COMENTÁRIO LITÚRGICO – 31º DOMINGO COMUM – O MAIOR MANDAMENTO – 31.10.2021
Caros Confrades,
Neste domingo, o tema das leituras litúrgicas se concentra nos mandamentos da lei de Deus. Conforme a tradição hebraica, Javeh entregou a Moisés as “tábuas da Lei” com dez mandamentos, os quais deveriam ser obrigatórios ao povo, como sinal da aliança que faria com eles. Com o decurso do tempo, os mestres da Lei passaram a destrinchar esses mandamentos, enchendo as tábuas com “detalhes”, todos obrigatórios, chegando a mais de 600 prescrições derivadas das dez primeiras. Eram tantas, que o povo já não tinha mais como saber de cor. Foi então que um mestre da Lei judaica, certamente para testar Jesus, foi perguntar-lhe “qual é o maior mandamento da Lei” e Jesus respondeu, resumidamente: amar a Deus, amar o próximo. Isso deve provocar também a nossa reflexão. Muitas vezes, nos perdemos com “detalhes” normativos e esquecemos de qual seja a regra primordial.
Na primeira leitura, do livro do Deuteronômio (6, 2-6), Moisés adverte o povo para a observância dos mandamentos, cuja obediência deve ser transmitida também aos filhos e netos, como sendo um requisito para a obtenção de uma vida feliz. “Ouve, Israel, e cuida de os pôr em prática, para seres feliz e te multiplicares sempre mais, na terra onde corre leite e mel, como te prometeu o Senhor, o Deus de teus pais.” As palavras da Lei devem ficar gravadas no coração do crente, para jamais cairem da sua lembrança. Essa expressão “ouve, Israel” (em hebraico: shemá, Israel) encontra-se repetida em diversas outras passagens da Torah e representa aquelas prescrições que nunca podem ser esquecidas, porque são elas o cerne do compromisso firmado pelo povo, através de Moisés, no Sinai, como garantia da sua proteção e da realização da promessa.
Na segunda leitura, o autor da Carta aos Hebreus (7, 23-28) lembra que, com o cumprimento da promessa, isto é, com a chegada do Messias, este assumiu definitivamente o lugar do mediador entre Deus e o povo, função esta que antes era exercida por Moisés e depois pelos profetas e sacerdotes. Com a sua autoridade de Filho de Deus, Jesus substituiu todos os antigos sacerdotes hebreus de uma forma perene, sendo ele o único agente capaz de nos levar à salvação. “Os sacerdotes da antiga aliança sucediam-se em grande número, porque a morte os impedia de permanecer. Cristo, porém, uma vez que permanece para a eternidade, possui um sacerdócio que não muda. Por isso ele é capaz de salvar para sempre aqueles que, por seu intermédio, se aproximam de Deus.” (Hb 7, 23) Antes, o povo era convidado a ouvir (shemá) Moisés e seus sucessores; agora, o povo deve ouvir o próprio Deus, que fala através do seu Filho, não mais através de um porta-voz (profeta = aquele que transmite a fala de outrem). O sacrifício que os sacerdotes ofereciam precisava ser renovado a cada vez, porque seu alcance era limitado. Mas o sacrifício de Cristo, oferecendo-se a si mesmo, não precisa ser repetido, porque tem valor eterno e pleno.
No evangelho de Marcos (12, 28-34), lemos o conhecido diálogo entre Jesus com um mestre da Lei, que foi saber dele qual o maior mandamento. Os fariseus, que se consideravam puros e os verdadeiros cumpridores da Lei e excediam-se em filigranas e minúcias, multiplicando os preceitos divinos, haviam detalhado toda a Torah em preceitos e subpreceitos dados por Javeh, a tal ponto que nem eles mesmos conseguiam saber de cor todos aqueles. Em diversas ocasiões, armavam ciladas contra Jesus, com o intuito de flagrá-lo em algum deslize. Talvez quisessem saber se Jesus conhecia todos os seiscentos e tantos preceitos. E dependendo do que Jesus respondesse, isso poderia ser motivo de alguma acusação contra ele por descumprimento da Lei. Neste caso específico, a pergunta teve outro contexto, porque o mestre da Lei que o interrogara parecia estar escorado em boas intenções. Jesus percebeu isso e, de forma magistral, sem discorrer sobre os preceitos da Lei, mas com a autoridade de quem sabe o que diz, Ele os resumiu em dois mandamentos fundamentais: o primeiro e o maior de todos, amar a Deus sobre todas as coisas; e o segundo é semelhante a este, amar o próximo como a si mesmo. Não existe outro mandamento maior do que esses dois.
O mestre da Lei sabiamente concordou com Jesus e acatou a síntese feita por ele, demonstrando assim a sua boa fé. E como prêmio recebeu um elogio da parte de Jesus: “tu não estás longe do reino de Deus”. É importante destacar que nem todos os fariseus eram inimigos de Jesus. O evangelho registra diálogos similares com outros fariseus, por exemplo, com Nicodemos, que foi procurar Jesus à noite, para não ser visto pelos colegas. E ainda José de Arimateia, que foi o intermediário junto ao governador para a liberação do corpo de Jesus para o sepultamento. Lamentavelmente, porém, a maioria deles se considerava soberanamente sábio e purificado, o que lhes impedia de perceber em Jesus o Messias da promessa, porque Jesus fazia coisas que eles entendiam como contrárias à Lei.
Meus amigos, esse era o grande engodo dos fariseus. Preocupavam-se muito com a retórica dos preceitos da Lei, principalmente quando se tratava de cobrar isso dos outros, às vezes, eles próprios não praticavam. Passavam o tempo a vigiar e acusar aqueles que não cumpriam, mas eles próprios não faziam isso. Nós precisamos nos vigiar pra não fazer igual aos fariseus, preocupando-nos mais com a vida dos outros do que em dar o exemplo de vida cristã. Ademais, não adianta ficar só no conhecimento dos preceitos, se não os põe em prática. Quanto maior for a quantidade de normas, mais complicado o seu cumprimento. Por isso, pra facilitar, Jesus resumiu em dois, fáceis de memorizar e elementares para cumprir. E quem os cumpre, cumpre todo o resto.
Meus amigos, peço antecipadamente perdão pelo que vou escrever, pois talvez isso possa ferir a suscetibilidade de algum confrade. Mas a nossa Santa Igreja, através do Direito Canônico, produziu uma vasta quantidade de normas burocráticas, algumas das quais até podem ser consideradas importantes para a administração pessoal e territorial, mas escapolem para detalhes (a meu ver) inúteis. Hoje, no sermão da missa, o Vigário Paroquial falava sobre as “condições” para alguém “ganhar indulgência” para favorecer um familiar ou amigo que se encontre no purgatório. Não vou entrar em detalhes, porque seria enfadonho, apenas resumo: o fiel deve confessar-se, comungar, fazer uma oração pelo Papa e visitar um cemitério, entre os dias 1 e 8 de novembro. Deus me perdoe se faço mal julgamento, mas o Pai Celeste não é contador nem burocrata. Essa maneira retórica de destrinchar os preceitos religiosos a mim parece a mesma estratégia dos fariseus, que foi por diversas vezes reprovada por Jesus. É lamentável que nossas autoridades eclesiásticas percam seu tempo em fazer “leis” para o povo, tempo esse que seria melhor aproveitado se fosse destinado à explanação da Palavra de Deus.
Faz poucos dias, tomei conhecimento do fato seguinte: o Pároco viajou de férias sem que fosse designado um substituto, então a comunidade ficou sem pastor. Um grupo de fiéis estava conduzindo as celebrações litúrgicas da palavra enquanto isso. Pois bem. A questão, no caso, é a seguinte: pode um cristão leigo fazer a homilia (explicação das leituras bíblicas)? De acordo com o Direito Canônico (canon 767, $1), “a homilia, que é parte da própria liturgia e se reserva ao sacerdote ou diácono”, ou seja, somente um Ministro ordenado (padre ou diácono) pode fazer a homilia. Estão excluídos os fiéis não ordenados, ainda que exerçam a tarefa de ‘assistentes pastorais’ ou de catequistas em qualquer tipo de comunidade ou de agregação. Trazendo o caso para bem próximo de nós: eu posso fazer esses comentários aqui, mas não posso falar essas mesmas palavras no ambão, porque não sou ordenado. Nem o Bispo pode dispensar essa norma canônica. E não é por causa da falta de preparo teológico do orador, mas sim porque não é uma norma meramente disciplinar, ela diz respeito à função de ensino e santificação, que é exclusiva dos ministros ordenados (assim explicou um documento produzido pelo Vaticano, em 15.08.1997).
Então, meus caros confrades, a nossa Santa Igreja necessita urgentemente de uma sacudida, para não incorrer na crítica de Jesus aos fariseus. É o grande movimento que o Papa Francisco desencadeou recentemente, que se chama a “sinodalidade” eclesiástica. Que o Espírito Santo ilumine esse importante e necessário movimento, que tão sabiamente e oportunamente foi deflagrado pelo Seráfico Papa.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos