COMENTÁRIO LITURGICO – 24º DOMINGO COMUM – SABER PERDOAR - 17.09.2023
Caros Confrades,
A liturgia
deste domingo evolui o tema do domingo anterior, no qual foi abordada
a questão da correção fraterna. Hoje, o tema é o perdão, que
deve ser resultado do arrependimento. Perdão sem arrependimento não
surte efeito. A fonte do perdão é o próprio Deus, daí porque
rezamos, no Pai Nosso, perdoai as nossas ofensas. A condição prévia
para esse perdão é a que vem em seguida: assim como nós perdoamos
aos nossos ofensores. Nenhum cristão pode almejar o perdão divino
se não for capaz de exercer o perdão ao seu semelhante. Esta
advertência está presente em diversas passagens do evangelho,
especialmente em Mateus 5, 24, quando Jesus diz: se tens alguma rixa
com alguém, deixa a tua oferenda diante do altar e vai antes
reconciliar-te com o teu irmão.
Nas leituras litúrgicas deste
domingo, a mensagem central aborda o problema da raiva e do rancor,
associados com a misericórdia e com a reconciliação. A primeira
leitura, retirada do Eclesiástico (também conhecido como Ben Sirac
ou Sirácide, na tradição hebraica – Eclo 28, 1-9) é de refinada
e coerente sabedoria: O rancor e a raiva são coisas detestáveis,
até o pecador procura dominá-las. Tu, que temes a Deus, perdoa a
injustiça cometida por teu próximo, assim, quando orares, teus
pecados serão perdoados. Ora, se alguém não tem compaixão do seu
semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados? Se não
tem compaixão do seu semelhante e guarda rancor, como é que vai
alcançar perdão de Deus? (Eclo 28,4-5). Vemos aqui, meus amigos,
que a liturgia está prosseguindo na mesma temática do domingo
anterior, quando trouxe a mensagem sobre a correção fraterna. Tal
como aquela, esta do perdão é também uma das coisas mais difíceis
de se fazer na prática na vida cotidiana, mas esse é o mandamento.
Como diz Paulo, apóstolo, neste mesmo sentido (embora não seja uma
das leituras de hoje): amar os amigos é muito fácil, mas devemos
amar os inimigos. Existem algumas atitudes dos nossos semelhantes que
doem muito profundamente em nós, sobretudo a maledicência, a
injúria, a ingratidão, doem mais do que uma alfinetada. A vontade
que se tem é de nunca mais olhar na cara da pessoa que faz isso.
Mas, exorta o Eclesiástico (38, 8-9): “Pensa nos mandamentos,
persevera nos mandamentos e não guardes rancor ao teu próximo.
Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta
alheia!”
Certa vez, eu li num dos nossos
antigos livros de exercicios latinos um fato pitoresco da vida de
Sócrates, que me vem agora à mente. A esposa de Sócrates, de nome
Xantipa, era uma mulher inconveniente, muito grosseira, fofoqueira,
tratava mal o marido, e os amigos se admiravam da paciência com que
Sócrates suportava tudo isso. Certa vez, perguntaram a ele por que
não a deixava? Sócrates respondeu cristãmente: com ela, eu
exercito todos os dias a tolerância e aprendo a ter paciência com
as outras pessoas. Na minha interpretação, o exercício da
tolerância, no caso de Sócrates, é o exercício do perdão. É
aquilo que nós rezamos todos os dias no Pai Nosso - perdoai as
nossas ofensas assim como nós perdoamos os que nos ofenderam –
fácil de dizer, mas nada fácil de praticar.
Tem também a esse propósito a
história de um homem que comprava jornais todos os dias de um
jornaleiro que o atendia grosseiramente, mas ele sempre retribuía
com um sorriso e o cumprimentava com cortesia. Um amigo perguntou
porque ele não retribuía a grosseria do jornaleiro na mesma medida,
então ele respondeu: porque não quero que ele decida como eu devo
me comportar, quem decide o meu comportamento sou eu. Se eu retribuir
a grosseria dele, estarei deixando que ele decida por mim; sendo
gentil, eu estou no comando da minha decisão. Isso é algo fácil de
fazer? Por certo que não. Mas é isso que a sabedoria hebraica nos
ensina e o que Cristo referenda na leitura do evangelho, que
comentarei a seguir. Se há pessoas que praticam a tolerância
simplesmente por motivos humanitários, muito mais nós cristãos
temos, além do humanitarismo, a motivação do mandamento que manda
perdoar.
Na perspectiva científica contemporânea, os psicólogos recomendam uma espécie de terapia do perdão. Além de ser uma virtude religiosa ou moral, perdoar é um ato terapêutico, faz bem à alma e alegra a vida de quem perdoa, aliviando as tensões e dissolvendo a ansiedade. Perdoar não é amnésia, simplesmente esquecer, aliás, o esquecimento de certas ofensas é até, pode-se dizer, impossível. O legítimo perdão se alcança quando você consegue se lembrar da ofensa, sem que aquilo lhe aborreça, lhe oprima o espírito. Saber perdoar é uma necessidade da alma, para que não venhamos a adoecer física e psicologicamente. E, muito diferente do que se pensa, perdoar não é atitude de pessoas fracas, ao contrário, exige extrema fortaleza de espírito, sendo necessário ter muita maturidade e autocontrole para exercê-lo. Ora, se essa atitude de perdoar é recomendada até mesmo fora do ambiente religioso, fundada no objetivo de viver melhor, tanto mais quando o ato do perdão se associa com a fé religiosa. O cristão que não consegue superar a ânsia da vingança e busca, de todos os modos, se vingar do ofensor não está sendo fiel ao ensinamento de Cristo.
É isso que ele reforça na
leitura do evangelho de hoje (Mt 18, 21-35). Em certa ocasião,
Pedro, que devia encontrar-se atormentado com ofensas de alguém,
pergunta a Jesus Cristo: Mestre, quantas vezes devo perdoar o meu
irmão que peca contra mim, sete vezes? Pedro já devia achar que
estava sendo bastante tolerante ao perdoar sete vezes. Ocorre que
Jesus Cristo respondeu de forma inesperada e surpreendente para ele:
não apenas sete, mas 70 x 7. Mostrando o seu conhecimento da Torah,
Jesus repetiu a regra que consta em Gênesis 4, 24, quando Lamech,
filho de Caim, tendo matado um homem que o ofendera, comentara com
suas mulheres Ada e Zilá: Caim será castigado sete vezes, mas
Lamech, setenta vezes sete. Os exegetas interpretam esse número (70
x 7) como sendo o símbolo do infinito. O número 7, interpretado
dentro da numerologia bíblica, tem uma relação com a plenitude,
sendo considerado o número perfeito. A criação do mundo em 7 dias
indica que este é um número da preferência de Javeh. No
cristianismo primitivo, entendia-se o sete como a associação da
Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) com os pontos cardeais (norte,
sul, leste, oeste), conferindo-lhe o status de número prefeito. Daí
que, quando Pedro indaga sobre “perdoar sete vezes” estaria
talvez referindo-se a uma quantidade que simbolizaria o máximo. Mas
quando Cristo responde que o perdão deve ser conferido setenta vezes
sete vezes, está querendo potencializar fortemente esse número 7,
que já era em si muito grande, isto é, deve-se perdoar infinitas
vezes.
E, em seguida, Jesus Cristo complementa a lição com a história do devedor que teve uma grande dívida perdoada pelo patrão, mas daí a pouco, quando ele encontrou alguém que lhe devia poucas moedas, agiu de modo intolerante e não foi capaz de passar adiante o perdão que havia recebido. O patrão mandou chamá-lo e retirou o perdão que havia dado, exigindo o pagamento de toda a dívida. Vale lembrar que, na época de Jesus, o devedor que não tivesse como quitar sua dívida se tornava escravo do credor, que podia até vendê-lo no mercado para resgatar o seu crédito. E se a dívida fosse tão grande que apenas a venda do devedor não fosse suficiente, o credor podia vender também a esposa, os filhos, os bens do devedor, o que fosse bastante para cobrir a dívida. Daí porque, no texto antigo do Pai Nosso (ainda é assim no texto latino) a expressão era: perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores. Ser devedor insolvente era condição que levava alguém à escravidão. E Jesus arremata o discurso de um modo fulminante: é assim que o vosso Pai agirá convosco, se não perdoardes de coração o vosso irmão. Vejam bem, não basta perdoar da boca pra fora simplesmente, tem de ser perdão de coração.
Meus amigos, como isso é difícil, mas este é o mandamento. Devemos ser misericordiosos com o próximo não porque o próximo mereça isso, mas porque Deus é misericordioso conosco. Se nós recebemos misericórdia generosamente, devemos praticar também a misericórdia mesmo com quem não a merece. Este é o desafio que Cristo coloca para nós neste domingo. É a mesma mensagem que o São Francisco ensinava com outras palavras: ninguém deve esperar ser perdoado para, só então, dar o perdão, pois é perdoando que se é perdoado. Sigamos o seu exemplo.
Cordial abraço a todos.
Antonio
Carlos
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