sábado, 27 de julho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - PÃO PARA TODOS - 28.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – PÃO PARA TODOS – 28.07.2024


Caros Confrades,


As leituras litúrgicas deste 17º domingo comum narram episódios de multiplicação de pães, preconizando o milagre eucarístico, que seria depois realizado por Jesus, perpetuando-se na história e chegando até nós. O alimento que chamamos pão está presente desde os tempos mais remotos da humanidade, em todas as culturas. O tipo mais comum é o pão de trigo e sua presença na Bíblia se encontra em diversos momentos, aquele cuja fartura saciou a fome de milhares de fiéis, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos. Por isso, ao despedir-se, Jesus quis deixar o pão como o símbolo de sua permanência entre nós e instituiu-se a si próprio em pão da vida, não somente para saciar a fome natural, mas sobretudo para locupletar o espírito com o pão vivo e imortal.


Na primeira leitura de hoje, retirada do Livro dos Reis (2Rs 4,42), narra-se um fato miraculoso operado pelo profeta Eliseu vários séculos antes de Cristo, sendo um evento antecipatório do futuro milagre da multiplicação dos pães, que seria realizado pelo Messias. Num tempo de grande seca e, portanto, de fome para o povo, Eliseu ganhou de presente 20 pães, trazidos por um estrangeiro, mas não os recebeu, porque seria egoísmo de sua parte saciar a própria fome, enquanto o povo padecia faminto. Então, ele mandou que os pães fossem distribuídos para o povo. O portador dos pães ficou preocupado: como vou distribuir tão poucos pães para tantas pessoas famintas? Ele, prudentemente, deve ter logo imaginado o tumulto que isso iria ocasionar e as brigas entre as pessoas disputando os pedaços, podendo até ocorrer agressões e ferimentos e ele mesmo poderia ser vítima do episódio. E queixou-se ao Profeta. Mas este o tranquilizou: O Senhor disse – comerão e ainda sobrará. E assim aconteceu e essa foi a primeira vez da repartição do pão para todos.


A imagem do pão, encontrada em todas as culturas, desde as mais remotas, com o passar dos séculos, não perde a sua primazia, porque o pão continua sendo o alimento básico do ser humano. Além daquele padrão, feito de trigo, há as variantes regionais, de acordo com as produções agrícolas locais, com uso de milho, de mandioca, de batata, daquele tipo de massa que for mais abundante numa região. O pão é um símbolo da própria vida que ele alimenta. Por causa da sua importância cultural, o pão ultrapassa a pura matéria física para significar os diversos dons que acompanham a vida humana, além da simples satisfação da fome corporal. O saciamento da fome induz ao bem-estar, à alegria, à boa convivência, faz elevar o espírito para as realidades sobrenaturais, então o pão é muito mais do que um alimento material, é um verdadeiro mantenedor vital do ser humano. Foi por esse motivo que Jesus, quando quis deixar um sinal perpétuo da sua presença no meio da humanidade, adotou o símbolo do pão, transformando a Si mesmo em pão da vida.


No relato do evangelista João (6, 1-15), Jesus revive a cena histórica do profeta Eliseu, diante da multidão que o acompanhara de longe, na sua travessia do Lago de Tiberíades, encontrando-o na margem oposta. Ele próprio fez uma provocação aos apóstolos, indagando-lhes pedagogicamente, mesmo já sabendo da solução que adotaria: onde arranjaremos pão pra esse povo todo comer? E Felipe avaliou: nem duzentas moedas seriam suficientes para comprar um pedaço pra cada um. Foi quando André trouxe a informação: tem ali um rapaz com cinco pães e dois peixes, mas de que adianta isso para tanta gente? Jesus só não repetiu o refrão de Eliseu (“comerão e ainda sobrará”), mas fez que o povo sentasse e mandou distribuir os pães e os peixes, depois de abençoá-los. E o milagre da fartura se repetiu, todos comeram até ficarem saciados e ainda sobraram doze cestos com os pedaços deixados. Juntem tudo, para que nada se perca. Aquelas sobras, provavelmente, poderiam saciar novamente outros famintos, pois como vimos no evangelho do domingo passado, as pessoas estavam sempre a seguir aonde Jesus e os apóstolos estavam, de modo que eles não tinham uma folga nem para comer. E o número de cestas que sobraram (doze cestas) contém uma alusão implícita às doze tribos de Israel. Simbolicamente, aquela recolha do excedente representava a totalidade do povo judeu.


Pois bem, nesse relato do evangelista João, podemos destacar alguns detalhes interessantes. Primeiro, a preocupação de Jesus com a fome daquelas pessoas. As pessoas não foram se queixar de fome para Ele, ao contrário, estavam ali para ouvi-Lo. Mas Jesus sabia que, sem a alimentação corporal adequada, a mente não funciona, a concentração não ocorre, o aprendizado é nulo. Então, antes de alimentar o espírito, é necessário alimentar o corpo. Isso significa que a Igreja não pode se descuidar dos aspectos materiais da vida social, da melhoria das condições de vida e de trabalho dos fiéis, ou seja, não compete às autoridades religiosas apenas celebrar missas e oficiar os sacramentos, mas junto com isso, deve ter a preocupação com a vida material justa. Junto com o pão da palavra, os pastores devem também preocupar-se com a assistência material das pessoas mais carentes da comunidade, enquanto os fiéis melhormente aquinhoados devem colaborar para a efetivação desse serviço. Viver a religião não deve se resumir a frequentar o templo nos dias celebrativos, fazer as novenas e rezar o terço. Isso é importante, sem dúvida. Mas ficam faltando os atos concretos, as “obras” de caridade, que devem ser inseparáveis da fé.


Outro detalhe que importa destacar é que o milagre de Jesus foi possibilitado pela presença de um rapaz trazendo cinco pães e dois peixes. Ele poderia ter feito o milagre independentemente disso, podia ter transformado até pedras em pão ou ter feito cair pão das nuvens, mas, não, Ele quis a colaboração de alguém da comunidade. Isso significa que Deus prefere agir por nosso intermédio, com a nossa colaboração, mesmo para fazer as coisas mais extraordinárias. Santo Tomás de Aquino ensinava, utilizando a terminologia filosófica de Aristóteles, que Deus age por causas segundas. Essas “causas segundas” são as ações indiretas. Ele pode atuar de forma direta e imediata, mas muitas vezes, Deus se serve de nós, de um coirmão ou coirmã nosso(a) para operar prodígios e, nesse caso, Deus nos honra grandemente agindo por nosso intermédio. Quando Ele nos dá fartura de bens materiais, Ele também espera que nós contribuamos com maior generosidade para o serviço dos irmãos. É bem verdade que, nas sociedades modernas, tais obras assistenciais devem ser acionadas pelas autoridades públicas, porém, mesmo que isso aconteça (o que nem sempre ocorre), não ficamos dispensados de colaborar com a nossa parte. Portanto, nós precisamos estar sempre disponíveis para Deus agir por nosso intermédio, através da nossa fé operante, através do nosso exemplo e do nosso testemunho. Muitas vezes, nós nem atentamos para isso, mas as nossas atitudes estão sendo percebidas por outras pessoas e o nosso bom exemplo pode estar sendo decisivo para que um irmão, momentaneamente fraco na fé, ganhe força e supere um obstáculo na sua vida. Se deixarmos Deus agir por meio de nós, nós também poderemos ser esses agentes transformadores, sem que isso necessariamente cause em nós canseira ou preocupação. Na nossa vida cristã cotidiana, as nossas atitudes normais de cada dia podem se transformar em importantes instrumentos divinos para a realização de obras valiosas na sociedade.


