COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO
DA QUARESMA – A LEI E OS PROFETAS – 12.03.2017
Caros Leitores,
Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. Após abordar a temática das “tentações” de Cristo, a liturgia faz uma antecipada demonstração da sua futura glória. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra está na origem de toda a tradição, que tem seu ponto culminante na pessoa de Cristo. E nesse tempo de penitência, recordamos a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho, tal como ele (Paulo) também está sofrendo como prisioneiro dos romanos.
Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. Após abordar a temática das “tentações” de Cristo, a liturgia faz uma antecipada demonstração da sua futura glória. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra está na origem de toda a tradição, que tem seu ponto culminante na pessoa de Cristo. E nesse tempo de penitência, recordamos a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho, tal como ele (Paulo) também está sofrendo como prisioneiro dos romanos.
Na primeira leitura, lemos o desafio
que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu
vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas
as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os estudos de
hebraico bíblico que venho fazendo, o nome do livro, que nós
chamamos Gênesis, no idioma original se diz Bereshit e significa o
início, o princípio. O significado de Gênesis lembra mais a ideia
de criação do mundo. No entanto, verificamos que a narração da
criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap.
3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os
primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A
leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança
de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se
que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da
maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou
Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste
escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, a origem da aliança
de Javeh com os patriarcas, não propriamente a criação do mundo.
Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de
compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe
quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que
Abrão partiu e fez conforme o Senhor havia dito.
O autor sagrado quer destacar, nesse
contexto, duas coisas: primeiro, a fé inabalável do seu patriarca
Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para
onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a
caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu
lugar (Ur, na Caldeia) e foi seguindo as ordens de Javeh. Segundo,
essas narrativas também serviam para explicar ao povo hebreu,
descendente dos patriarcas, o motivo de serem eles um povo nômade.
Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os
povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo
que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um
trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em
nenhum território. A ligação desse texto com o evangelho do dia
(narrativa da transfiguração de Jesus) está na referência de ser
Cristo o ponto culminante daquela antiga aliança, o cumprimento
perfeito da promessa feita por Javeh aos primeiros patriarcas.
Na segunda leitura, o trecho da carta
de Paulo a Timóteo lhe recomenda a sofrer com paciência as agruras
decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por
Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e,
por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor,
região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era
levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado
com Timóteo a árdua missão de ser o continuador do trabalho dele,
pois Paulo sabia que não mais retornaria ali. Naquela ocasião,
Timóteo enfrentava um sério problema com os judeus adversários de
Paulo, que haviam sido responsáveis pela sua prisão. E não eram
apenas perseguições ideológicas, mas também ameaças físicas.
Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta dirigida a
Timóteo, exorta-o a perseverar na fé assim como ele, Paulo, também
estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de
Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus
seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para
toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e
dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente
importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou
seu avanço até os dias de hoje.
Na leitura do evangelho de Mateus (17,
1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de
Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha
desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de
todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua
maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do
grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo
mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a
Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz
que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão
de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e
Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor)
filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições,
como 'irmão” de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a
identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário
fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco,
podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração
seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.
Importa explicar aqui nesse contexto o
significado de “irmão”, pois isso é motivo de polêmicas entre
algumas igrejas cristãs. Com efeito, a palavra grega “adelphos”,
que se traduz geralmente por irmão, também significava primo,
meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante
próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a
crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser
este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de
João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que
acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o
respeito. Trata-se de uma questão polêmica, sem dúvida, mas não
se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, e
sim buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão
mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos
passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a
eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou
adaptações do texto primitivo, involuntárias ou voluntárias.
Um outro ponto a se destacar no texto
da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a
presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e
Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o
narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as
suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa
comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas da
região da Palestina, onde os apóstolos viviam, não têm
familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na
Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as
roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo
traduziu em latim como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em
grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S.
Jerônimo utilizou uma metáfora europeia para traduzir o original
grego. Para ser mais fiel ao texto grego, em lugar de roupas “brancas
como a neve” deveria ser roupas “brancas como a luz”.
Nesta narração, Jesus quis provar aos
seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito
tempo: primeiro, a sua origem divina, a sua verdadeira feição
gloriosa; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à
lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao
contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias,
dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento
entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e,
certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades.
Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão
própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o
ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela
visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era
mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como
ensinamentos de Moisés e dos Profetas.
Para nós, a figura do Cristo
transfigurado é um constante e eloquente apelo a que tenhamos sempre
na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou
naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se
apresente através de nós, transfigurando-nos.
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