COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A OBEDIÊNCIA DE ABRAÃO – 25.02.2024
Caros Confrades,
As leituras
deste 2º domingo da quaresma trazem para a nossa reflexão o tema da
obediência de Abraão associada com a fé que dela provém, tida
como modelo para todos os seus descendentes. Javeh pediu a Abraão
que sacrificasse seu próprio filho, fato que não se concretizou.
Porém, tempos depois, o Pai entregou o seu próprio Filho para ser
sacrificado, em razão da sua fidelidade para com a promessa, sendo a
figura de Isaac uma preconização do sacrifício de Cristo.
Evidentemente, Deus não devia fidelidade a Abraão, mas o
cumprimento de sua promessa era um compromisso que Deus fizera
consigo próprio, o qual em nenhuma hipótese poderia deixar de ser
cumprido.
Na primeira leitura (Gn 22), temos o clássico exemplo de Abraão, que foi solicitado por Javeh a imolar seu único filho, a maior prova de fé contida no Antigo Testamento, mercê da qual Javeh selou com ele a sagrada aliança e prometeu-lhe uma incontável descendência. Trata-se de um episódio marcante no contexto bíblico, para ressaltar a obediência que provém da fé. A confiança de Abraão em Javeh era tão imensa, que ele não hesitou em seguir a ordem de imolação do filho único. Posteriormente, Jesus vai dizer, no episódio do centurião romano que disse “senhor, eu não sou digno de ires à minha casa, basta dizeres uma palavra para curar o meu servo”, que nunca tinha visto um exemplo de tanta fé, desde Abraão.
De acordo com leituras que tenho feito alhures, há uma linha de comentários exegéticos que interpreta o clássico texto do Gênesis de um modo não convencional. Afirmam que esse ritual de imolação do filho primogênito era uma praxe entre os antigos povos pagãos, como forma de agradar os seus deuses, oferecendo sacrifícios humanos. Então, no episódio de Javeh que, inicialmente teria solicitado a imolação de Isaac e depois voltou atrás, o escritor sagrado estaria chamando a atenção dos judeus para o fato de que Javeh é diferente dos deuses dos povos pagãos. Ademais, esses estudiosos levantam a hipótese de que não fora necessário que Javeh solicitasse o sacrifício do filho a Abraão, pois este já iria fazer isso mesmo, seguindo o ritual que era costumeiro entre os povos do seu tempo. Então, Javeh interferiu, para demonstrar que Ele não era igual aos deuses pagãos e ainda para ensinar ao povo hebreu que Ele não queria nem aceitava sacrifícios humanos. Daí eu fiquei imaginando que esse episódio pode ser uma espécie de “legenda” bíblica, um gênero literário que tem por objetivo dar um ensinamento através de uma história envolvente e emotiva. Semelhante ao caso de Jó, um personagem cuja existência é duvidosa. Assim como o episódio do assassinato de Abel por Caim. Assim como a jornada de Jonas no ventre do grande peixe. A palavra “legenda” é um termo latino que significa “um texto que deve ser lido” por conter um ensinamento importante, mas não necessariamente que o episódio narrado tenha de fato ocorrido.
Fazendo uma análise psicológica dessa narrativa, à luz dos conceitos modernos, vemos em Javeh a imagem daquele pai terrível, autoritário, austero e até sádico, tendo pedido a Abraão que lhe sacrificasse o filho único, sabendo de antemão que não iria permitir a concretização do sacrifício. Esse tipo de comportamento paterno era bastante comum no modelo familiar tradicional, em que o pai tinha uma autoridade soberana e inalcançável, a quem tanto a mãe da família como os filhos e filhas deviam obediência cega e indiscutível, resquício tardio dessas antigas tradições dos povos orientais. Nos filmes e novelas de época, vemos exemplos de pais despóticos, que eram muito mais temidos do que amados. Talvez, nunca amados. Felizmente, no moderno conceito de família, essa figura paterna distante e autoritária vem sendo substituída pela figura do pai afável, companheiro, que prefere dialogar e não impor sua vontade, tornando-se parceiro e cúmplice dos filhos e filhas, atuando em conjunto com a esposa, tornando-se um ponto de apoio e de referência para a prole. Percebemos, então, que essa figura do Javeh impondo a Abraão uma dolorosa e angustiante decisão e mantendo-o naquela expectativa por longo tempo corresponde a um estereótipo de pai que era padrão nas sociedades arcaicas, quando ainda não eram conhecidas as teorias psicológicas e pedagógicas desenvolvidas nos tempos modernos. Cristo veio ensinar que a verdadeira imagem do Pai é a que ele mostrou, não a que a tradição judaica apresentava.
Neste pequeno episódio, então, temos várias lições que nos são transmitidas por essa narrativa pedagógica: 1. a fé inquebrantável de Abraão e a sua obediência confiante; 2. o fato de que Javeh não quer sacrifícios humanos; 3. a fidelidade de Javeh ao cumprimento de sua promessa; 4. a imagem de Abraão como um antepassado digno de ser admirado e imitado por seus descendentes em todos os tempos. Desse modo, tenha ocorrido ou não o impactante episódio, as lições a ele associadas serão igualmente válidas e servem de permanente exemplo.
Na segunda leitura, Paulo lembra aos Romanos (Rm 8, 31) que Javeh poupou Isaac, porém o Pai não poupou seu Filho, mas o entregou para ser sacrificado por todos nós. Por contraditório que possa parecer, as duas atitudes opostas têm o mesmo objetivo. Explico. Ao recusar o sacrifício de Isaac, Javeh estava dando cumprimento à promessa feita a Abraão; ao entregar seu próprio Filho para ser sacrificado, o Pai estava também fazendo o cumprimento final da mesma promessa, porém em escalas diferentes. O sacrifício de Isaac era desnecessário e não traria uma imagem de Javeh diferente dos deuses pagãos, pois O assemelharia a estes. O sacrifício de Cristo, além de necessário, trouxe o testemunho da fidelidade a toda prova e do amor desmedido do Pai para com o povo da promessa, através de um ato extremado e de incomparável significação. A morte de Isaac seria o fim, mas a morte de Cristo foi apenas um trânsito para a sua ressurreição, a abertura do portão da glória para todos os descendentes de Abraão.
Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marcos (9, 2), a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Neste eloquente episódio, Jesus deu uma das mais contundentes demonstrações de sua divindade, ainda que somente a três discípulos privilegiados. Podemos vislumbrar nesta cena paradisíaca um reforço pedagógico de Jesus, para que os discípulos, principalmente Pedro, não perdessem a esperança quando Ele fosse visto submetendo-se ao sacrifício extremo. Na hora em que ele fosse preso e humilhado e parecesse que tudo estaria desmoronando, a lembrança da transfiguração gloriosa deveria fazer o contraponto necessário para manter viva a certeza da ressurreição, que viria depois. E no final do espetáculo miraculoso, veio a confirmação dessa mensagem, quando “da nuvem saiu uma voz: Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!'” Jesus proibiu aos três de falarem aquilo para alguém, até que ele ressuscitasse dos mortos. E os discípulos ficaram matutando “o que significa ressuscitar dos mortos”, porque naquele momento, eles não tinham a menor ideia do que iria acontecer e somente muito tempo depois compreenderam.
Reflitamos agora sobre os outros dois personagens com os quais Jesus dialogava: Moisés e Elias. Moisés representa a confirmação da aliança, no Sinai, através da outorga da Lei. Ele foi também o primeiro profeta, no sentido literal do vocábulo: aquele que fala em nome de Javeh. Elias representa os profetas posteriores, que foram muitos. Eu ficava pensando: por que Elias? Por que não Isaías, que Jesus cita muito mais vezes. Até que eu me lembrei de um fato singular. Elias foi o protagonista da ressurreição do filho único da viúva, que o hospedava em Sarepta. Com uma ardente prece de fé a Javeh, Elias deitou-se sobre a criança morta e esta voltou a viver. Com a transfiguração, Jesus estava também demonstrando a forma que ele passaria a ter após a ressurreição. Daí que a figura de Elias evocava um episódio de ressurreição, grandiosa resposta que ele recebera de Javeh, após uma também extraordinária demonstração de fé.
A figura do Cristo transfigurado, mostrando a ligação entre ele e a mais antiga tradição da lei e dos profetas, vem confirmar a unidade da Escritura, integrando o Antigo e o Novo Testamentos, uma união da antiga com a nova aliança. Naquela ocasião, Jesus se transfigurou apenas para três testemunhas. Mas agora, Ele se mostra a todos nós cristãos, iluminando a nossa quaresma e nos ensinando que tempo de penitência não é tempo de tristeza, mas de muita esperança.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos