COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – CORDEIRO DE DEUS – 15.01.2023
Caros Confrades,
Na liturgia
deste domingo, 2º do tempo comum, Jesus é apresentado como o
Cordeiro de Deus, no evangelho de João. Essa figura do cordeiro já
estava preconizada na profecia de Isaías, com o título Servo de
Javé. Os quatro cânticos sobre o Servo de Javé, que se encontram
no livro do Profeta Isaias entre os cap 42 e 53, foram muito
lembrados pelos primeiros cristãos, nas suas orações e pregações,
logo após a ressurreição de Jesus. De acordo com o Profeta, o
Servo de Javé viria para reunir novamente o povo de Deus, que estava
cativo, e conduzi-lo à salvação e, por intermédio desse povo,
estender a salvação a todos os confins de terra. De modo especial o
quarto cântico (cap 52-53), sobre o Servo sofredor, encaixou-se
perfeitamente no contexto da paixão de Jesus. João evangelista
reescreve a narração do batismo de Jesus, afirmando que, pela
manifestação do Espírito em forma de pomba, o Batista reconheceu
Jesus como o Cordeiro de Deus, isto é, o Servo de Javé prefigurado
em Isaías.
De início, lembremo-nos que o
livro de Isaías era o preferido por Cristo para fazer referências a
respeito de si próprio, sempre que isso era necessário. Na leitura
de hoje (Is 49, 6), destaco o seguinte trecho: “'Não
basta seres meu Servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir
os remanescentes de Israel: eu te farei luz das nações, para que
minha salvação chegue até aos confins da terra'.”
Vejam só o trocadilho dos nomes: Jacó e Israel eram a mesma pessoa,
o terceiro Patriarca, neto de Abraão. Jacó foi aquele que “tomou”
do seu irmão gêmeo Esaú (que embora sendo gêmeo, havia nascido em
primeiro lugar) os direitos de primogenitura, naquele estratagema
armado pela mãe deles, Rebeca, que preferia Jacó a Esaú. Este
ficou iradíssimo com o irmão, com toda razão, pois teve o seu
direito usurpado, e passou a ameaçar Jacó. Para evitar uma
carnificina entre os irmãos, Rebeca mandou Jacó para passar uns
tempos bem longe, com um tio chamado Labão (que não era o que se
chamaria de cidadão exemplar), na esperança de que, com isso, a ira
de Esaú se acalmasse. Lá nos confins onde morava com o tio, Jacó
casou com as duas primas (Lia e Raquel), porque o tio também
trapaceou com ele e entregou a filha “errada”, na hora das
núpcias. Em vez de devolver, Jacó ficou com as duas. Meus amigos,
esses fatos narrados na Bíblia não são, de forma alguma, modelos
de comportamento compatíveis com a aliança entre aquele povo e
Javé, quantas tramoias estão aqui envolvidas de parte a parte. Mas
a história do povo de Deus é assim mesmo, cheia de contradições.
Fiz aqui esse breve retrospecto
para contextualizar com a leitura do profeta Isaías, deste domingo,
quando ele diz que o Servo de Javé virá restaurar as tribos de Jacó
e reconduzir os remanescentes de Israel. Para compreendermos isso,
devemos também lembrar que Jacó teve seu nome mudado para Israel
após uma luta misteriosa que travou com um anjo, cuja personalidade
a Bíblia não explica, mas que os intérpretes entendem que tenha
sido o próprio anjo protetor de Esaú, que veio batalhar com Jacó,
a fim de evitar que os dois irmãos se matassem num encontro que se
aproximava. Essa é uma passagem nebulosa da Bíblia, pois o fato é
que, quando os irmãos raivosos finalmente se encontraram,
abraçaram-se e choraram mutuamente, celebrando a paz. Porém, isso
só foi possível por causa de uma mudança radical que aconteceu com
Jacó, após a luta deste com o anjo, que mudou o seu nome para
Israel, porque ele havia vencido alguém mais poderoso do que ele.
Hoje, se poderia explicar essa “luta” misteriosa e simbólica
como se Jacó estivesse duelando consigo mesmo em espírito,
levando-o a uma mudança completa no seu comportamento, após o que
ele ter-se-ia tornado uma pessoa com um outro perfil psicológico,
operado pela interveniência de Javé. A troca do nome significaria
isso, assim como Javé mandou que Abrão mudasse o nome para Abraão,
que significava pai de uma multidão. Essa questão do nome no Antigo
Testamento tem um simbolismo muito curioso e um sentido próprio, que
não se encontra nas demais culturas.
