sábado, 27 de abril de 2024

COMENTÁRIO LITURGICO - 5o DOMINGO DA PÁSCOA - 28.04.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – INSERIDOS NA TRINDADE – 28.04.2024


Caros Confrades,


A liturgia deste 5º domingo da Páscoa nos convida a refletir sobre a nossa inserção na Trindade Santa, tendo como motivação a parábola da parreira e seus ramos. Cristo é a parreira, nós somos os ramos e o Pai é o agricultor (Jo 15, 1). Se o ramo não estiver conectado na parreira, vai secando até morrer. Na primeira leitura, retirada do livro dos Atos (At 9, 26), o autor narra os reflexos da conversão de Saulo sobre a comunidade cristã de Jerusalém, mostrando de que modo ele foi inserido no grupo dos discípulos. E a Carta de João nos lembra que é através do Espírito que nós tomamos consciência da nossa inserção em Deus.


A parábola da parreira ou da videira não se encontra nos outros evangelhos, apenas no de João, o que indica que foi uma lembrança que o próprio evangelista guardou e não era conhecida dos outros escribas. Visto que o evangelho de João foi escrito somente no final do primeiro século, o exemplo da parreira reflete também o amadurecimento teológico da doutrina cristã, e se encaixa bem na teologia joanina, exposta nas suas cartas, como se vê no texto da segunda leitura deste domingo (1 Jo 3, 18). Falar na imagem da parreira e dos seus ramos não é algo muito familiar para a nossa cultura regional, pois poucos nordestinos têm experiência própria desse tipo de plantação, a qual é mais comum no sul do Brasil. Mas a imagem bíblica, reiteradamente retratada nas gravuras tradicionais, bem que se assemelha com um grande pé de tomate ou de maracujá, que estende seus ramos sobre as estruturas de apoio, que comumente os agricultores colocam. Mantém-se assim a mesma simbologia da união que deve haver entre os ramos e o tronco, sem o que a produção do fruto é impossível e sem o que o ramo desgarrado resseca e morre. O Cristo judeu é uma videira, mas o Cristo nordestino seria assim um tomateiro ou um maracujazeiro, adaptando a parábola evangélica aos padrões da nossa cultura regional.


Então, Jesus diz que Ele é a parreira (e nós diríamos, o tomateiro) e o Pai é o agricultor. E depois completa: e vós sois os ramos. Assim como é necessário que o ramo permaneça unido ao tronco para que produza frutos, também nós precisamos permanecer unidos a Cristo, para que possamos produzir frutos de santidade. A imagem da parreira, usada por Cristo, portanto, representa a ideia da inserção. Os ramos da planta são a imagem simbólica da comunidade, ensinando-nos que nenhum de nós pode viver a religião de forma isolada. A planta não possui um ramo só e nem esses ramos se espalham isoladamente, mas totalmente entrelaçados. Nenhum de nós pode estar unido a Cristo, se não fizer parte ativa da comunidade eclesial. A inserção na comunidade, por sua vez, se faz através da participação nos momentos celebrativos, em que toda a igreja se reúne para rezar. Ninguém desconhece o valor da oração individual, particular, mas a oração que nos une verdadeiramente a Cristo e, através dele, ao Pai e ao Espírito, alçando-nos à comunhão da Trindade Santa, é a oração coletiva da comunidade em assembleia. É lamentável que alguns católicos considerem que ir à missa é uma obrigação, na verdade, essa mentalidade é fruto da pedagogia religiosa tradicional, que impôs a ideia do preceito dominical, com a pena do pecado. Em vez de ressaltar a importância da oração comunitária, a pedagogia catequética colocava em primeiro plano a missa como uma obrigação, por isso, quanto mais rápida a celebração, melhor. Podemos perceber o volume do efeito prejudicial que esse ensinamento deixou na cultura religiosa do nosso povo.


Pois bem, nós não nascemos já agarrados no tronco da parreira, nós nascemos como ramos desgarrados, que precisam ser enxertados no tronco, donde iremos receber a seiva da vida. É pelo batismo que somos enxertados nesse tronco vivo e é pela vivência do evangelho que nele devemos permanecer para receber a seiva vital. E Cristo, pela boca do evangelista, nos diz textualmente: “Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não permanecerdes em mim. ” (Jo 15,4) Porque todo ramo que, enxertado a Ele, não der fruto, o Pai o arrancará; e aquele que dá fruto, o Pai limpará, para que dê mais fruto ainda. Então, a nossa missão de cristãos é permanecer enxertados no tronco vivo, como ramos produtivos, que o Pai limpa e poda para aumentar sempre mais a produtividade.


Na sua Primeira Carta (3, 24), João complementa o texto do seu evangelho, ao ensinar qual o modo de permanecermos como ramos vivos e produtivos: “Quem guarda os seus mandamentos permanece com Deus e Deus permanece com ele.E a conduta concreta que nos mantém enxertados no tronco da vida, João explica no vers. 18-19: não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade! Aí está o critério para saber que somos da verdade e para sossegar diante dele o nosso coração. Portanto, a condição para que nós, ramos, permaneçamos enxertados na parreira e produzindo frutos é uma só: amar de verdade, com ações concretas e não apenas da boca para fora. Para guardar os mandamentos, a única receita é a prática do amor ao próximo, pois o amor faz parte da essência desse mandamento (Jo 3, 23): “Este é o seu mandamento: que creiamos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, de acordo com o mandamento que ele nos deu. ” Ou seja, meus amigos, a condição para permanecermos atrelados a Cristo-tronco é a fé nEle, que se expressa no amor aos irmãos. Não são duas coisas distintas, são duas atitudes que se complementam e, ao final, se transformam numa só. A fé que não se manifesta em obras é morta, portanto, não basta crer. E todo o que crê em Cristo, ama os irmãos, por quem Ele deu a Sua vida. O João ainda diz mais: como vamos saber se guardando os mandamentos, Deus permanece em nós e nós permanecemos nEle? Resposta de João: é pelo Espírito que sabemos disso. Vemos aqui, portanto, que permanecer unido a Cristo equivale a estar inserido na Trindade Santa.


Aqui podemos encaixar a primeira leitura, que narra a inserção de Saulo na comunidade dos discípulos, depois de sua conversão. Os Apóstolos e demais cristãos da comunidade de Jerusalém ficaram com receio de recebê-lo, porque ele era conhecido como feroz perseguidor do cristianismo. De repente, ele chega querendo se aproximar, a reação natural de todos foi de recusa, porque essa podia ser uma nova estratégia de perseguição. Foi preciso que Barnabé advogasse em favor de Saulo e testemunhasse todo o processo de mudança ocorrido em sua pessoa, para que todos então acreditassem e o aceitassem. Na verdade, Cristo precisava de um pregador da estirpe de Saulo, com formação intelectual e arrojo para enfrentar as dificuldades. Em Atos (9, 19), o escriba fala que ele discutia com os judeus de língua grega, isto é, com os judeus intelectuais, coisa que os outros apóstolos não tinham cacife para fazer e que colocava em risco a sua própria vida, por isso, ele precisou mudar de cidade para não morrer. Sem a competência de Saulo, a propagação do cristianismo na comunidade grega teria sido um fracasso. Para mim, uma das maiores provas históricas da divindade de Cristo é a conversão de Saulo.


Saulo tornou-se companheiro de Barnabé e foi por intermédio deste que decidiu trocar seu nome para Paulo. Os estudiosos não são unânimes na explicação do por que Saulo tomou essa decisão, mas a razão mais provável deve ter sido para que a mudança de nome representasse externamente a sua mudança íntima, a sua conversão, e ele queria que isso ficasse bem notório para todos. O nome Saulo é judeu, o nome Paulo é romano. O nome Saulo tem a mesma raiz do nome do rei Saul, primeiro rei de Israel, que perseguiu Davi. Ora, Cristo era descendente de Davi e Saulo não era mais um perseguidor. Além disso, era costume que os judeus convertidos mudassem seu nome judaico para um nome grego ou romano, assim como nós mudávamos o nome ao entrar no Seminário, como forma de simbolizar uma mudança no modo de vida. A mudança do nome de Saulo para Paulo significou, para ele, concretamente a sua inserção entre o discipulado de Cristo e, por via de consequência, sua inserção na Trindade Santa. E diz Lucas, em Atos (11, 26), que Barnabé e Paulo passaram um ano inteiro pregando e dando assistência à igreja de Antioquia e “Em Antioquia os discípulos foram, pela primeira vez, chamados com o nome de cristãos.” Temos aí também a origem histórica do nome de 'cristãos' atribuída aos seguidores de Cristo.


Que o exemplo de Paulo nos inspire a permanecer unidos à parreira-Cristo, guardando os seus mandamentos e amando os irmãos com ações de verdade.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 13 de abril de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3o DOMINGO DA PÁSCOA - 14.04.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA PÁSCOA – O INTERCESSOR – 14.04.2024


Caros Confrades,


A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa traz dois textos escritos por Lucas (Atos e Evangelho) e uma carta de João. Nas três leituras de hoje, encontramos alguma referência a Cristo como o defensor, o intercessor, o advogado. Essa palavra é da raiz do verbo grego “parakaleou” donde vem o termo “paráclito”, que se atribui ao Espírito Santo. Na sua carta, João diz: se alguém pecar, temos diante do Pai um Defensor. E no evangelho, Lucas relata a primeira aparição de Cristo aos apóstolos, após a ressurreição, deixando-os assustados e medrosos, pensando estarem vendo um fantasma. No final, coloca também a referência à ressurreição de Cristo que perdoa os pecados de todo o mundo. Nesse contexto do intercessor, parece-me oportuna uma reflexão sobre o conceito do pecado.


Na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (3, 13-19), o autor narra um discurso de Pedro dirigido ao povo, certamente aos judeus, dado o conteúdo da fala, porque se refere a eles dizendo diretamente: “vós o entregastes a Pilatos, vós matastes o autor da vida...” porém, se vos arrependerdes, os vossos pecados serão perdoados. Eu percebi no teor dessa leitura o ranço que, durante séculos, a liturgia conservou em relação ao povo judeu (eram chamados de pérfidos judeus, na oração oficial da sexta feira santa), situação que só começou a se abrandar após o Concílio Vaticano II, com Paulo VI. Porém, nesse discurso de Pedro, ele mesmo diz que “agistes por ignorância”, mas desse modo, se cumpriu o que todos os profetas haviam anunciado. É curiosa essa contradição, a mesma que durante séculos também perseguiu Judas, protofigura do traidor. Se a ação deles foi necessária para que se cumprissem as Escrituras, então por que essa discriminação, esse repúdio? Talvez porque eles não manifestaram arrependimento público, assim como fez Myrian de Magdala (a Madalena), mas lembremo-nos de que Pedro dirige esse discurso aos judeus que o ouviam de bom grado, com certeza, em vias de conversão ao cristianismo. Realmente, essa conduta tradicional do cristianismo com relação aos judeus configura um pecado histórico, da mesma forma como foram discriminadas todas as demais religiões não católicas. Felizmente, vimos testemunhando um processo de restauração da verdade dos fatos, um esforço dos nossos Papas dos últimos 50 anos, no sentido de reaproximar os diversos credos, cujas divergências já provocaram tantas violências ao longo da história.


Eu achei interessante abordar esse tema do pecado, porque na catequese tradicional, havia uma “lista” de pecados com as devidas especificações: tal era um pecado leve ou venial, outro tal era um pecado grave ou mortal, que podia até levar a pessoa ao inferno, ou seja, criou-se uma tabela moralista na qual se enquadravam as condutas exteriores das pessoas, deixando de lado o que verdadeiramente interessa, o que se passa no interior de cada um. A religião de exterioridades ainda está implantada na cabeça de muitos católicos, desde bispos e padres até os fiéis leigos. Deixar de ir à missa no domingo é pecado grave; deixar de fazer a comunhão na Páscoa é pecado mortal; caluniar alguém é pecado venial; mentir é pecado venial... ora, meus amigos, é tempo de passar por cima desse tabelamento. Pecado é o que nos afasta do amor de Deus, pecado é faltar com a caridade. Até algum tempo atrás, era proibido aos católicos trabalharem aos domingos, porque esse é o dia do preceito. Nos dias atuais, em que muitas atividades profissionais envolvem o trabalho dominical, o católico consciente fica em dificuldade para conciliar sua fé com a sua profissão. Além disso, observem a expressão “dia de preceito”, isso indica uma coisa que se deve fazer por obrigação. Imaginem só: ir à missa porque é obrigação não adianta de nada, não é isso que Deus quer. Fazer abstinência de carne na sexta feira santa porque é obrigação não adianta de nada, não é isso que faz de você um cristão, um fiel a Cristo. Tudo aquilo que é realizado simplesmente porque é obrigação não tem valor. O agente deve agir porque considera que aquela ação é boa, é útil, é louvável, é para a glória de Deus, é para o seu bem espiritual e para o bem de toda a comunidade. Deixar de ajudar ao irmão necessitado, quando se tem a possibilidade de fazê-lo, mas não se faz por omissão ou por preguiça ou por desprezo é muito mais grave do que deixar de ir à missa dominical. E como tem gente que pensa que, ao ir à missa, está garantindo a sua salvação eterna e obtendo o perdão dos pecados. Vejam bem, não estou afirmando que ir à missa não é importante, estou comparando os dois comportamentos. Ir à missa e não praticar a caridade com os irmãos é uma atividade vazia de sentido e de resultados, é hipocrisia.


Na segunda leitura, o apóstolo João, com a sua linguagem carinhosa de um pai idoso, admoesta: meus filhinhos, eu digo isso para que não pequeis; mas se alguém pecar, fique calmo, você não está perdido, nós temos um intercessor, um Defensor junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo. E depois, dá uma alfinetada forte: se alguém diz que conhece a Deus, mas não guarda seus mandamentos, esse é um mentiroso. É mais ou menos o que eu escrevi acima, com outras palavras. E que mandamentos são esses? São aqueles que todos nós já sabemos de cor: amar a Deus e amar ao próximo, nesses dois, estão resumidos toda a lei e os profetas. Então, não basta dizer: Senhor, Senhor... todo mundo se lembra disso. Não adianta se confessar toda semana, comungar todos os dias, rezar três terços por dia, etc, se não praticar a caridade. Paulo disse isso naquele conhecido texto aos Coríntios (1Cor, 13): praticar a religião sem amor é igual a um sino que tine, só faz barulho, não tem nada no seu interior. Com outras palavras, diz João: conhecer a Deus sem cumprir os mandamentos é uma mentira. Não podemos ter assim um comportamento religioso de mentira, de fachada, de barulho. Então, é importante o ensinamento de João, porque ele sabe que todos nós somos imperfeitos, sujeitos a falhas na nossa conduta. Por isso, ele diz: eu digo isso para que não pequeis; mas, se alguém pecar, tem um jeito: Jesus é o nosso defensor, é a nossa fé nEle que possibilita a nossa remissão. Naquele que guarda a sua palavra, o amor de Deus se realiza plenamente.


Na leitura do evangelho de Lucas (24, 35-48), temos a sequência do episódio conhecido, ocorrido no próprio domingo da ressurreição, quando Jesus ressuscitado dialogou com os discípulos que iam para Emaús e os fez voltarem a Jerusalém. Ainda estavam contando o fato para os outros, quando Jesus apareceu no meio deles. Aqui estou eu, ressuscitei conforme prometi. E então, foi relembrar aos apóstolos o que havia lhes ensinado. Se não fosse essa 'prova de segunda chamada' da pedagogia de Jesus, os ensinamentos de antes teriam ficado esquecidos, pois os apóstolos eram homens rudes, não acostumados a leituras e estudos. E no final da lição, profetizou: no meu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém e vós sereis testemunhas de tudo isso. Jesus passou quarenta dias fazendo a reciclagem, dando aulões de reforço àqueles ex-pescadores, demonstrações fantásticas de seu poder, para que assim eles se firmassem na fé. Nenhum dos evangelistas relata que Jesus tenha perguntado a Pedro porque o negara diante dos palacianos, pois Jesus sabia que o conhecimento deles ainda era muito superficial, era necessário um aprofundamento, uma revisão geral. Quando, por fim, receberam o Espírito, então estavam preparados pro que desse e viesse, foi o que aconteceu. Então, se explica aquele discurso de Pedro aos judeus, relatado por Lucas na primeira leitura deste domingo.


Nas leituras da liturgia diária da semana, são lidos vários trechos dos Atos dos Apóstolos, relatando as primeiras pregações dos apóstolos, as prisões que eles sofreram, as chicotadas e a perseguição dos fariseus e saduceus, proibindo-os de falar em nome de Jesus. Quanto mais eles eram proibidos de falar, mais falavam. Dentre essas, uma que merece destaque é a leitura de Atos (5, 34), onde temos o ponderado discurso de Gamaliel, que era mestre da lei e membro do Sinédrio, dizendo: 'deixai esses homens irem embora, porque se o projeto deles for obra humana, daqui a pouco se acaba, mas se for obra divina, vós não conseguireis detê-los.' E o seu conselho foi seguido pelo Sinédrio. Através desse conselho de 'deixar os apóstolos irem embora', Gamaliel estava, com sábia argumentação lógica e jurídica, ao mesmo tempo, querendo livrar os apóstolos daquela incômoda situação e ainda insinuando que a obra deles era de origem divina e que as perseguições não iriam detê-los. Como de fato, a história comprovou que a profecia de Cristo sobre o anúncio do Seu nome para o perdão dos pecados de todas as nações foi testemunhado tanto pelos apóstolos, como é ainda testemunhado por nós nos nossos dias. Porém, para sermos autênticos discípulos de Cristo e testemunhas da sua palavra, será necessário desmistificar o conceito burocrático de pecado, que a pedagogia catequética tradicional nos ensinou, para assumirmos aquele compromisso definido por João: conhecer a Deus é guardar os seus mandamentos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 6 de abril de 2024

COMENTÁRO LITÚRGICO - 2o DOMINGO DA PÁSCOA - 07.04.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – CRER SEM TER VISTO – 07.04.2024


Caros Confrades,


Neste segundo domingo da Páscoa, a liturgia nos oferece apenas leituras do Novo Testamento – Atos dos Apóstolos e escritos de João (epístola e evangelho). A leitura dos Atos sinaliza o tempo inicial das comunidades cristãs, enquanto os escritos de João representam o pensamento teológico mais evoluído dos tempos posteriores, final do primeiro século. Observemos que o evangelho e as cartas de João são, no aspecto cronológico, os últimos escritos do NT, pois foram elaborados por volta do ano 100 d. C., muito após João ter saído do seu exílio na ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse. Na tradição medieval, este domingo era conhecido como Pascoela, que era a oitava da Páscoa. Naquela época, as festas mais importantes duravam oito dias, por isso, este era o domingo da oitava da Páscoa, nomenclatura ainda hoje mantida na ligurgia. O Papa João Paulo II instituiu, neste segundo domingo da Páscoa, a festa da Divina Misericórdia, no ano 2000.


Na leitura dos Atos dos Apóstolos (4, 32-35), o cronista relata a vida das primeiras comunidades cristãs, onde os convertidos colocavam todos os seus bens à disposição dos Apóstolos, para divisão entre os irmãos mais necessitados, de modo que ninguém se sentia dono de alguma coisa, mas tudo era literalmente de todos. Esse sentimento de comunidade autêntica, historicamente, só se verificou nesses primeiros tempos, os chamados tempos apostólicos, pois logo que o cristianismo foi-se divulgando entre os povos das culturas diversas, e sobretudo após a morte dos Apóstolos, novas práticas e novas influências culturais foram-se infiltrando nas comunidades. Tal sentimento de pertença foi revivido nas nossas congregações religiosas, também nos tempos românticos até os anos de 1960. Depois, com a abertura pós Concílio Vaticano II e mais adiante, com o fenômeno da globalização, nem mesmo nas comunidades religiosas houve mais espaço para esse tipo de conduta solidária. Pensando com base na mentalidade contemporânea, apresenta-se essa conduta como uma vivência utópica e inexequível, no entanto foi esse o modelo proposto, por exemplo, por São Francisco, quando disse que os frades não deveriam receber pecúnia, mas apenas o necessário para o seu sustento. Bem diferente é a situação nos dias atuais.


Na segunda leitura deste domingo, temos a Carta de João (1Jo 5, 1-6), de cujo texto podemos destacar duas lições. A primeira está no vers. 3: “pois isso é amar a Deus: observar os seus mandamentos, e os mandamentos de Deus não são pesados.” Ou seja, trata-se do mandamento do amor, aquele que Cristo resumiu no lava-pés, quando disse: “eu vos dou um novo mandamento – que vos ameis uns aos outros”, este é o sinal pelo qual os cristãos devem ser reconhecidos. Por isso, João diz que os mandamentos não são pesados, porque não existe algo mais digno e prazeroso do que amar. E quem ama aquele que gerou amará também o que d'Ele nasceu. Portanto, ficam em segundo plano aqueles mandamentos da lei de Moisés, da antiga aliança. Agora, com a nova aliança, os antigos 10 mandamentos são resumidos em apenas 2: amar a Deus e ao próximo.


A segunda lição está no vers. 6: “Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. Não veio somente com água, mas com a água e o sangue.” João refere-se claramente ao batismo e ao calvário, isto é, o batismo apenas não salva, não basta ser batizado, mas é preciso participar também da morte e da ressurreição de Cristo, através do sacrifício eucarístico. Para sermos merecedores da salvação, direito conquistado com o batismo, devemos participar com Ele da sua cruz através da memória da redenção, que se renova a cada dia na celebração eucarística. João reforça o trabalho de Paulo, com o objetivo de evitar certas deturpações da doutrina cristã por parte dos judeus convertidos, no tempo das primeiras comunidades cristãs, colocando em choque os ditames do antigo testamento com o novo testamento. O batismo representa o final da antiga aliança e a morte- ressurreição de Cristo representam o início da nova aliança. Os dois são inseparáveis: água e sangue.


Na leitura do evangelho de hoje, também de João (Jo 20, 19-31), está relatado o conhecido episódio da incredulidade de Tomé, que se transformou em conhecida história popular – o teste de São Tomé. Mas passando um pouco adiante dessa história, vamos observar, no vers 22, uma declaração importante de João. Diz ele que Jesus “soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo...” Vemos aqui o Pentecostes descrito por João, bem diferente das narrações dos outros textos, que falam em vendaval e línguas de fogo, conferindo uma dimensão bem mais dramática ao episódio. Na narração joanina, ao contrário, isso foi muito tranquilo. Cristo soprou e conferiu o Espírito aos apóstolos nesta sua primeira “visita”, ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana. Sem desmerecer as outras narrativas, mas devemos nos lembrar que João estava lá, enquanto os outros escritores não estavam. Além disso, João escreveu o seu texto depois dos outros narradores, o que nos possibilita deduzir que João conhecia o que os outros haviam escrito, mesmo assim, ele fez uma descrição diferente daquele importante evento. Na verdade, João está querendo destacar fatos importantes que ocorreram “no primeiro dia da semana”, enfatizando um costume que já se iniciara de mudar o dia do Senhor para o domingo, e não ser mais para o sábado, como era na tradição judaica.


Outro detalhe interessante: Tomé não se encontrava com os doze e disse que só acreditaria vendo. Oito dias depois, isto é, no domingo seguinte (outra ênfase para o domingo), Jesus apareceu-lhes novamente e mostrou as cicatrizes para o incrédulo Tomé. O destaque que João faz desse episódio tem uma razão especial: o intuito de catequizar as novas comunidades acerca da importância de ter fé em Cristo mesmo sem tê-lo visto, pois na época em que João escreveu, já fazia bastante tempo da morte de Cristo e os novos cristãos não haviam conhecido Jesus. Então, o exemplo de Tomé fazia uma pedagogia de reforço, para animar os novos cristãos, que não chegaram a conhecer pessoalmente a Cristo, quando este disse que: “bem-aventurados os que creram sem ter visto”. E como João sabia que este escrito ia ser distribuído para muitas comunidades na Ásia Menor, ele complementa dizendo que Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia feito.


Ainda nesse evangelho de João do domingo de hoje temos um trecho que suscita grande polêmica, que está no vers. 23: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos”. A teologia considera este versículo como o fundamento teológico do sacramento da penitência. Muitas vezes, se ouve as pessoas dizendo “sacramento da confissão”, mas não é bem assim, é o sacramento da penitência e da reconciliação, decorrente do arrependimento. Conforme se verifica no texto joanino, Cristo fala em perdoar os pecados (subentende-se dos pecadores arrependidos) e reter, isto é, não perdoar, dos que não se arrependem. Cristo não disse que o pecador devia ir até os apóstolos e “narrar seus pecados” (confessar os pecados) como condição para poder ser perdoado. A ordem de Cristo se concentra no perdão ligado ao arrependimento. Por que, então, a Igreja Católica coloca como obrigatória a “confissão” individual dos pecados? Essa prática não existia no tempo dos Apóstolos nem nas primeiras comunidades, mas foi um costume introduzido pelos monges, na Idade Média, e que acabou tornando-se regra canônica para os católicos.


Nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II, foi autorizada uma experiência litúrgica chamada de “confissão comunitária”, que foi uma sugestão de alguns grupos de teólogos conciliares para o retorno da prática original da penitência, como fora nos primeiros tempos da era cristã. Todavia, as forças conservadoras da teologia, das quais o Papa Bento XVI foi um notável representante, após algum tempo retiraram essa prática como não recomendada, podendo ser realizada apenas em ocasiões especialíssimas e em caráter excepcional. No entanto, convém destacar que aquele rito inicial da missa, com o ato penitencial, o pedido de perdão, tinha exatamente essa finalidade de lembrar os fiéis sobre o arrependimento de suas faltas, para então receberem a absolvição. Esse ponto, o Concílio Vaticano II não teve força suficiente para reformar.


Caros amigos, nós somos herdeiros daquelas comunidades que não conheceram pessoalmente a Cristo, no entanto, creram nele. Nós somos os bem-aventurados, conforme Cristo proclamou, mais do que Tomé e dos outros Apóstolos, que precisaram ver para crer. A nossa fé se fundamenta na leitura e no testemunho, por isso, para os outros irmãos, nós devemos dar esse testemunho de uma fé amadurecida e atuante.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos