sábado, 26 de novembro de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - 27.11.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGILATE – 27.11.2022


Caros Confrades,


Neste 1º domingo do advento, damos início ao ano novo litúrgico católico de 2020, antecipando-se ao ano civil, de acordo com o calendário eclesiástico. No domingo passado, tivemos o último domingo do ano litúrgico de 2022, com a celebração da festa de Cristo Rei. Os anos litúrgicos, conforme tradição muito antiga, seguem uma sucessão de três conjuntos de leituras, distinguidos como anos A, B e C, para que as leituras bíblicas não se repitam todos os anos. O ano de 2022 seguia a série C e o novo ano que se inicia hoje faz parte da série A. Nesta, segue-se preferencialmente o evangelho de Mateus para as leituras dominicais, que são complementadas com uma do Antigo Testamento e uma carta apostólica. Esta antecipação é necessária para que o tempo do Advento, que é dividido em quatro semanas, possa ser integralmente completado antes do Dia de Natal.


A propósito da festa do Natal, é um assunto já bem conhecido por todos que a celebração do dia 25 de dezembro é apenas uma data simbólica, posto que o nascimento de Cristo deve ter ocorrido, com maior probabilidade, no mês de março. Porém, esta celebração do Natal de Jesus em 25 de dezembro já existe desde o século IV, isto é, há mais de 1.600 anos. Foi quando o imperador Constantino, convertido ao cristianismo, instituiu a celebração do nascimento de Jesus nesta data, substituindo uma antiga festa pagã que era comemorada nesta data, qual seja, uma festa romana dedicada ao deus Saturno (saturnália), que se prolongava por uma semana, indo do dia 17 ao dia 24 de dezembro, período em que ocorre o solstício de inverno no hemisfério norte. Depois de tantos séculos em que a civilização ocidental associa o Natal de Jesus com o dia 25 de dezembro, não faz mais nenhum sentido propor uma mudança de data, para adequar ao período mais provável. Associado a esse simbolismo, o ano litúrgico se constitui com datas e períodos que rememoram os fatos comemorados, não devendo ser tomadas essas datas como exatas do ponto de vista histórico. Isso em nada compromete a grandeza e a importância das festas que comemoramos nessa época do ano. Nada obstante os esquemas comerciais incorporados ao Natal, desviando o seu verdadeiro sentido, nós cristãos devemos celebrar o tempo do advento com o espírito de verdadeira conversão do coração, preparando-nos a vinda do Senhor.


As leituras litúrgicas deste primeiro domingo recomendam a vigilância e a prontidão, porque ninguém sabe o dia em que o Senhor virá. A primeira leitura, de Isaías (Is 2, 1-5), narra uma visão tida pelo Profeta sobre Jerusalém, em cujo monte está firmemente estabelecida a casa do Senhor: de lá, vem a palavra do Senhor. Para lá, acorrerão as nações e os povos todos. O nome “Jerusalém” significa “cidade da paz” e esse simbolismo está contido na visão do Profeta, segundo a qual os seus habitantes transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate (Is 2, 4). Esta visão do profeta Isaías, transportada para os dias de hoje, aplica-se à Igreja de Cristo, firmemente estabelecida no monte da casa do Senhor, referindo-se ainda, numa visão de futuro, à Jerusalém celeste, descrita no Apocalipse de João, onde se encontra Cristo ressuscitado. O Cristo que nasce menino na festividade do Natal é o mesmo que se encontra glorioso na Jerusalém celeste. O simbolismo do seu (re)nascimento a cada ano nos convida a também internamente reavivar em nós mesmos o espírito cristão que se formou em nosso íntimo pelo batismo e que se consolidou na nossa formação religiosa, pela qual somos chamados a dar testemunho dos ensinamentos que recebemos. No advento, a cada ano, Cristo quer renascer em cada um de nós e, para isso, Ele requer nossa disponibilidade e nossa participação. O verdadeiro natal é o que deve ocorrer no coração de cada crente, onde devemos montar o verdadeiro presépio para acolher o que vai nascer. A Belém dos nossos dias deve ser encontrada no coração de cada cristão, que se prepara para celebrar a festa do Natal. Daí o tema deste domingo ser, como diz o apóstolo Paulo na sua carta aos Romanos, o tempo de despertar.


Passando, então, à segunda leitura, da Carta aos Romanos (Rm 13, 11-14), o Apóstolo Paulo exorta os cristãos de Roma para que se dispam das ações das trevas e se revistam das armas da luz, porque a salvação está a cada dia mais próxima, conforme a promessa de Jesus. Ele, com certeza, faz essas recomendações aos Romanos numa época em que as festas da saturnália ainda eram muito populares, com suas orgias, comilanças e licenciosidades, e recomenda: “Procedamos honestamente, como em pleno dia: nada de glutonerias e bebedeiras, nem de orgias sexuais e imoralidades, nem de brigas e rivalidades.” (Rm 13, 13) Tudo isso era o que realmente os habitantes da cidade faziam naquelas festas pagãs, as quais são representadas nos dias de hoje com os dias do carnaval. Porém, os cristãos não devem proceder iguais aos pagãos, mas devem dar o exemplo de filhos da luz. Recordemo-nos ainda que Paulo pregava em Roma nos tempos de Nero, quando o cristianismo era uma religião proscrita e os cristãos eram tidos como inimigos do Estado Romano, precisando reunir-se às escondidas, para a celebração dos seus cultos religiosos. Paulo pregava nas catacumbas e apenas secretamente visitava as residências dos cristãos romanos, correndo o risco de ser denunciado e preso, como de fato o foi por diversas vezes. Mas o risco valia a pena, porque divulgar o cristianismo em Roma, a capital do mundo de então, significava muito para a propagação de sua doutrina. A prova está em que, quando Constantino decretou a liberdade religiosa, grande parte da comunidade romana já era adepta do cristianismo, embora não demonstrassem publicamente.


A leitura do evangelho é retirada de Mateus. Lemos hoje o texto do cap. 24, 37 a 44, no qual Jesus fala aos discípulos sobre a sua vinda nos últimos tempos. Assim como nos tempos de Noé ocorreu o dilúvio, quando ninguém esperava, assim também será a vinda gloriosa de Cristo. Por isso, todos devem estar despertos, porque na hora em que menos se esperar, o Filho do Homem virá. Sorrateiro como um ladrão, o Filho do Homem surpreenderá muita gente dormindo. Ninguém sabe quando será este dia, ou melhor, ninguém sabe quando será o seu dia. Na atualidade, a reflexão teológica prefere interpretar esses discursos escatológicos de Jesus de forma diferente do que tradicionalmente se entendia, isto é, não como um fenômeno coletivo, de proporções globais, mas como um evento privado que acontece na vida própria de cada pessoa. De fato, o Senhor já se encontra na sua glória e, em vez de ser Ele que venha ao nosso encontro, nós é que nos dirigiremos ao encontro dele na nossa hora derradeira. Vejamos o texto do evangelho: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada. (Mt. 24, 40-41) Se o evento final fosse de ordem generalizada, o mesmo para todos, como ensinou a catequese tradicional, todos seriam arrebatados simultaneamente, não faria sentido um ser levado e outro deixado. Se o final dos tempos fosse ocorrer como um grande cataclismo de proporções gigantescas, como entenderam os artistas da Renascença e assim pintaram nos seus quadros clássicos, não ocorreria de alguém ser poupado, mas a destruição alcançaria a todos. Será mais lógico concluir que essa arrebatação para prestar contas das suas ações deverá ocorrer em nível individual, não global. Por isso é que cada um deve estar sempre vigilante, pois ninguém sabe o dia nem a hora em que isso ocorrerá.


Portanto, o ensinamento de Paulo sobre o tempo de despertar não se refere a um tempo abstrato e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé em Cristo deve ser renovada a cada dia, e o período do advento é o tempo mais propício para que despertemos a nossa consciência para essa realidade inafastável, que é o fim dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. A contagem da nossa vida em meses e anos nos dá a medida para cada um avaliar a chegada ao final da carreira, quando deveremos estar com a fé robustecida e a esperança sempre renovada. Neste tempo do advento, a liturgia nos leva a fazer esta reflexão realista, não como forma de intimidação ou aterrorização, mas como exercício de vivermos conscientes e centrados nos nossos compromissos de cristãos.


Aproveitemos o tempo do advento para reflorescer a cada dia a nossa fé na divina promessa.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 20 de novembro de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SOLENIDADE DE CRISTO REI - 20.11.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 20.11.2022.


Caros Confrades,


O 34º domingo comum encerra o ano litúrgico com a celebração da festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta comemoração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período que intermediou as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo. Fazia pouco tempo que o comunismo havia triunfado na União Soviética e havia aquele temor de disseminação por outros países, gerando incômoda situação de insegurança. A intenção do Papa era mostrar Jesus como um rei pacífico, que não tem interesse em exercer o poder político e econômico, mas reina com a prática da caridade, com a dedicação ao serviço, com atitudes de humildade. Conforme Jesus mesmo dissera, diante de Pilatos, “o meu reino não é deste mundo”. E aos discípulos, ele havia dito: “aquele que quer ser o maior dentre vós, seja o mais disposto a servir”. Nos tempos atuais, a referência à figura de um rei perdeu muito a sua força devido a ser uma figura política que não mais faz parte da nossa realidade, não combina com a conjuntura mundial, pois os reinos são hoje praticamente inexistentes e aqueles que ainda existem adquiriram uma estrutura formal totalmente diferente do que era até o início do século XX. O conceito do reino, nos dias de hoje, está mais associado aos contos de fada e às figuras da literatura, portanto, passou para o campo do simbolismo e da utopia. A aplicação dos títulos de rei e rainha para Jesus Cristo e para Maria Mãe de Jesus, restringe-se ao domínio dos afetos e da devoção e para entendermos melhor o significado do reino da paz e da concórdia, proposto por Jesus, devemos considerá-lo como uma construção comunitária, vivencial, escatológica. É para a construção desse reino que todos nós cristãos somos convocados.


Passando às leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel, na presença dos anciãos representantes de todas as tribos. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, em conjunto com o filho dele, Salomão, outro grande governante, pois os dois são responsáveis por histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria pertenciam à da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que era descendente da linhagem de um rei.


Logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Jesus Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Jesus. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outras 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14 gerações. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi, de acordo com a numerologia hebraica, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6; as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como se pode perceber, a numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.


Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.


No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Jesus, quando Ele dialoga com os ladrões crucificados ao Seu lado. Enquanto um deles intimida-o, desafiando-o a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados, o outro repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Uma curiosidade, que me vem à mente sempre que leio esse texto é de imaginar como esse diálogo tornou-se conhecido, se é que, de fato, existiu. Sabemos que, na hora da crucificação de Jesus, os apóstolos haviam debandado e, diante da cruz, estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João, que estava presente, não relata esse diálogo nos seus textos. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. De que modo Lucas teria obtido tal informação? Ora, sabe-se que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria por muito tempo e ouviu dela relatos intimistas referentes à vida dela própria e de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos supor como probabilidade que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados, que participaram da execução, tenha se preocupado de prestar atenção ao que os condenados falavam. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas muito provavelmente o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.


Meus amigos, peço desculpas por não fazer uma apologia da realeza de Jesus, talvez alguns de vocês até fiquem desapontados com isso. De fato, eu discordo desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, pois entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz, que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.


Cordial abraço.

Antonio Carlos

sábado, 5 de novembro de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE TODOS OS SANTOS - 06.11.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – OS BEM AVENTURADOS - TODOS OS SANTOS – 06.11.2022


Caros Confrades,


Neste domingo, celebramos a memória litúrgica da festa de Todos os Santos e Santas, transferida do dia 1 para hoje, conforme o calendário oficial das festas religiosas. O evangelho de hoje rememora as bem-aventuranças ditadas por Jesus no famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.


O dia de todos os Santos, no calendário, é sempre vizinho do dia de finados, distanciando-se apenas nesses casos de transferência do dia comemorativo. Mas é costume o templo ficar com lotação superior aos demais dias santificados, numa demonstração da valorização da fé religiosa na comunhão dos santos, através da comemoração conjunta com os fiéis defuntos. Tradicionalmente, também os cemitérios ficam superlotados, pois ainda é um costume muito forte na nossa cultura, quase uma obrigação. Podemos entender que esse grande afluxo de pessoas que acorrem à celebração de todos os Santos e dia de finados está diretamente ligado com a imagem da imensa multidão, descrita no Apocalipse de João, lido na liturgia de hoje, tanta gente que ninguém podia contar. No primeiro plano, João coloca os 144 mil assinalados, representantes simbólicos das doze tribos de Israel. Antes do trabalho catequético de Paulo, o apóstolo dos estrangeiros (gentios), estimava-se que a mensagem de Cristo devia ser seguida apenas por aqueles que eram herdeiros da promessa, os judeus, pois foi para eles que, num primeiro momento, Jesus Cristo pregou. Mas, com a pouca adesão no meio judaico, a fé cristã ganhou imenso foro e entusiasmo no meio da “grande multidão formada por todos os povos e nações”. Por fim, Paulo conseguiu introduzir, com sucesso, o cristianismo no cerne da cidade então capital do mundo, capital do Império Romano. De lá, estendeu-se por toda a Europa e chegou até nós.


Em certa parte do trecho lido hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: “quem são essas pessoas?” João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser esses brasileiros nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados de Canindé e Juazeiro do Norte, fato notório em cada ano. Fico imaginando a grandiosa festa que acontecerá no horto de Juazeiro quando o Papa, em dia não muito distante, proclamar a santidade do Padre Cícero, agora que já não existe mais nenhum óbice canônico, com a retirada das penalidades que lhe haviam sido impostas. A canonização da menina Benigna, ocorrida na semana passada, já foi um ensaio para o que será, em breve futuro, com o Padre Cícero. Todos sabemos que o povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Mas quando o reconhecimento oficial acontecer, então a comemoração deverá ser inenarrável. Eu creio, sinceramente, que o Papa Francisco ainda celebrará essa cerimônia memorável. Aguardemos.


Meus amigos, a imagem joanina da grande multidão nos reporta imediatamente para as romarias nordestinas, uma forma de manifestação visível da autêntica comunhão dos santos: a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala de uma multidão que ninguém podia contar. Pois bem, ele não estava exagerando. Somente o contingente de romeiros de Juazeiro já seria suficiente para confirmar a previsão apocalíptica. Se acrescentarmos as outras milhares de comunidades de igrejas cristãs presentes nos diversos lugares do Brasil e do planeta, vamos concluir que incontável é pouco. E se considerarmos ainda as comunidades cristãs separadas, que o Papa Francisco está em busca de reunir, vamos compreender que não houve exagero na profecia de João, pois dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.


A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa verdade de fé é descrita na teologia como a dialética do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a “justificação” do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação é mais amplo do que a simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada acima (3, 2). Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].


A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, a palavra bem aventurados diz-se 'beati' (plural de beatus) é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. O cântico litúrgico da festa de hoje, reproduzindo uma passagem do cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”: a vida dos justos está nas mãos de Deus, “Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão consolados”. Lembro que o Frei Higino costumava dizer, nas suas conferências, repetindo um bordão de São Francisco: um frade triste é um triste frade. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança, a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de todos e passar o dia de joelhos, rezando e meditando, sem viver na comunidade. Assim seria muito fácil alcançar a santidade. O grande desafio da santidade é aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do rosário seguidas vezes para alcançar o patamar da autêntica santidade.


É importante refletir sobre o conceito de santidade, porque há uma compreensão distorcida desse termo, entendendo que apenas aqueles fiéis que foram canonizados pela Igreja podem ser chamados com o nome de santos. Aqueles são, sem dúvida, porém eles estão ali como exemplos para nós, como modelos de vida cristã, cujas virtudes foram oficialmente reconhecidas. A festa litúrgica de Todos os Santos não significa uma forma de homenagear todos os canonizados, por não ser possível reservar um dia do ano para cada um. Na verdade, o contexto teológico se refere à “comunhão dos santos”, uma verdade de fé que nos une aos fiéis cristãos que nos antecederam e nos deixaram o exemplo de sua fé a nós, que ainda estamos a caminho. Todos fazemos parte da “grande multidão” narrada no Apocalipse. Todos somos chamados para a santidade e, mesmo aqueles que eventualmente se desviaram do caminho, não estão segregados desse chamamento. Aproveitemos a data para repensar o nosso conceito de santidade.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos