COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – A ESCOLHA DO LUGAR – 17.10.2021
Caros Confrades,
Neste 29º domingo comum, a liturgia nos convida a refletir sobre a situação de cada fiel, na relação com o cumprimento de sua missão neste mundo e na perspectiva da futura recompensa que será atribuída a cada um. Na primeira leitura, a saga do servo sofredor, narrada pelo profeta Isaías, faz a associação entre os nossos sofrimentos e os sofrimentos de Jesus, ressaltando que pelos méritos dele, os seus seguidores também serão justificados. E a segunda leitura, da Carta aos Hebreus, reforça essa ideia, concitando os cristãos a se aproximarem de Jesus, o trono da graça, para alcançarem a sua recompensa no tempo oportuno. Nessa temática da recompensa, a leitura do evangelho traz o diálogo de Tiago e João com Jesus, sobre o lugar que cada um deles teria no reino futuro do Messias, encomendando desde já uma posição de honra. Foi quando Jesus disse que será melhor recompensado aquele que melhor servir.
Inicialmente, faço uma observação exegética a respeito desse trecho do evangelho, escrito pelo evangelista Marcos, cap 10, 35-45. Fazendo um estudo comparativo com os evangelhos, podemos cotejar essa passagem com o texto análogo de Mateus 20, 20, onde é narrado o mesmo episódio. No evangelho da liturgia de hoje (Mc 10, 35), lemos: “Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram:”. No evangelho de Mateus (20, 20), lemos: “Então, aproximou-se d'Ele a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos, adorando-o e pedindo algo a Ele.” A análise desses dois pequenos trechos nos mostra que devemos ter muito cuidado com a leitura fundamentalista da Sagrada Escritura, porque os textos às vezes se mostram incoerentes. Afinal, quem foi fazer o pedido a Jesus: os filhos de Zebedeu sozinhos ou acompanhados da mãe deles? Por que Marcos não menciona a mãe dos apóstolos, enquanto Mateus a inclui? Embora não seja esse um detalhe significativo no contexto da mensagem de Jesus, no entanto, é por causa de detalhes como esse que algumas pessoas dizem que a Bíblia é cheia de imprecisões e mentiras.
Pois bem. Os biblistas explicam essa divergência dizendo que os textos de Marcos e de Mateus possuem origens geográficas e históricas diferentes. Os estudos históricos confirmam que os ensinamentos de Jesus, durante vários anos, existiam nas comunidades apenas em forma oral, passando a ser escritos somente uns 20 a 30 anos após a morte d'Ele. Havia muitos textos esparsos e os evangelistas os colheram e, com base neles, compuseram seus evangelhos, procurando observar a ordem cronológica dos acontecimentos. Podemos verificar que, também na Bíblia, funciona aquela máxima popular que diz: quem conta um conto aumenta um ponto. Desse modo, embora o evangelho de Mateus venha em primeiro lugar no cânon bíblico, contudo o texto de Marcos é cronologicamente anterior. Ainda sobre o evangelho de Mateus suscita polêmica entre os estudiosos, inclusive dúvidas sobre a sua autoria. O seu texto original teria sido escrito em aramaico e só depois traduzido para o grego, enquanto os demais foram escritos originalmente em grego. Não vou adentrar aqui na polêmica acerca do texto desse evangelho que, segundo os estudiosos, devia ter como título “genealogia de Jesus”, escrito por um autor desconhecido. Quem tiver interesse sobre o assunto, procure livros específicos, que abordam a questão com profundidade.
Passemos agora ao tema da leitura, o pedido que os filhos de Zebedeu fizeram a Jesus: que um deles tivesse assento à direita e outro à esquerda, no reino da Sua glória. Jesus ficou intrigado com aquilo e falou: vocês têm certeza do que estão pedindo? Vocês estão dispostos a beber o mesmo cálice que eu? Eles confirmaram e, por fim, Jesus arrematou: 'Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado'. (Mc 10, 39) E diz mais o evangelista que os outros dez apóstolos ficaram indignados quando souberam do pedido dos dois irmãos, provavelmente, eles também queriam pedir aquilo, mas não tiveram coragem. Ademais, por que razão haveriam aqueles dois de ser privilegiados com um lugar de honra? Foi quando Jesus os repreendeu, dizendo que a autoridade cristã não é símbolo de honraria, mas de serviço. (Mc 10, 43)
Esse diálogo de Cristo com os discípulos nos deixa algumas lições importantes. Primeiro: será que nós sabemos pedir? Quando oramos, quando fazemos nossos pedidos a Deus, que tipo de oração fazemos? Será que caímos no mesmo disparate dos filhos de Zebedeu, reprovado por Jesus? Pois é, muitas vezes, a nossa oração contém uma dose significativa de egoísmo. Pedimos preferencialmente algo bom para cada um de nós, para os nossos parentes e amigos, esquecendo que o próprio Cristo ensinou que devemos buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e que o resto nos será dado por acréscimo. Em geral, as orações dirigidas a Deus são pedidos de favorecimentos, de bens materiais, de bem-estar, de uma conquista profissional, etc. Sem deixar de falar numa prática ainda mais extravagante que é a de fazer um “negócio” com Deus, uma certa 'promessa': se eu conseguir tal coisa, vou fazer tal tarefa. Meus amigos, quanta pretensão. Se passássemos a vida toda fazendo penitências, nem assim mereceríamos um único favor divino, por menorzinho que seja, Deus nos dá tudo gratuitamente, sem precisar de nada de nós e sem nós merecermos, ele age por plena e inefável benevolência. As nossas orações, portanto, devem ser muito mais para agradecer do que para pedir.
Em segundo lugar, lembremos que a oração modelar para nós deve ser inspirada no exemplo dado pelo próprio Jesus: quando orardes, dizei algo assim: Pai, santificado seja o Teu nome, venha o Teu reino, faça-se a Tua vontade... é o tipo da oração altruísta, a oração que agrada a Deus. De orações egoístas, Deus se distancia, vira o rosto para o outro lado. Quando Jesus perguntou aos dois filhos de Zebedeu: vocês estão dispostos a 'beber o mesmo cálice' que eu beberei e eles confirmaram, Jesus disse: mas isso não garantirá o atendimento ao que estais pedindo, pois não é assim que se conquista um lugar no Reino. E arremata: o lugar é para aqueles a quem foi reservado. (Mc 10, 40)
Esta resposta de Jesus é, a um só tempo, enigmática e esperançosa. Enigmática, porque ele não revelou quem são esses a quem está reservado o melhor lugar. Esperançosa, porque a reserva pode ser para qualquer um deles e também para qualquer um de nós. Como podemos interpretar esse enigma-esperança? A resposta, a meu ver, está na frase seguinte do evangelho (Mc 10, 45): o Filho do Homem não veio para ser servido, mas pra servir... ou seja, quem seguir o exemplo de Jesus na prestação do serviço aos irmãos, é para estes que o lugar está reservado. Foi isso que Ele deu a entender quando ensinou: quem quiser ser grande, que seja o servo; quem quiser ser o maior, que seja o escravo. Então, o 'lugar reservado' se destina a quem realizar o 'serviço' tal como Ele realizou, isto é, com humildade e sem reserva, dando tudo de si até o fim das suas forças. Esta será a nossa melhor recompensa.
Meus amigos, o recado de Cristo está dado para todos nós. O lugar está reservado para quem for capaz de seguir o exemplo dele no serviço aos irmãos, superando as tendências naturais e sociais associadas ao ganho de prestígio e de honrarias, especialmente quando exercemos profissões que são consideradas relevantes socialmente. Humildade não significa vestir trapos e andar descalço, mas é uma atitude que mora dentro do coração. Tomo emprestado aqui as palavras do Papa Francisco aos peregrinos em Roma: “À vista de tantos que lutam por obter o poder e o sucesso, por dar nas vistas, frente a tantos que querem fazer valer os seus méritos, as suas realizações, os discípulos são chamados a fazer o contrário. Por isso adverte-os: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo» (10, 42-43). Com estas palavras, Jesus indica o serviço como estilo da autoridade na comunidade cristã. Quem serve os outros e não goza efetivamente de prestígio, exerce a verdadeira autoridade na Igreja. Jesus convida-nos a mudar a nossa mentalidade e a passar da ambição do poder à alegria de se ocultar e servir; a desarraigar o instinto de domínio sobre os outros e exercer a virtude da humildade.” Todos nós, que acompanhamos pela imprensa as notícias sobre a atuação do Papa, sabemos que essas palavras dele não são apenas discurso mas a sua prática concreta, pois ele assim vivencia no seu cotidiano. Que nós tenhamos a ousadia e a coragem de seguir o seu exemplo de autêntico cristão.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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