COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MEU PRÓXIMO – 10.07.2022
Caros Confrades,
Neste 15º domingo do tempo comum, temos aquela leitura emblemática do texto de Lucas, conhecido como a parábola do “bom samaritano” e o tema litúrgico em destaque é o confronto entre a lei e a misericórdia, o mandamento e a caridade. O que é mais importante: orar a Deus, ler a Bíblia ou ajudar os irmãos? Resposta óbvia: os três são importantes, claro. Sim, mas o que é preferencial? Com a parábola do bom samaritano, Jesus ensina que a caridade para com o próximo é preferencial ao cumprimento puro e simples das obrigações religiosas. A misericórdia é a chave da porta que conduz à salvação, não basta a observância ritual e formalista dos mandamentos da lei.
Na primeira leitura, colhida do livro do Deuteronômio, Moisés ensina ao povo que a palavra de Deus está dentro de cada um, ou seja, está dentro da nossa consciência. Diz ele: a lei de Deus não está no céu, porque assim ficaria muito difícil de ser alcançada e alguém poderia dizer que não a conhece porque está inacessível. Também não está do outro lado do mar, porque assim também estaria muito distante e ninguém conseguiria atingi-la. Lembremo-nos de que, na época de Moisés, o conceito de mar era bem outro do que conhecemos, ter de atravessar o mar era uma tarefa onerosa, perigosa e demorada, tomando como referência o Mar Vermelho, o Mar Mediterrâneo, que eram os mares então conhecidos. Mas não, diz Moisés, esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir. (Dt 30, 14) Este é o conceito da lei divina enquanto lei natural, isto é, aquela regra que cada um traz dentro de si mesmo e que a cultura costuma chamar de consciência.
De acordo com a doutrina tradicional, esta lei natural encontra-se inscrita no íntimo de cada pessoa, na sua razão como uma ideia inata, colocada pelo próprio Deus como parte da Sua atividade criadora. A lei natural decorre da própria racionalidade, está situada no âmago da razão humana, como sua fonte permanente de inspiração e de avaliação de conduta. No entanto, os filósofos da modernidade passaram a contestar essa noção de lei natural como algo inerente à natureza humana e passaram a afirmar que as noções básicas do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto não nos vêm embutidas na razão mesma, de forma inata, mas são aprendidas a partir das vivências e experiências de cada um na família e na sociedade. De um modo ou de outro, a lei divina enquanto lei natural é reconhecida por todas as pessoas como aquela regra básica de sempre fazer o bem. Se observarmos cuidadosamente o conteúdo da lei de Moisés, a grande exigência que Javeh sempre fez ao Seu povo foi honrá-lo e adorá-lo como único Deus, desprezando a idolatria, que era muito comum entre os povos da época. Todos os outros preceitos são compatíveis com o que chamamos de lei natural: honrar pai e mãe, não matar, não levantar falso testemunho, não querer os bens pertencentes a outrem... Esta é a lei antiga, que Jesus não veio negar nem modificar, mas sim confirmar e cumprir de forma plena, conforme Ele afirmou por diversas vezes. O exemplo mais claro e pedagógico que Jesus deixou de como deve ser o nosso cumprimento da lei se encontra na parábola do “bom samaritano”.
O evangelista Lucas (10, 25) narra o diálogo de Jesus com um doutor da lei. Quem eram os doutores da lei? Eram os escribas, os sábios instruídos na lei de Moisés, os rabinos, aqueles que ensinavam ao povo os preceitos da lei dada por Javeh a Moisés, podendo ser eles sacerdotes ou não. Portanto, teoricamente, um doutor da lei devia saber (mais do que as outras pessoas) o que era de seu dever e obrigação cumprir. Dentre os judeus daquele tempo, o grupo dos fariseus era aquele formado por aqueles doutores da lei mais fervorosos e formalistas, aqueles que se esmeravam no conhecimento da lei e no seu cumprimento acima de qualquer outra exigência. E faziam questão de demonstrar isso publicamente, para que todos os vissem como exemplares cumpridores da lei. Jesus não era nenhum ingênuo e quando aquele fariseu veio perguntar-lhe o que era preciso fazer para ganhar a vida eterna, Ele respondeu com outra pergunta: me diga o que está na Lei? Ora, o fariseu sabia de cor e respondeu imediatamente: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Então Jesus disse: pois faça isso e terá a salvação. Talvez o fariseu esperasse que Jesus fosse ensinar algo diferente do que estava na Lei para assim poder acusá-lo de heresia. Quando Jesus disse “cumpra a lei”, o fariseu ficou desapontado. Em outras palavras, Jesus estava dizendo para aquele fariseu e para todos nós que a lei divina, aquela que se encontra no coração de cada homem, esta lei não passa, não muda, esta lei não é ensinada apenas pelos judeus, mas está em todos os povos desde as épocas mais antigas e em todos os lugares do mundo, o mandamento de fazer o bem sempre esteve persente em todas as culturas. Não é necessário que os parlamentos a aprovem, pois ela já se mostra evidente e presente por si mesma, reconhecida pela sadia racionalidade.
Pois bem, disso o fariseu já sabia. Mas para o cumprimento pleno da Lei, é preciso amar também o próximo. Daí ele pergunta: e quem é esse próximo, que eu devo amar? Aqui entra a parábola do bom samaritano. Um homem ferido, necessitando de ajuda é observado por um sacerdote e por um levita, ambos judeus, que se desviam dele e passam pelo outro lado, na estrada. Observemos a fina ironia de Jesus, quando colocou no exemplo da parábola um sacerdote e um levita. Esses dois termos eram até certo ponto sinônimos, mas não por completo, havia levitas que não eram sacerdotes. Seriam como os diáconos, aqueles que auxiliavam os sacerdotes no serviço do templo. Então, quando Jesus colocou na parábola um sacerdote e um levita, era como se Ele estivesse dizendo para o seu interlocutor: um judeu igual a você. Por que motivo o sacerdote e o levita teriam se desviado do ferido e moribundo? O evangelista não entra nesse detalhe, mas poder-se-ia supor, na melhor das hipóteses, que fosse porque eles estariam com pressa se dirigindo ao templo e não poderiam se atrasar para o serviço do culto. Ou numa hipótese mais malvada, porque eles realmente não se preocupavam mesmo com os sofrimentos dos outros. Era como se Jesus estivesse lançando a carapuça na cabeça daquele doutor da lei.
E para completar a ironia, Jesus colocou na parábola a figura do samaritano, como aquele que fez a coisa certa. Ora, meus amigos, os judeus tinham uma inimizade terrivel com os samaritanos, achavam que esses não cumpriam a lei, eram intrigados entre si e não se falavam. De propósito, Jesus colocou um sacerdote e um levita dando mau exemplo e, de outro lado, o samaritano como autor do bom exemplo. Desse modo, duplamente Ele puxou as orelhas do doutor da lei. Uma, porque alguém da classe dele (sacerdote ou levita) preferiu passar apressado para não se atrasar no cumprimento da lei. Duas, porque o rival dos judeus foi aquele que teve misericórdia do ferido e o amparou. E para não deixar só no plano das especulações, Jesus ainda perguntou ao doutor da lei, para que ele tirasse a conclusão: quem desses três, a seu ver, foi o próximo para o ferido? O doutor da lei não tinha alternativa senão concordar que tinha sido o samaritano, saindo dali com as orelhas pegando fogo.
Mas, enfim, como é cumprir plenamente a lei, segundo Jesus ensinou? Agora podemos concluir: é juntando o cumprimento formal da lei com a prática da caridade. Não se pode dizer que, a rigor, o sacerdote e o levita descumpriram a lei. Eles deviam ter seus motivos. Mas o samaritano cumpriu a lei da forma mais perfeita, que foi dando a preferência ao atendimento do irmão necessitado, mesmo que isso implicasse no atraso de outras obrigações. Então, como podemos observar, quando Jesus disse que não veio para destruir a lei de Moisés, mas para cumpri-la de forma integral, Ele estava querendo dizer que ninguém pode dizer que ama a Deus se não ama o próximo. Amar a Deus é a dimensão vertical da religião, ou seja, a oração, a meditação, o jejum, o terço, a novena, a missa, o templo. Amar o próximo é a dimensão horizontal da religião, ou seja, a caridade, a estima, a ajuda mútua, o compartilhamento dos bens, a misericórdia com os irmãos. Uma dimensão se completa com a outra e a dimensão vertical, sem a horizontal, torna-se inócua. Várias vezes, no evangelho, temos exemplos patéticos nas parábolas de Jesus, como quando aqueles que foram mandados para a “esquerda” perguntaram: quando foi que Te vimos com fome e não Te demos de comer? E ele respondeu: foi quando deixastes de ajudar o irmão necessitado. Ou seja, se ponderarmos bem, a dimensão horizontal tem um peso bem maior na hora de aquilatar o cumprimento da lei, porque é a dimensão horizontal que leva a outra dimensão à perfeição. O bom samaritano é o exemplo clássico e insuperável do amor ao próximo.
Com um cordial abraço.
Antonio Carlos
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