Quando Jesus, na última ceia, serviu-se do pão para tornar-se presente permanentemente no nosso meio, ele quis associar a Si próprio a este alimento, que desde os primórdios da raça humana tem sido indispensável. Assim como o pão da massa material é um artigo universalmente inerente às sociedades humanas, Jesus quis que o seu corpo em forma de pão tivesse a mesma presença e mesma participação na nossa vida. Eu, particularmente, sinto um certo desconforto quando vejo a celebração eucarística sendo realizada com aquela composição do trigo, que chamamos de hóstia, porque me dá a impressão que assim nos afastamos da verdadeira intenção de Cristo, quando fez-se pão, visto que a aparência física da hóstia, embora saibamos que é produzida com a mesma massa do pão, não tem nenhuma semelhança visual com este. E eu fico pensando que Cristo quis que o Seu corpo fosse associado ao visual do pão comum, aquele alimento básico e essencial, conhecido por todos. Nós não tomamos café com hóstia, leite com hóstia, e eu acho que Cristo queria que fizéssemos uma associação visual entre o pão eucarístico e Ele, que se elevasse à dimensão da fé. O pão que alimenta o corpo também, e ao mesmo tempo, alimenta o espírito. Nas Igrejas Católicas Ortodoxas, o pão eucarístico é o pão comum mesmo, não tem esse formato de hóstia, que estamos acostumados a ver. A mim, parece que lá a vontade de Jesus esteja sendo cumprida mais fielmente.


Com a devida vênia dos Confrades que não concordam, um cordial abraço a todos.


Antonio Carlos

sábado, 13 de julho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 15º DOMINGO COMUM - 14.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O ENVIO – 14.07.2024


Caros Confrades,


Neste 15º domingo do tempo comum, o tema litúrgico em destaque é o envio dos apóstolos para pregarem o Evangelho nas cidades da região da Galileia. Essa foi uma espécie de estágio, que Jesus deu aos apóstolos, após um período de ensinamento, para que eles colocassem em prática o que haviam aprendido. Tempos depois, por ocasião de sua ascensão, Jesus os mandou novamente, mas dessa vez, para evangelizarem todos os povos. Numa visão hermenêutica transistórica, o mandado do envio se direciona também a nós, seus discípulos dos dias atuais e a todos os discípulos de Jesus, em todos os tempos. Com nossa vida e com nosso testemunho, continuamos a evangelizar, seguindo o mandado de Jesus.


A temática do envio encontra-se presente também na primeira leitura, retirada do profeta Amós (7, 12). Este era um profeta de poucas letras, pastor de rebanhos, agricultor, homem simples e humilde, não tinha antepassados na atividade no ramo profético. Mas sua profecia causava incômodo às elites israelitas, exatamente por ser ele um homem do povo, não pertencente à linhagem tradicional. Então, o sacerdote do templo de Betel, de nome Amasias, a pedido do rei, o chamou e mandou que fosse profetizar em Judá e lá trabalhar, para ganhar a vida, advertindo-o a não profetizar ali em Betel, porque neste local estavam localizados a corte do rei e o templo oficial, onde Amasias era o sacerdote e, portanto, o 'profeta' oficial. Em outras palavras, Amasias estava querendo se livrar de Amós, porque este, a mando de Javé, denunciava a tibieza e a exterioridade da religião oficial de Israel, cujos cultos não agradavam a Javé por causa da ausência de devoção e do excesso de formalismo, além da permissividade para o culto dos deuses pagãos. A resposta de Amós foi bem desaforada, como o sacerdote não esperava: eu não sou profeta nem filho de profeta, sou pastor de gado, mas o Senhor me chamou quando eu estava pastoreando o rebanho e me mandou profetizar em Israel, é aqui que eu vou ficar. Com risco da própria vida, Amós prosseguiu no seu trabalho desafiando as autoridades, seguindo o mandado de Javé.


Isso aconteceu setecentos anos antes de Cristo. A vocação de Amós, um homem simples e de poucos estudos, antecipava o chamado que Jesus fez aos discípulos galileus, num contexto bastante similar, pois eram também pessoas do povo, pescadores, pessoas de poucas letras, e deveriam enfrentar também perseguições e dificuldades inerentes ao cumprimento da sua missão, junto às elites do povo judeu. Jesus disse aos discípulos que eles deviam pregar em todos os lugares, sem levar nenhum dinheiro, nem alforje, nem muda de roupa, nada, devendo receber o seu sustento pelas pessoas da comunidade. E onde não fossem bem recebidos, deviam sacudir a poeira das sandálias contra aquelas pessoas em protesto. E deu a eles o poder de expulsar demônios e curar doenças.


O profeta Amós, e em geral todos os profetas do Antigo Testamento, são personificações antecipadas dos discípulos que Cristo iria preparar para a pregação do seu Evangelho. Desse modo, os discípulos de Cristo em todas as épocas passaram a ser os profetas do seu tempo. Como resultado do cumprimento desta missão de envio, nós temos hoje a doutrina cristã presente em todos os recantos do mundo e nós somos os continuadores desta missão, espalhados em todas as camadas da sociedade. Isto é, os profetas dos nossos dias somos nós, seguidores de Cristo e comprometidos com a nossa vocação de enviados. O Papa Francisco é o nosso profeta-mor, com seu carisma, seu zelo, seu exemplo que encanta até mesmo os ateus.


Provavelmente, um seguidor de Cristo que pode ser apresentado como modelo mais perfeito do cumprimento desta missão talvez seja o nosso Seráfico Patriarca Francisco de Assis, sem dúvida, um grande profeta do seu tempo. Num momento em que a Igreja de Cristo passava por uma grave crise de identidade, ante a influência do secularismo, e as suas autoridades estavam sucumbindo às ambições do ter e do poder, bem como às seduções dos pecados capitais, o Senhor tocou o coração de Francisco e o enviou para 'reconstruir' a sua Igreja. Tão ingênuo, ele imaginou, a princípio, que seria apenas um pequeno serviço de reparos nas paredes, pinturas, limpeza, só depois entendeu o verdadeiro sentido do seu chamado. Mas, por sua humildade, soube ser totalmente fiel à sua missão. Enquanto outros reformadores históricos (como, por exemplo, Lutero), com arrogância e orgulho, entraram em rota de colisão com as autoridades cujos desmandos eles denunciavam, Francisco, ao contrário, fez todas as suas ações de forma tranquila e obediente às mesmas autoridades, cujo comportamento atípico ele reprovava com seu exemplo de seguidor do evangelho. E o que Francisco fez? Exatamente aquilo que Cristo mandou, quando enviou os seus discípulos: sem preocupações com a aquisição e acúmulo de bens, sem necessidade de provisões de alimentos nem vestimentas, recebendo da própria comunidade o seu sustento, como fruto do seu trabalho. Todos nós nos recordamos que é isso o que está contido na 'regra de vida' que Francisco deixou como herança para os seus frades. Por isso, podemos dizer que, se houve alguém que cumpriu fielmente o mandado de Cristo na pregação do Evangelho, este foi Francisco de Assis. Deste modo, o nosso compromisso com o engajamento na missão tem uma dupla fonte. De um lado, o envio de Cristo aos seus discípulos, conforme relatado por Marcos no evangelho; de outro lado, o exemplo modelar de Francisco, de cuja herança nós participamos, através da formação que recebemos no tirocínio da vida franciscana. Seguir a Francisco se equipara a seguir a Cristo, só que com maior entusiasmo e alegria, pois, juntamente com o envio, temos o exemplo mais efetivo do seu cumprimento.


Na segunda leitura, retirada da carta aos Efésios (1, 3), Paulo elabora um inspirado hino de louvor ao Pai, que em Cristo nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis, sob o seu olhar, no amor. Naquela época, dos primeiros tempos do cristianismo, a palavra “santo” era usada para referir-se aos cristãos, pois esse nome “cristão” ainda não era usual nas comunidades. Por diversas vezes, Paulo retoma esta palavra para se referir aos seguidores de Cristo, não tinha portanto, o sentido específico que o termo hoje possui. Nessa carta aos Efésios, ele exalta o dom da vocação que envolve todos os santos (cristãos) para serem profetas e evangelizadores, continuadores da missão salvadora de Cristo, através do envio que todos recebemos, como tributo do nosso batismo e da nossa adesão pela fé. Por Ele, nós fomos confirmados no Espírito, segundo o projeto do Pai, que assim nos predestinou para colocar a nossa esperança em Cristo e no seu evangelho da salvação.


Conforme a promessa de Cristo, são inerentes ao envio os poderes de expulsar espíritos malignos e curar os doentes. Estes poderes, que são transmitidos aos sacerdotes na cerimônia da ordenação, sintetizam o cerne da missão do evangelizador, isto é, curar os males corporais e espirituais, e não devem ser interpretados literalmente, e sim no sentido daquilo que Jesus disse, como resumo de sua missão: que todos se convertam e vivam. Quem interpreta estas palavras no sentido fundamentalista passa a praticar rituais de exorcismo, muito característicos de algumas entidades religiosas católicas e não católicas da atualidade, que até fazem demonstrações teatralizadas disso através da televisão. No meu modo de entender, o poder de expulsar demônios deve ser entendido como o poder de vencer o mal, em todas as suas formas de manifestações, principalmente aquelas mais presentes na sociedade contemporânea, materializadas na discriminação de pessoas, na exclusão social, na exploração do próximo através das nefastas práticas capitalistas, que tanta indignação causam às pessoas de boa fé. E o poder de curar doenças pode ser entendido como a aceitação e a promoção das pessoas mais necessitadas física e psicologicamente, levando apoio e auxílio aos irmãos mais frágeis e vulneráveis. Não existe uma receita ou um padrão de comportamento a ser indicado, mas isso será percebido pela sensibilidade de cada um, perante a sua consciência iluminada pela fé. Os sacerdotes recebem essa missão de forma plena, mas pelo batismo, também nós leigos a recebemos em grau genérico, conforme a promessa de Cristo, e compete a cada um de nós encontrar a melhor forma de pô-los em prática na nossa vida, com nossas ações e nosso testemunho.


Que o divino Mestre e o nosso Seráfico Patriarca nos ajudem no fiel cumprimento da missão que Cristo reservou e espera de cada um de nós.


Com um cordial abraço.

Antonio Carlos


sábado, 6 de julho de 2024

COMENTARIO LITÚRGICO - 14 DOMINGO COMUM - 07.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A FORÇA DA GRAÇA – 07.07.2024


Caros Confrades:


A liturgia deste 14º domingo do tempo comum traz, nas suas leituras, um tema muito importante que é a doutrina da graça, a graça suficiente, a graça que basta. Deus dá a todos a sua graça, mas ele respeita a nossa liberdade, não fica nos puxando pela mão o tempo todo, espera que nós saibamos construir conscientemente o nosso caminho. A graça que Deus dá não obriga nada a ninguém. A cada um é dada a força da graça em tamanho suficiente, porém, se cada pessoa não fizer também a sua parte, a graça por ele recebida restará ineficaz. A maior graça divina que nos foi dada é a redenção, trazida por Cristo. Mas ela só tera efeito naqueles que acreditarem. Pela fé nele, inicia-se o processo de abertura do nosso ser para a graça, mas a salvação de cada um deve ser conquistada com o testemunho dessa fé através das obras. Se fosse de outro modo, a graça não nos ajudaria, mas nos anularia como pessoas, porque se poria acima da nossa liberdade. Desse modo, Deus dá a sua graça mas espera que nós a aceitemos livremente e ajamos de acordo com ela, para sermos merecedores dessa distinção.


Na leitura da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 12, 7), esse tema está bem explicado, quando ele declara que foi espetado na carne por um espinho que é como um anjo de Satanás a esbofeteá-lo. No texto original grego, a expressão paulina é 'skólops tês sarxi'', que significa ‘estaca na carne’ (faz lembrar as histórias de Drácula isso), e no texto latino, a tradução usada por São Jerônimo é 'stimulus carnis', que nas traduções portuguesas mais antigas era vertido como ‘aguilhão na carne’. A tradução atual substituiu o aguilhão por espinho, porém espinho é algo muito brando para simbolizar a imagem proposta por Paulo. Espinho lembra algo pontiagudo, mas delgado e frágil. Já a palavra grega 'skólops' tem um peso muito maior do que simples espinho, simbolizando uma madeira pontiaguda, algo mais poderoso e difícil de evitar.


Pois bem, Paulo diz que esse 'skólops' foi enfiado na sua carne para que ele não se ensoberbecesse com a maravilhosa revelação que ele teve, após a sua conversão, quando foi tocado por Jesus e se transformou em fervoroso discípulo. Por três vezes, diz ele, pedi ao Senhor que me livrasse disso, mas Ele respondeu: ‘basta-te a minha graça’ (2Cor 12, 9). Então, Paulo reflete acerca da suficiência da graça divina para a nossa salvação, ensinando-nos a não nos deixarmos sucumbir diante das dificuldades da vida, das nossas fraquezas, do desânimo e da falta de compreensão, muitas vezes, daqueles que nos são mais próximos. Quer ele dizer, com isso, que a graça de Deus que nos é dada não afeta a nossa condição humana, no sentido de que nós continuamos a possuir as mesmas imperfeições e ambiguidades da nossa natureza. O fato de acreditar em Cristo não torna o cristão, humanamente falando, melhor do que o não crente. Porém, o cristão passa a ter um recurso extra para superar as suas fraquezas humanas. Diz Paulo que é na fraqueza que a força se manifesta. E arremata: ‘porque quando me sinto fraco, então é que sou forte’. Isto é: quando as adversidades me atacam, quanto mais elas me perseguem, mais eu conto com a graça divina. Por outras palavras, a graça divina não retira de nós o pecado, mas nos proporciona condições para vencer o mal e trilhar o caminho do bem. Aqui é que o resultado vai depender de cada um de nós.


Essa doutrina desenvolvida pela teologia da graça ensina que Deus dá a todos os homens a graça suficiente para a salvação, porém, cada um deve fazer a sua parte para que ela frutifique. Desse modo, ela contrasta com a doutrina da graça de outras religiões, aquela que se denomina de predestinação. Segundo esta, algumas pessoas estão marcadas para a condenação, independente do que venham a fazer. De outro lado, outras pessoas estão escolhidas para a salvação, não importa o que fizerem na vida. Essa doutrina, se verdadeira, tornaria inútil qualquer esforço nosso para escolher o bem e praticar a virtude, além de levar à conclusão de que Deus seria sumamente injusto conosco, zombando da nossa condição e desrespeitando a nossa liberdade, o que seria incompatível com a natureza perfeita da divindade. Por isso, a teologia cristã católica ensina que a graça nos é dada, sim, sem que a peçamos, porém ela não funciona de forma automática, mas vai depender da forma como cada qual corresponde aos dons divinos. Ou seja, a graça divina é suficiente, mas não surtirá efeito sozinha e, portanto, a salvação é um dom de Deus, mas é também uma conquista de cada um através da sua fé e das suas obras de misericórdia, não bastando apenas a fé. Agir em desacordo com a graça é o que se constitui em pecado e isso, às vezes, termina sendo inevitável, dadas as imperfeições da nossa natureza. Observa-se que, quando Paulo pediu a Deus: livra-me do “skólops”, ele estava querendo dizer “livra-me dessa condição de pecador”. Mas a resposta divina foi: não, a graça que te dou pode superar o pecado, isso só depende de ti. Eis o nosso cotidiano desafio.


Esse tema da “graça que basta” está representado também no evangelho de Marcos (6, 1-6), onde lemos que Jesus voltou a Nazaré, sua terra, acompanhado dos discípulos e lá se apresentou na sinagoga, no sábado, para fazer a leitura da Torah e depois explicá-la para os ouvintes. Foi quando os fariseus e os doutores da lei se ‘escandalizaram’ e ficaram se questionando: quem deu a Ele essa sabedoria? Com que autoridade Ele vem nos ensinar? Os doutores da lei não admitiam que alguém do povo, que não pertencesse ao grupo deles, fosse ler na sinagoga e explicar a palavra de Deus. Somente eles poderiam fazer isso. Ora, Jesus tinha vivido muito tempo em Nazaré e era conhecido, assim como os seus familiares. Diziam eles: não é este o filho do carpinteiro José? Nós conhecemos sua mãe, seus irmãos e irmãs, que ainda moram na cidade. Ora, meus amigos, aqueles fariseus tiveram diante de si, em pessoa, a própria Graça divina e não a reconheceram, e a recusaram. É interessante observar que o verbo ‘escandalizar’, nesse contexto, nada tem a ver com o sentido comum dessa palavra na nossa língua, mas significa descrença, não aceitação, incredulidade. Os fariseus se escandalizaram com Jesus quer dizer que não o aceitaram como Messias, não reconheceram nele o prometido por Deus. Portanto, aqueles fariseus tiveram a graça suficiente, mas pela sua incredulidade, pela rebeldia de sua vontade, a graça não operou efeito neles. Talvez se Jesus tivesse se “exibido” diante deles com algum milagre, tivessem acreditado. Mas, diz o evangelista, Jesus não fez milagre algum, apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Essas curas eram sempre feitas de forma privada, sem presença de público. Mas os fariseus tinham conhecimento de outros milagres, porque a fama de Jesus, nessa ocasião, circulava em toda a região. Portanto, embora tivessem a própria Graça entre eles, os seus efeitos não ocorreram, porque Deus respeita a liberdade humana e pela falta de fé deles, a salvação trazida por Jesus não se realizou ali.


Essa atitude de incredulidade dos fariseus já estava prevista pelo profeta Ezequiel, conforme lemos na primeira leitura deste domingo. Javeh disse a Ezequiel: vai lá, apresenta-te ao povo e fala em meu nome, eu sei que não vão acreditar em ti, porque são (Ez 2, 3): nação de rebeldes, que se afastaram de mim. Eles e seus pais se revoltaram contra mim  até ao dia de hoje. A estes filhos de cabeça dura e coração de pedra, vou te enviar …” E depois acrescenta: “Quer te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um profeta.” Foi assim que Jesus retornou a Nazaré, para que se cumprisse a profecia pois, crendo ou não, os líderes religiosos do povo ficariam sabendo que o Messias passou entre eles. A mesma atitude de recusa relatada pelo profeta Ezequiel em tempos passados se repetiu em relação àquele que, no dizer de João Batista, é mais do que um Profeta, pois o profeta fala em nome de Deus, mas Jesus falava em nome próprio. Isso torna a atitude rebelde dos fariseus mais grave e ofensiva do que a dos seus antepassados, porque estes rejeitaram a pessoa de um representante de Deus, enquanto os fariseus rejeitaram o próprio Deus.


Meus amigos, a pedagogia catequética tradicional promovia uma satanização do pecado, como se este fosse obra do demônio. Mas podemos concluir, pela leitura da carta de Paulo, que o pecado é fruto da condição humana e que ele não deve nos afastar de Deus, mas devemos nos amparar na graça que Deus nos concede, para superá-lo. Uma antiga oração penitencial dizia assim: ‘prometo nunca mais pecar...’ ora, sabemos que isso é impossível, porque para isso acontecer, teríamos de deixar de ser humanos. O pecado faz parte da natureza humana e assim é uma realidade sempre possível na nossa vida. Porém, sabendo que Deus nos concede a sua graça, temos a confiança de que é sempre possível também evitá-lo e, em qualquer caso, temos o remédio para sanar as suas consequências.


Que o Senhor nos ajude sempre a descobrir em nós a graça que recebemos e nos dê coragem para agir de acordo com ela.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos.