COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 20.11.2022.
Caros Confrades,
O 34º domingo comum encerra o ano litúrgico com a celebração da festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta comemoração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, no período que intermediou as duas grandes guerras mundiais e num momento de grande descrença nas religiões e a consequente ascensão do ateísmo no mundo. Fazia pouco tempo que o comunismo havia triunfado na União Soviética e havia aquele temor de disseminação por outros países, gerando incômoda situação de insegurança. A intenção do Papa era mostrar Jesus como um rei pacífico, que não tem interesse em exercer o poder político e econômico, mas reina com a prática da caridade, com a dedicação ao serviço, com atitudes de humildade. Conforme Jesus mesmo dissera, diante de Pilatos, “o meu reino não é deste mundo”. E aos discípulos, ele havia dito: “aquele que quer ser o maior dentre vós, seja o mais disposto a servir”. Nos tempos atuais, a referência à figura de um rei perdeu muito a sua força devido a ser uma figura política que não mais faz parte da nossa realidade, não combina com a conjuntura mundial, pois os reinos são hoje praticamente inexistentes e aqueles que ainda existem adquiriram uma estrutura formal totalmente diferente do que era até o início do século XX. O conceito do reino, nos dias de hoje, está mais associado aos contos de fada e às figuras da literatura, portanto, passou para o campo do simbolismo e da utopia. A aplicação dos títulos de rei e rainha para Jesus Cristo e para Maria Mãe de Jesus, restringe-se ao domínio dos afetos e da devoção e para entendermos melhor o significado do reino da paz e da concórdia, proposto por Jesus, devemos considerá-lo como uma construção comunitária, vivencial, escatológica. É para a construção desse reino que todos nós cristãos somos convocados.
Passando às leituras litúrgicas de hoje, vemos na primeira leitura, um trecho do segundo livro de Samuel (2Sm 5, 1-3), no qual é narrada a unção de Davi como rei de Israel, na presença dos anciãos representantes de todas as tribos. O rei Davi é uma das figuras mais emblemáticas do Antigo Testamento, em conjunto com o filho dele, Salomão, outro grande governante, pois os dois são responsáveis por histórias e lendas junto ao povo de Israel. Tão simbólica foi a missão do rei Davi que os profetas anunciaram que o Messias tão esperado de Israel nasceria de uma família da sua estirpe. Com efeito, tanto José, esposo de Maria, quanto ela própria pertenciam à da “casa de Davi”. As profecias antigas diziam que o Messias nasceria de uma mulher descendente de Abraão, da tribo de Judá e da família de Davi. Portanto, essa leitura do segundo livro de Samuel relaciona a realeza de Davi com a realeza de Cristo. Cristo é rei por ser descendente do mais importante rei de Israel. Essa é a ligação feita pelos teólogos desde a Idade Média, o que se justificava bem naquela época, em que a realeza era a forma de governo dominante, praticamente a única existente. E dentro da regra da hereditariedade, para alguém ter direito ao trono real, era necessário demonstrar que era descendente da linhagem de um rei.
Logo nos primórdios do cristianismo, o evangelista Mateus buscava demonstrar, através das citações genealógicas, o vínculo familiar que unia Jesus Cristo ao rei Davi, afirmando assim o cumprimento das profecias. Mateus faz isso de uma forma bastante cuidadosa, quando no seu texto (Mt 1, 1-17) detalha a listagem genealógica de Jesus, elencando três períodos de 14 gerações, a partir de Abraão até chegar a Jesus. De Abraão a Davi são 14 gerações, de Davi até o cativeiro da Babilônia, outras 14, e do final do cativeiro até o Messias são mais 14 gerações. De acordo com os biblistas, isso tem uma explicação matemática, porque a correspondência das letras hebraicas do nome de Davi, de acordo com a numerologia hebraica, somando-as, dá 14 como resultado. A soma é assim: em hebraico, escreve-se Dawid, com w. Na numerologia hebraica, o D=4 e o W=6; as vogais não existiam no hebraico, por isso não entram na soma. Então, o total será D+W+D=4+6+4=14. Como se pode perceber, a numerologia também faz parte da Bíblia e Mateus devia ser um especialista na matéria.
Temos na segunda leitura um trecho da carta aos Colossenses (Cl 1, 12-20), na qual Paulo faz um grande discurso apologético acerca da divindade de Cristo. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele.” (2Cl 1, 15-16) Observa-se que Paulo não economiza nos qualificativos, ao contrário, faz uma suprema exaltação da figura de Cristo, embora não use o título de rei. Jesus é o princípio de todas as coisas e o primogênito dentre os mortos e alcançar a glória da ressurreição. O texto de Paulo é um autêntico hino à realeza de Cristo, sem citá-la. Com certeza, Paulo escreveu isso sem conhecer o texto do evangelho de Mateus (as cartas de Paulo são mais antigas), pois talvez se o tivesse conhecido, teria mencionado também a ascendência real de Cristo na sua origem terrena. O discurso de Paulo se direciona para a ascendência de Cristo no plano divino, mostrando a estreita relação d'Ele com o Pai: “porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres.” (2Cl 1, 19-20) Portanto, embora não mencione a palavra “rei”, Paulo deixa isso subentendido nos vários conceitos utilizados para realçar a Sua personalidade divina. Nesse contexto, Paulo também relaciona a figura de Cristo como Cabeça da Igreja, cujo corpo somos nós, criando assim a doutrina do corpo místico de Cristo, largamente aplicada na teologia e na catequese.
No evangelho de Lucas (Lc 23, 35-43), lemos um trecho da narrativa dos eventos relativos à paixão de Jesus, quando Ele dialoga com os ladrões crucificados ao Seu lado. Enquanto um deles intimida-o, desafiando-o a salvar-se e a salvar também os outros dois condenados, o outro repreende o comparsa e confessa seu arrependimento, pedindo que Jesus o acolha no Seu reino. Esse diálogo é bem conhecido, porque é repassado na liturgia da Semana Santa e foi sempre muito reproduzido também na catequese tradicional. Uma curiosidade, que me vem à mente sempre que leio esse texto é de imaginar como esse diálogo tornou-se conhecido, se é que, de fato, existiu. Sabemos que, na hora da crucificação de Jesus, os apóstolos haviam debandado e, diante da cruz, estavam apenas João, Maria e algumas mulheres, que olhavam à distância. Pois bem, João, que estava presente, não relata esse diálogo nos seus textos. Os outros dois evangelistas, Marcos e Mateus, apenas se referem aos malfeitores crucificados com ele, sem mencionarem o diálogo, que só aparece no texto de Lucas. De que modo Lucas teria obtido tal informação? Ora, sabe-se que Lucas, sendo médico, cuidou de Maria por muito tempo e ouviu dela relatos intimistas referentes à vida dela própria e de Jesus, que os outros escritores não tomaram conhecimento. Por essa linha de raciocínio, podemos supor como probabilidade que tal diálogo tenha sido escutado e memorizado por Maria, mãe de Jesus, que posteriormente o segredou a Lucas. Não me parece crível que algum dos soldados, que participaram da execução, tenha se preocupado de prestar atenção ao que os condenados falavam. E se João tivesse prestado atenção nesses detalhes, certamente também os teria relatado. Mas muito provavelmente o olhar e o ouvido da Mãe captaram coisas que passaram despercebidas a todas as outras pessoas. É impressionante essa capacidade que as mães têm para perceber mensagens até subliminares no comportamento dos filhos.
Meus amigos, peço desculpas por não fazer uma apologia da realeza de Jesus, talvez alguns de vocês até fiquem desapontados com isso. De fato, eu discordo desse aparato que a liturgia atribui à figura de Cristo como rei, pois entendo que Ele é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz, que Ele vem nos trazer todos os dias, ensinando-nos a viver em fraternidade e harmonia. É disso que a sociedade precisa e compete a nós, cristãos, dar exemplo público dessa fraternidade e harmonia de Cristo nas nossas vivências cotidianas.
Cordial abraço.
Antonio Carlos
Nenhum comentário:
Postar um comentário