COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DA QUARESMA – LUZ NAS TREVAS – 26.03.2017
Caros Leitores,
Neste 4º domingo da quaresma, a
liturgia retorma com o tema da água, assim como foi no domingo
passado, com o poço de Jacó. Hoje, lemos o caso do cego a quem
Jesus mandou ir lavar-se na piscina de Siloé (o Enviado), ficando
assim curado e passou a ver a luz. São Paulo aos efésios recorda:
agora, sois luz e não mais deveis andar nas trevas. O propósito
dessas leituras relacionadas com o elemento água relembra uma antiga
tradição dos primórdios do cristianismo, quando os catecúmenos se
preparavam para receber o batismo na vigília pascal, chamando a
atenção para o simbolismo da água, que lava o corpo e purifica
também o espírito.
Na primeira leitura, do livro de Samuel
(1Sam 16, 1-13), narra-se a unção de Davi como futuro rei de
Israel. Samuel foi mandado por Javé para ir até a casa de Jessé e
ali ungir um dos seus filhos, o qual Samuel não sabia quem era.
Chegando lá, ficou tentando adivinhar e passou cada um sem que Javeh
confirmasse nenhum. Mas a sua viagem até lá não poderia ser em
vão, faltava um dos filhos de Jessé, justamente o caçula, o
escolhido. Davi foi ungido, mas não se tornou logo rei, porque então
Saul ainda vivia. Somente após a morte deste, Davi foi aclamado rei,
porém, teve de enfrentar a disputa com Isboset, um descendente de
Saul, que também fora aclamado rei, causando a divisão do povo.
Após a morte deste e com grande habilidade, Davi conseguiu reunir
todos os israelitas sob o seu comando, unificando o povo de Deus.
Davi é um dos personagens centrais do Antigo Testamento, pela
escolha especial de Javeh sobre ele, pelos grandiosos feitos
realizados, pela sabedoria que ele sempre demonstrou, de modo que
todos os profetas anunciaram que o Messias surgiria de alguém
descendente de Davi. E assim o foi. O que não significa que ele
nunca tenha sido censurado por Javeh, basta lembrar o famoso episódio
da sua cobiça por Betsabé, esposa do seu general Urias, a quem ele
ordenou que se arriscasse numa zona de combate, vindo assim a morrer
e Davi casou- se com a viúva. É verdade que Davi fez muita
penitência por causa disso, quando foi repreendido pelo profeta
Natan, mas não largou Betsabé. Percebe-se que a Bíblia não traz
apenas relatos exemplares do procedimento dos líderes do povo
hebreu, mas apresenta também suas fraquezas, mostrando que, apesar
disso, Javeh não os desautorizava. Para nós, fica a certeza de que
Deus não nos abandona, apesar das nossas fraquezas, mas está sempre
do nosso lado, vem sempre em nosso socorro.
Na segunda leitura, da carta de Paulo
aos Efésios (Ef 5, 8-14), o apóstolo evolui com o tema da luz,
dizendo que os cristãos são filhos da luz, portanto, devem
renunciar às coisas das trevas. A cidade de Éfeso era uma das
maiores da sua região, sendo a capital da chamada Ásia Menor,
território que hoje corresponde à Turquia. Em Éfeso, havia um
grande templo em homenagem à deusa grega Ártemis (que os romanos
chamavam de Diana),
deusa da lua
e da caça.
Esse templo era
considerado uma das sete maravilhas da antiguidade. As festas
religiosas pagãs ali celebradas anualmente eram muito famosas e
atraíam pessoas de todas as partes da região, dominada pelos
romanos. Essas festas eram verdadeiras bacanais, com profusão de
bebidas e licenciosidades. Daí Paulo adverte aos efésios para que
não se comportem como antes, quando ainda estavam no paganismo, mas
sejam fiéis à sua conversão à doutrina de Cristo. Com firmeza,
ele os conclama: “Outrora
éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da
luz.
E
o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade.
Discerni
o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que
não levam a nada; antes, desmascarai-as.”
(Ef 5, 8-11) Os rituais pagãos ainda representavam uma grande
tentação aos convertidos e, certamente, alguns se deixavam levar
pelos antigos costumes. Mas o tema da luz também serve como ponte
para a leitura do evangelho, quando Cristo cura o cego de nascença,
dando-lhe a luz dos olhos. Paulo faz uma espécie de trocadilho com a
oposição de conceitos luz-trevas, que tanto se relaciona com o
contexto da visão corporal quanto também com a visão espiritual,
decorrente da conversão. Os efésios, antes do evangelho, eram como
cegos que não conheciam a luz da verdade. Por isso, não devem agora
retroceder ao estado anterior.
Na leitura do evangelho de João (9,
1-38), temos a narração do longo trecho referente à cura de um
cego de nascença, cujo milagre os fariseus teimavam em não aceitar.
Trata-se de um texto destinado à catequese dos novos cristãos
gregos. João descreve o episódio da cura do cego com grande riqueza
de detalhes, destacando a messianidade de Cristo e a incredulidade
dos fariseus. João aponta ainda para o simbolismo da água da
piscina de Siloé, local que é referido por diversas vezes na
Bíblia, sendo um poço muito antigo, nos arredores de Jerusalém,
que era utilizado como fonte de abastecimento de água da cidade e
era também local de abluções rituais por ocasião da festa dos
Tabernáculos.
Nessa narração da cura do cego, há
vários detalhes importantes a serem destacados. Primeiro, o fato de
que Jesus, como ocorreu em outras ocasiões, não realizou
diretamente o milagre, ele apenas o iniciou. Fez uma gosma de areia
com saliva e colocou nos olhos do cego, mandando que ele fosse
lavar-se em Siloé. Era como se Jesus estivesse pondo à prova a fé
daquele homem. Ele poderia não ter ido a Siloé, poderia ter se
lavado em outro lugar e o milagre não teria se completado. Ele
acreditou em Jesus e acreditou também no poder das águas rituais de
Siloé, assim como Naaman, o sírio, foi banhar-se no rio Jordão, a
mando do Profeta. Isso indica que os milagres divinos não acontecem
como passes de mágica, mas Deus se serve da nossa participação
para realizar seus feitos admiráveis. Ele inicia a tarefa e deixa
para que nós a completemos, tal como fez o cego do evangelho.
Em segundo lugar, temos a associação
entre a cegueira e o pecado. Era comum, na cultura hebraica,
relacionar um infortúnio, uma calamidade, uma doença a um castigo
de Javeh pelo pecado de alguém. A narrativa do livro de Jó fora um
ensinamento inserido na literatura religiosa hebraica com o intuito
de bloquear essa crença cultural antiga, mas ela persistia mesmo
assim. Os discípulos logo perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os
pais, para que nascesse cego? (Jo 9, 2) João faz questão de inserir
esse diálogo na narrativa certamente porque, no seu tempo, essa
tradição ainda era sintomática no pensamento dos judaizantes e os
catecúmenos precisavam romper com isso. Jesus deu-lhes uma resposta
muito elucidativa: nem uma coisa nem outra, mas isso aconteceu para
que se manifestasse nele a glória de Deus. Trazendo o fato para a
nossa vida cotidiana, devemos estar cientes de que os infortúnios
acontecem para que, através deles, se manifeste a glória de Deus na
nossa vida. Assim deve ser a dimensão da nossa fé. Jesus veio
ensinar, de forma definitiva, que o Deus castigador apresentado no
Antigo Testamento era uma visão deturpada desenvolvida pelos antigos
hebreus, pois na verdade, Deus é amor.
Em terceiro lugar, podemos notar a
caturrice dos fariseus, teimando em não aceitar o óbvio. Pediram ao
ex-cego que relatasse várias vezes o episódio, duvidaram que ele
fosse mesmo um cego e que estivesse apenas fingindo, alegaram que o
cego era outra pessoa parecida com ele, não ele próprio, foram
entrevistar os pais do ex-cego para confirmar a história, lembraram
que aquele dia era um sábado e, portanto, alguém da parte de Deus
não poderia fazer aquilo no sábado, porque estaria contrariando a
lei divina, enfim, buscaram de várias formas justificar sua
incredulidade. E o ex-cego contava sempre a mesma história. Por fim,
não tendo mais como refutar a veracidade do caso, apelaram para
ignorância, porque o cego disse que Jesus era um profeta: tu
nasceste no pecado e estás querendo nos ensinar? E o expulsaram da
cidade. (Jo 9, 34)
Na missa de encerramento do encontro do
VII Ensese, em Paracuru, neste domingo, o nosso confrade Bosco fez
uma observação, que achei muito interessante e pertinente, a ele
peço licença para incluir aqui. Ele recordou as palavras finais do
texto de João, quando os fariseus perguntaram a Jesus: Será que nós
somos cegos? A resposta de Jesus foi uma martelada na cabeça deles:
“Se fôsseis cegos, não teríeis culpa” (Jo 1, 41), mas como
dizeis que enxergais, então são culpados pela cegueira moral. Meus
amigos, devemos estar atentos para não agirmos assim como os
fariseus, deixando de reconhecer Jesus no rosto do irmão que nos
procura e pede a nossa ajuda. Às vezes, somos demasiadamente
incrédulos diante dos acontecimentos e o nosso orgulho não nos
permite ver a mão de Deus agindo na história e nos conclamando a
fazermos a nossa parte. Ficamos esperando um milagre automático e
não nos damos conta de que Deus espera a nossa participação, para
que os milagres aconteçam, esquecemos que Ele age por nosso
intermédio. Lembremo-nos sempre do conselho paulino: agora que somos
luz, deixemos a luz brilhar em nós.
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