Pois bem, retomando o trecho de
Isaias (49, 6), o Profeta diz: restaurar as tribos de Jacó e
reconduzir os remanescentes de Israel. Isso significa a reunião do
passado com o presente, do antes com o depois, dos descendentes de
Jacó com os descendentes de Esaú, que agora não são mais rivais,
mas fizeram as pazes, enfim, a união de todo o povo de Deus. No
sentido trans histórico dessa imagem, podemos vislumbrar aí a união
de todos os povos dos diferentes continentes, raças e costumes sob a
mesma liderança do Servo de Javé, aquele que foi preparado desde o
nascimento para ser a luz das nações e o portador da salvação a
toda a humanidade.
Na segunda leitura, do início da
carta de Paulo aos Coríntios, o apóstolo repete esse mesmo mote de
Isaías, já citando o nome de Cristo, quando coloca como
destinatários da carta assim: “à
Igreja de Deus que está em Corinto: aos que foram santificados em
Cristo Jesus, chamados a ser santos junto com todos que, em qualquer
lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e
nosso.” (1Cor 1, 2).
Firme na fé de que Cristo é o Servo de Javé, aquele que veio para
unir todas as nações, povos e culturas, Paulo destina sua carta a
todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de Jesus, isto é, a nós
e a todos os cristãos. Isaías referiu-se àquilo que ainda
iria acontecer no futuro, enquanto Paulo se refere a algo que já
havia se tornado realidade, com o novo mandamento de Cristo. O
discurso de Paulo dá sequência e complementa o discurso de Isaías.
As tribos de Jacó, infelizmente, não reconheceram em Jesus o
Messias prometido, mas os remanescentes de Israel, isto é, nós, os
povos de boa vontade, gentios e de terras distantes, ouvimos a sua
palavra e a ela aderimos. Algum tempo atrás, eu estava vendo na
internet uma videoconferência com uma professora de Bíblia de
Jerusalém e, na ocasião, um dos assistentes perguntou a ela o que
significava Jesus para os judeus. Ela respondeu assim: ele foi um
judeu famoso, não mais do que isso. Cabe lembrar aqui a frase de
Cristo a Tomé: felizes os que creram mesmo sem ter visto... ou seja,
felizes somos nós, cristãos.
Agora, uma referência ao
evangelho de João (1, 29-34). Na semana passada, lemos o texto de
Mateus (3, 13-17), no qual o evangelista diz que, após Jesus ter
sido batizado, o Espírito Santo apareceu sobre ele em forma de
pomba. A narração do evangelista João inverte a ordem desses
fatos. Diz que, quando Jesus ia se aproximando para ser batizado, o
outro João, o Batista, disse logo: este é o Cordeiro de Deus (Jo 1,
29). É uma afirmação curiosa, porque o próprio Batista disse que
não conhecia Jesus: “Também
eu não o conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que ele
fosse manifestado a Israel'.”
(Jo 1, 31). Então, se o Batista não conhecia Jesus, como foi que o
identificou de imediato? O próprio evangelista explica como o
Batista o reconheceu: “Eu
vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre
ele. Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar
com água me disse: `Aquele sobre quem vires o Espírito descer e
permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo'.”
(Jo 1, 32-33) Com essa leitura, faz sentido aquela outra exclamação
do Batista ao ver Jesus, conforme narra Mateus (3, 14): “'Eu
preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?'”
Ora, se o Batista não conhecia Jesus, por que teria dito isso antes
de batizá-lo? Assim, a narrativa de João é mais coerente: quando o
Batista avistou Jesus, mesmo antes que ele se aproximasse para ser
batizado, viu já o Espírito sobre ele e desse modo o reconheceu.
Provavelmente, os demais presentes nem tenham participado dessa visão
após o batismo de Jesus, porém, com certeza, o Batista já o havia
vislumbrado bem antes. Foi por isso que o Batista pôde afirmar:
“'Eis
o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Dele é que eu disse:
Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia
antes de mim.” (Jo 1,
29).
Alguém poderia admirar-se com
certas discrepâncias observadas no texto bíblico e, de fato, isso
faz com que pessoas não crentes se utilizem desses pormenores para
justificarem sua falta de fé. No entanto, devemos sempre
contextualizar para melhor entender. O evangelho de João foi escrito
cerca de 40 a 50 anos após os primeiros. Estima-se que os evangelhos
sinóticos datem dos anos 50 ou 60, enquanto o evangelho de João
teria sido escrito por volta dos anos 95 a 100. Além do mais, João
deu seu testemunho pessoal dos ensinamentos de Cristo, enquanto os
outros três escreveram baseando-se em fontes escritas por terceiros.
Isso não significa que os outros estejam errados e só João esteja
certo, não devemos concluir assim. Cada um deles representa um traço
comunitário da fé cristã dos tempos primitivos e pequenas
divergências são perfeitamente justificadas com as diferenças
espácio temporais. Apesar delas, contudo, a fé no Cristo Cordeiro
de Deus é a mesma e não fica comprometida. Que a nossa vida brilhe
sempre mais com a felicidade que brota desta fé.
Com um cordial abraço a
todos.
Antonio Carlos
Nenhum comentário:
Postar um comentário