrendo toda a região do deserto, até chegar ao Sinai.
A região atravessada por Elias é
aquela grande península do Sinai, pertencente hoje ao Estado de
Israel, que ao longo da história tem sido objeto de intermináveis
contendas e a paz ainda não se fixou por ali, desde os tempos
bíblicos. Vejamos que Elias, que viveu no século IX antes de
Cristo, já não conseguia ter paz ao atravessar aquela região, do
mesmo modo que os seus atuais habitantes.
Na leitura do evangelho de João (6,
41-51), Jesus falara ao povo de sua cidade natal que Ele é o pão
descido dos céus. Pra que ele disse isso... os conhecidos ficaram
logo a cochichar entre si: nós o conhecemos, não é Ele o filho de
José e Maria? Por que ele diz que desceu do céu? Foi por isso que
Jesus, depois, se lamentou: É isso mesmo, ninguém consegue ser
profeta na sua própria terra. (Lucas, 4, 24). Era difícil explicar
aos conterrâneos que ele é o pão vivo descido do céu e quem comer
deste pão não morrerá eternamente. Teve de justificar que somente
aqueles a quem o Pai atraiu poderá reconhecê-lo como pão do céu.
“Ninguém
pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai.”
(Jo 6, 44) Ou seja, numa perspectiva puramente humanística, não
havia condição de alguém reconhecer em Jesus o Filho de Deus, era
necessário que os seus conterrâneos primeiramente aceitassem o Pai,
através dos ensinamentos de Jesus, para que então pudessem entender
a que tipo de pão Ele estava se referindo.
E Jesus aproveitou para dizer que os
antepassados deles haviam comido outro pão descido do céu, o maná
solicitado por Moisés, quando estavam no deserto, todavia não era
aquele tipo de pão o que Jesus trazia, porque o pão do deserto não
livrava da morte eterna. Já o pão vivo, que era ele próprio, traz
a recompensa da vida eterna a quem com ele se alimenta. Lembrando-nos
dos domingos anteriores, em que comentei aqui outras passagens
evangélicas com essa mesma temática do pão, fiz referência a que
o pão vivo, que é Cristo, não alimenta apenas o corpo material,
mas também a alma espiritual, daí porque Ele produz como resultado
a vida eterna. Aquela multidão que buscou Jesus após o milagre da
multiplicação dos pães buscava tão somente, outra vez, o pão
material e Jesus fê-los ver que o pão que alimenta o corpo não
pode estar separado do pão que alimenta o espírito.
Desse modo, o pão vivo, que é Cristo,
não é apenas a sua carne por ele entregue para a vida do mundo. É
necessário que o pão=carne seja consumido juntamente com o
pão=palavra, com a mensagem de sua doutrina. A catequese que se
desenvolveu no Brasil ao longo do tempo não foi capaz de demonstrar
ao nosso povo a necessidade de unir essas duas dimensões do pão do
céu (corpo de Cristo): a palavra e a eucaristia. Sempre foi mais
enfatizada a obrigação de comungar, porque com a comunhão, nós
nos unimos ao próprio Cristo, Ele ingressa no nosso ser. Sem dúvida,
isso é verdade. No entanto, aqui temos apenas a metade do seu
ensinamento. Para que este pão eucarístico produza o efeito que
Cristo prometeu (“quem come deste pão viverá eternamente”) é
necessário unir a comunhão eucarística com o cumprimento dos
mandamentos de Cristo (“amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a si mesmo”), ou seja, com a ingestão do pão da
palavra e do pão eucarístico, pelos quais tanto o corpo quanto o
espírito se alimentam e fortalecem.
A participação no sacramento da
eucaristia, quando não é acompanhada da prática dos ensinamentos
de Cristo, equivale àquela advertência de Paulo de que não se deve
comer e beber indignamente o Corpo e o Sangue de Cristo (1Cor 11,27).
Tradicionalmente, sempre se ensinou que isso ocorre com quem vai
comungar sem ter-se confessado antes. Ao meu ver, come e bebe
indignamente o Corpo e o Sangue de Cristo quem dissocia o pão da
eucaristia do pão da palavra, porque o pão vivo, que é Cristo, só
está completo com essas duas funções. Foi isso que Ele ensinou,
nas diversas passagens que lemos nos últimos domingos, em que a
temática do pão vem sendo repetida e reforçada. Jesus somente deu
o pão da sua carne aos Apóstolos na última ceia, depois de passar
três anos instruindo-os com o pão da palavra. Ele afirmou, por
várias vezes, que quem comesse da sua carne teria a vida eterna,
todavia, ele só demonstrou como seria isso após todo o período de
catequese dos Apóstolos, quando eles já haviam absorvido suficiente
quantidade dos seus ensinamentos.
Só uma breve palavra sobre do conceito
de “carne”, que aparece diversas vezes nesse discurso acerca do
pão. A palavra grega em referência é 'sarx', que se traduz por
carne, porém, o seu significado vai além da carne=músculo, como
costumamos entender em português. De fato, sarx significa qualidade
de ser humano, ser vivo e pensante, é como se Jesus tivesse dito
“quem come a minha humanidade”, isso é bem mais amplo e profundo
do que a carne meramente corporal. Lembremo-nos, a propósito, de
outra passagem do evangelho, onde diz que “o Verbo se fez carne”,
o que significa: o Verbo tornou-se gente, transformou-se em ser
humano.
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