sábado, 13 de agosto de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - 14.08.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO 20º DOMINGO COMUM – O FOGO DA DISCÓRDIA – 14.08.2022


Caros Confrades,


Neste domingo, o 20º do tempo comum, a liturgia nos põe diante de leituras intrigantes, enigmáticas, daquelas que destoam dos temas geralmente tratados, relacionados com a paz e a concórdia. Os textos litúrgicos escolhidos, ao invés, falam sobre discórdias e desuniões, conflitos e conturbações. Num momento de azedume, Jesus pergunta aos discípulos: vocês pensam que eu vim trazer paz à terra? Pois não foi, vim trazer a desunião. A Bíblia nos coloca, algumas vezes, em dilemas sobre como compreender palavras tão duras, em total contraste com o ensinamento rotineiro de Cristo. Como devemos entender a mensagem de Cristo, quando ele diz que vai promover o fogo da discórdia?


Na primeira leitura, temos um episódio dramático envolvendo o profeta Jeremias em tempos difíceis vividos pelo reino de Judá, coagido de um lado pelo faraó do Egito e de outro lado, pelo rei da Babilônia. Jerusalém ficou sitiada por mais de um ano, com o povo vivendo agruras. O rei de Judá, de nome Zedequias (ou Sedecias ou Matatias, são outros nomes que ele tinha), não procedia bem aos olhos do Senhor e quando o profeta Jeremias foi interpelá-lo, transmitindo a mensagem de reprovação a mando de Javeh, o rei deixou-se influenciar por seus conselheiros e mandou prender Jeremias num calabouço lodento, a fim de que morresse de fome. Visto que Javeh não desampara os seus profetas, e Jeremias foi aquele que disse um dia que possuía um fogo queimando dentro dele, de modo que ele não conseguia ficar sem profetizar, um servo do rei (o texto fala em Ebed Melech, mas este não é nome próprio, significa literalmente “servo do rei”), um criado de origem etíope que foi inspirado por Javeh para fazer um recurso em favor de Jeremias.


Ele se arriscou demasiadamente, porque no palácio real, todos eram inimigos de Jeremias e quem falasse a favor dele corria sério risco de ir parar no mesmo local onde estava o profeta, no calabouço lamacento. Porém, de forma imprevista, o rei Zedequias acedeu ao recurso de Ebed Melech e autorizou que ele reunisse trinta homens e juntos fossem retirar o profeta Jeremias do calabouço. Estima-se que não seriam realmente necessários trinta homens para retirar Jeremias do fosso, porém esse número avantajado teria sido determinado pelo rei por medida de precaução, porque ele sabia que os nobres e os sacerdotes estavam contra Jeremias e poderiam tentar impedir o cumprimento da ordem real. Em retribuição ao seu ato heroico, Ebed Melech recebeu de Jeremias a promessa de que ele não seria apanhado quando o rei da Babilônia invadisse Jerusalém e levasse os seus habitantes como cativos. Assim aconteceu, cerca de um ano depois. Tanto Ebed Melec quanto Jeremias escaparam de ser levados ao cativeiro e fugiram para refugiar-se em terras egípcias.


Vemos, nesse episódio, uma espécie de fogo da discórdia entre os sacerdotes e o profeta Jeremias. O profeta aconselhava o rei para fazer um acordo com os babilônios, a fim de evitar o agravamento do conflito, porém os nobres e os sacerdotes deram opinião oposta, optando pela aliança com o Egito, e o rei não atendeu ao profeta. Como resultado, os babilônios invadiram Jerusalém, levaram os tesouros do templo e carregaram a população como escravos. E os egípcios nem vieram para ajudá-los. Então, por não atender a voz de Javeh através da palavra do profeta Jeremias, o rei de Judá infligiu ao povo terrível castigo, do qual somente se livraram após muito tempo e depois de sofrerem severas penas. Às vezes, é preciso pagar o preço da discórdia para, enfim, descobrir a paz.


Na segunda leitura, o autor da Carta aos Hebreus (Hb 12, 1-4) aconselha seus conterrâneos a seguirem o exemplo de Cristo, que enfrentou a morte, não se importando com a infâmia, para entrar no trono de Deus. Os cristãos não devem desanimar em sua luta contra o pecado, para ao final receberem a recompensa. “Empenhemo-nos com perseverança no combate que nos é proposto, com os olhos fixos em Jesus, que em nós começa e completa a obra da fé.” Aqui o fogo da discórdia está colocado entre o cristão e o pecado, contra o qual deve este resistir até ao sangue, tendo como referência o modo como Cristo resistiu na cruz. Até pouco tempo, atribuía-se a autoria da carta aos Hebreus ao apóstolo Paulo, mas atualmente a crítica literária descartou essa possibilidade, embora admita que foi provavelmente escrita por um intelectual judeu de cultura grega (assim como Paulo) possivelmente ouvinte do Apóstolo. Há quem afirme que a autoria desta carta seja de Priscila, esposa de Áquila, que foram os primeiros divulgadores do cristianismo em Roma. O casal era amigo de Paulo, que fazia culto na casa deles, em suas viagens àquela cidade. Essas mulheres sábias e heroicas daqueles tempos não eram bem vistas na sociedade como intelectuais e preferiam esconder seus talentos, para não sofrerem discriminação, por isso, ela não teria colocado o seu nome. Na prática, Priscila era uma diaconisa.


A leitura do evangelho de Lucas (Lc 12, 49-53) é também intrigante pelas palavras ríspidas de Cristo aos apóstolos. Nesse capítulo 12, o escritor sagrado reúne diversas “conversas” que Jesus teve em caráter reservado com os apóstolos e ele não “dourava a pílula”, como se diz na gíria, falava mesmo de forma grosseira, de modo que deixava os discípulos com o juízo embaralhado. Em certo momento (vers. 41), Pedro não se conteve e perguntou: Senhor, dizes essa parábola só para nós ou também para os outros? Jesus nem respondeu diretamente, mas de forma indireta avisou: aquele que sabe a vontade do seu senhor e não a cumpre, é merecedor de muitos açoites. Por outras palavras, ele quer dizer: vocês serão mais exigidos do que os outros, porque foi-lhes dado a conhecer muito mais e, portanto, serão mais cobrados por isso. Foi nesse contexto que Jesus os deixou de orelhas quentes, quando disse: vocês pensam que eu vim trazer a paz? Pois não foi, vim trazer a discórdia. Vim lançar fogo e estou ansioso para que ele se acenda. Vou receber um certo batismo e fico ansioso até que isso se cumpra.


Percebe-se que Jesus falava acerca da sua paixão, que se aproximava, e pela sua natureza humana, tinha dificuldade de controlar a própria angústia. E já antevia que aquele grupo seleto de seguidores seus iria passar por diversas agruras, quando fossem enviados em missão. Jesus estava lançando a faísca naquele pequeno grupo e eles seriam encarregados de distribuir esse fogo pelo mundo afora, por onde passassem. Isso eles não tinham ainda condições de entender. Por causa da sua doutrina, Cristo previu que “O pai estará dividido contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra sua nora, e a nora contra sua sogra. (Lucas 12:53) De fato, isso aconteceu no passado e, de certo modo, continua a acontecer ainda em nossos dias, quando se observam dissensões no interior das famílias, por causa de divergências acerca da fé e da prática da religião. As diversas interpretações que são dadas às palavras bíblicas levam a que o fogo da discórdia se instale até dentro dos ambientes religiosos. É como se Jesus estivesse nos acautelando de que essas coisas poderiam acontecer, mas que isso não deve nos perturbar, ao contrário, deve servir-nos de estímulo para superá-las. Logo adiante, nesse mesmo capítulo, Jesus continua com esse discurso ranzinza, quando diz: ao verem uma nuvem se aproximando no céu, vocês dizem: vai chover. Pois sois hipócritas que sabem interpretar o tempo atmosférico, mas não sabem compreender o tempo da vida de vocês. Meus amigos, que grande visão de futuro Jesus demonstra nessas palavras ríspidas, que os discípulos ouviam sem compreender.


Quando vemos, nos dias de hoje, grupos de pessoas dentro das comunidades entrando em divergência até mesmo ao ponto de se tornarem inimigas por causa de questões religiosas, então podemos perceber o quanto Jesus foi verídico e crítico, ao dizer que veio trazer o fogo à terra e quer mesmo é que ele queime. Ele sabia que, com a nossa cabeça dura, só mesmo um elemento tão forte e temido como é o fogo seria capaz de nos impelir a enfrentar esses pontos de discórdia. E o que lamentavelmente se constata é que, mesmo assim, os cristãos não aprendem e continuam a cultivar divergências e atear novos fogos de discórdia. A intolerância religiosa é um dos grandes dramas e dilemas do mundo de hoje, e não me refiro somente ao que acontece no choque com diferentes religiões. Esse é, de fato, o conflito mais evidente. Mas há também um conflito surdo e dissimulado entre membros da hierarquia, entre os grupos que existem nas comunidades, entre as lideranças dos diversos serviços ligados à paróquia, cada um querendo se sobressair, nem que seja pisoteando os demais. O fogo da discórdia continua bem aceso, porém parece que as pessoas se acostumam com as labaredas e estas já não incomodam mais. Quando Jesus fez referência ao fogo, penso que foi no sentido de que aquilo que arde deve nos motivar a buscar logo um meio de apagar aquele incêndio, não para mantê-lo em ardência permanente. Podemos assim constatar o quanto ainda precisamos meditar com profundidade nos ensinamentos de Cristo e colocá-los em prática.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

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