sábado, 28 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMILIA - 29.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 29.12.2024


Caros amigos,


No domingo do que medeia entre o Natal e o Ano Novo, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré. A festa litúrgica traz para a consideração das famílias cristãs o exemplo da família sagrada, encerrando o ano civil com um incentivo à reflexão sobre a situação das nossas famílias, local onde a humanidade se perpetua, não apenas no aspecto biológico, mas e principalmente, no aspecto cultural, valorativo, religioso, ético, atingindo a personalidade inteira das pessoas. Não é por outro motivo que vivemos em num mundo repleto de desajustes em todos os sentidos, ou seja, a falta de estrutura e segurança no ambiente familiar produz adultos insatisfeitos, imaturos, violentos, egoístas e despreparados para a vida.


Neste início do século XXI, a organização familiar passa por um período de turbulência nunca antes verificado. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem, uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades familiares que não existiam no passado, quais sejam, as famílias resultantes de uniões homoafetivas, com filhos adotados, e ainda as famílias monoparentais: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais, famílias multigenéticas decorrentes de diversas uniões matrimoniais. Essas situações eram totalmente reprimidas e rejeitadas no passado, mas atualmente, a sociedade as aceita sem restrições. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, os quais se tornam cada vez mais frequentes e gozam de reconhecimento jurídico pelo Estado. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor sobre os diversos modelos familiares, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, vem passando por uma reforma substancial, sendo motivo também de discussão legislativa no Congresso Nacional (Estatuto da Família).


Voltando ao tema inicial, a liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo da família perfeita, até mesmo com as eventuais vicissitudes que ocorrem em todos os grupos familiares: por exemplo, o 'pito' que Maria deu no menino Jesus, depois da estressante procura por Ele, na ocasião do retorno de Jerusalém para Nazaré, depois da Festa da Páscoa. Um puxão de orelhas educativo (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.


Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17), também conhecido como Ben Sirac ou Sirácide, em alusão ao seu escritor. Este era um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreveu uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu, numa época em que a cultura grega se espalhava entre os judeus. O autor quis reforçar os valores hebraicos tradicionais, que não devem ser substituídos pela cultura alienígena, detalhando-os para ensinamento dos mais jovens. Este livro não fazia parte da antiga bíblia judaica, motivo pelo qual não é aceito pelos judeus, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão na Bíblia.


Dentro do tema geral do livro, que trata da felicidade, a leitura escolhida pela liturgia traz conselhos aos filhos sobre o respeito para com os pais, fato que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, além de ser uma obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supraculturais.


A segunda leitura, de Paulo aos Colossenses (Cl 3, 12-21) exorta os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Paulo escreveu esta carta quando estava na prisão em Roma e soube de algumas desavenças que ocorriam entre os cristãos de Colossos. Conclama as esposas a serem solícitas com os maridos e estes a amarem as esposas e não ser grosseiros com elas. Depois, admoesta os filhos para obedecerem aos pais, até parece que Paulo procura complementar ou atualizar a leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.


No evangelho de Lucas (Lc 2, 41-52), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Pela Lei mosaica, os jovens só tinham obrigação de acompanhar os pais para a celebração da Páscoa a partir dos 13 anos de idade, mas José e Maria levaram Jesus um pouco mais cedo, aos 12 anos, deduzindo-se desse fato que aquela teria sido a sua primeira participação. No retorno, o menino se desgarrou do grupo e isso não foi percebido pelos seus pais, pois essas viagens a pé eram feitas em caravanas compostas de parentes e pessoas residentes em Nazaré e em cidades próximas. Nesse grande grupo, por certo as crianças maiores tinham liberdade para circular entre os parentes e conhecidos, de modo que a ausência de Jesus não foi notada de imediato durante a caminhada do dia. Provavelmente foi na primeira dormida, por não ter ele voltado para o grupo dos pais, que deram conta de sua falta. Por isso, diz Lucas que eles haviam caminhado já um dia inteiro quando perceberam a ausência do menino e voltaram a Jerusalém para procurá-lo.


Cada um de nós, pela experiência de pais e mães, pode imaginar a aflição de José e Maria por terem 'perdido' o menino numa cidade grande, cheia de estrangeiros, no meio destes também gente de maus costumes (porque isso há em todo lugar), pode supor o que se passava na cabeça e no coração deles. E ainda demorou um tempo enorme: três dias de buscas, que devem ter parecido uma eternidade. Jerusalém, em tempos de festa da Páscoa, devia ficar assim como ficam as nossas cidades romeiras de Canindé e Juazeiro do Norte, na época dos festejos. Quem já esteve lá nesses períodos, pode fazer melhor uma ideia do ambiente. Vê-se que, apesar de toda a fé, que certamente nunca lhes faltou, a situação psicológica de José e Maria era de grande estresse e angústia, tanto que, ao encontrarem o menino na sinagoga, em vez de se sentirem aliviados, deram-lhe um 'puxão de orelhas': porque você fez isso conosco, disse Maria?


Eu fico aqui imaginando a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. E para ela falar no 'pito' que deu no menino após a angustiante procura, deve ter sido permeado de reticências, as quais Lucas ia completando com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria. E a resposta de Jesus até parece indelicada, pois o mais esperado seria um pedido de desculpas. No entanto, Ele chegou a ser até arrogante ao dizer: eu estava cuidando das coisas do meu Pai... e Maria se acalmou e conservou mais este mistério em seu coração.


Com este episódio, o evangelista Lucas conclui a parte em que trata da infância de Jesus. Certamente, Maria deve ter contado a ele outros detalhes que, no entanto, não foram incluídos neste escrito. Depois deste fato, Jesus já vai aparecer adulto, com cerca de 30 anos. As especulações dos estudiosos indicam que, nesse meio tempo, ele frequentou uma escola rabínica, provavelmente a escola dos Essênios, uma comunidade que existiu nas margens do Mar Morto e que foi destruída por ocasião da dominação romana. Embora sendo Deus, Jesus não 'nasceu sabendo' as escrituras, ele precisou estudar e assim, quando iniciou sua missão no deserto, após o batismo por João, Ele já tinha conhecimento suficiente da Lei de Moisés e dos Profetas, como os doutores do seu tempo. O que o evangelista fez questão de ressaltar foi que, superado esse episódio, o menino foi obediente em tudo aos seus pais. Esse exemplo de harmonia familiar é o grande legado que devemos aprender da Sagrada Família de Nazaré, o qual deve ser assimilado também pelos modelos familiares alternativos, para que sempre se orientem no sentido dos verdadeiros ensinamentos cristãos.


Cordial abraço a todos. Renovados votos de Feliz Ano Novo.

Antonio Carlos

sábado, 21 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - 22.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – PRIMEIRA TESTEMUNHA – 22.12.2024


Caros Confrades,


Aproxima-se o Natal e a liturgia deste quarto domingo do Advento nos lembra quem foi a primeira testemunha da iminente chegada do Salvador: foi Isabel, esposa de Zacarias, quem recebeu a primeira notícia da chegada do Messias, através da reação de menino João, em seu ventre. A liturgia comemora a visita de Maria à sua prima Isabel, que morava nas montanhas, aonde ela foi apressadamente a fim de dar-lhe assistência nas primeiras semanas após o nascimento de João. A gravidez de Maria, então incipiente, era segredo apenas dela, nem José ainda sabia, mas “o menino exultou de alegria” nas entranhas de Isabel e ela foi inspirada pelo Espírito Santo para reconhecer e interpretar aquele fato.


Antes de prosseguir no tema da visita de Maria, eu gostaria de ressaltar aqui a espetacular previsão do profeta Miqueias, com um grau de acerto de cem por cento, sobre o local onde nasceria o Messias: Belém de Judá. Miqueias era natural também do reino de Judá, morador na cidade de Mirasti, próxima de Belém e era contemporâneo do profeta Isaías, tendo vivido por volta de 700 anos antes de Cristo. Ele é um dos chamados 'profetas menores', porque o seu livro tem apenas sete capítulos, contudo, foi Miqueias o único dos profetas a afirmar que Belém seria o berço terreno do Messias. Observemos como se pode perceber o dedo de Javé conduzindo as ações humanas na história, para a realização de suas promessas a Abraão. Quando Miqueias profetizou a chegada do Messias em Belém, foi cerca de 700 anos antes de José e Maria se casarem. Na época dos fatos, eles não moravam em Belém, e sim em Nazaré, porém as circunstâncias levaram o casal até Belém. São Tomás de Aquino afirmava que Deus age por “causas segundas”, isto é, não de modo direto, mas servindo-se dos acontecimentos. No caso, o agente da vontade de Javé foi o governador da Síria, Quirino (Lc 2,2), que era pagão, determinando um recenseamento de todos os moradores do império romano. Quando o rei Arquelau, da Síria, foi vencido pelos romanos, Quirino era o magistrado (governador) romano supremo na região do Oriente Médio, tendo ordenado o recenseamento dos habitantes do seu território, o qual, conforme estudos históricos, se deu entre os anos 8 e 6 a. C. Na Galileia, o governador era Herodes, mas o evangelista Lucas, se refere a Quirino porque Herodes era só o governador local, subordinado a Quirino, que era a autoridade romana máxima da região.


Por que essa referência a Herodes, que nem foi citado na leitura do evangelho? Porque este fato está associado com a visita dos magos do oriente, que chegaram ao palácio do rei Herodes perguntando onde estava o rei dos Judeus recém-nascido... para Herodes aquilo foi um choque, pois o rei era ele e não havia nascido nenhum filho dele. De todo modo, Herodes chamou os seus sacerdotes e adivinhos para saber do que se tratava, porque aquilo podia ser um sinal de alguma insurreição popular contra os romanos, talvez algum descendente real de uma tribo daquele povo. Logo, logo os sacerdotes lembraram da profecia de Miqueias: Belém, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel, e então os magos foram orientados para irem até Belém. E depois Herodes mandou matar todos os recém-nascidos da região, por via de dúvidas, embora ele não acreditasse naquelas balelas de profecias. A narrativa do evangelista Lucas, que é como sempre recheada de detalhes históricos, nos ajuda a contextualizar os fatos e a fundamentar historicamente a época do nascimento de Cristo.


Na segunda leitura, da carta aos Hebreus, o autor desconhecido desse texto sagrado faz referência ao nascimento de Cristo, dizendo que Javé não se satisfazia com os holocaustos e oferendas de animais, sacrifícios imperfeitos que não expiavam os pecados da humanidade, por isso mandou seu próprio Filho para tornar-se a oferenda definitiva. Cristo, sacrificando-se de uma vez por todas, suprime e substitui todos os demais holocaustos e redime a humanidade. Ele veio para cumprir a promessa: “Eis que eu venho. No livro está escrito a meu respeito: Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade.' ” (Heb 10, 7) O “livro” onde isso está escrito não é outro senão “a Bíblia (biblos)”, ou simplesmente, “o livro” escrito pelos profetas. São vários os profetas, mas o livro é um só, porque todos os seus escritores colocaram ali um conteúdo que se integra e se correlaciona, daí que não interessam os nomes dos autores materiais, já que um só é o seu autor intelectual: Javé. (Apenas para esclarecer aos colegas, esta carta era antigamente atribuída a Paulo e se dizia “carta de São Paulo aos Hebreus”, mas estudos posteriores dos biblistas levaram à conclusão de que não foi Paulo o seu autor, e visto que não se sabe quem foi, diz-se apenas “carta aos Hebreus”.)


No evangelho de Lucas (Lc 1, 39-45), lemos o relato muito conhecido da visita de Maria a Isabel, que se tornou a primeira testemunha da gravidez divina de Maria, por inspiração do Espírito Santo. A narração de Lucas é bastante rica em detalhes e, ao longo da história, estimulou a imaginação dos artistas dos mais variados modos, motivando a produção de inúmeras obras de arte retratando o tema. E Lucas foi aquele agente escolhido, pela sua convivência com Maria após a morte de Cristo, tendo sido escolhido por Deus para recolher d'Ela os segredos mais reveladores da vinda de Cristo, que não teriam sido conhecidos pela humanidade se não fosse essa situação privilegiada de ser ele uma pessoa letrada e da total confiança de Maria. Por conta disso, o seu evangelho tem uma característica singular, no que diz respeito ao conhecimento da infância de Jesus e à vida pessoal de Maria.


Pois bem. Diz Lucas que Maria foi apressadamente à região das montanhas, para visitar sua prima Isabel, que estava nos dias próximos do parto. Maria também estava grávida, embora de pouco tempo, gravidez ainda não perceptível, portanto, a própria Isabel não tinha conhecimento disso. E como era costume (e ainda é em grande parte da região interiorana do Nordeste), as parentas próximas (mãe, irmãs, primas) vão prestar assistência à parturiente, no período pós-parto, denominado de “resguardo”, especialmente quando se trata do primeiro filho. Tem aquela tradição que diz que Isabel mandou acender uma grande fogueira em frente da sua casa lá no alto, para que Maria e os parentes, que moravam no vale fossem avisados da proximidade do seu parto. Evidentemente não há embasamento bíblico para esse justificar tal procedimento, mas de qualquer modo, essa seria a origem das fogueiras juninas, que ainda hoje anunciam São João.


Ao se encontrarem, Isabel fez aquele célebre discurso teológico, que se tornou o tema da oração mais tipicamente mariana: ave, cheia de graça, bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Com certeza, Lucas relata esses detalhes para destacar o reconhecimento da divindade de Cristo, mesmo antes do seu nascimento. Isabel, como as mulheres judias daquele tempo, não era uma pessoa letrada, mas devia frequentar a sinagoga, como todos os judeus, e certamente sabia das promessas de Deus através dos profetas, pela explicação dos rabinos, acerca da vinda do Salvador. Muito provavelmente, o discurso teológico de Isabel foi recomposto por Lucas, a partir de sucintas narrações feitas por Maria, que na sua humildade e tendo sido ela e Isabel as únicas pessoas a testemunharem o evento, não iria fazer para si mesma um cântico de exaltação. Diz Lucas que Isabel ficou cheia do Espírito Santo quando Maria chegou e sentiu o bebê mover-se de modo diferente no seu ventre, o que a levou a proferir essas palavras inspiradas sobre a gravidez da prima. Na tradição teológica, diz-se que a primeira manifestação do Espírito Santo ocorreu no batismo de Cristo, quando ele já era adulto, juntamente com a “voz” do Pai, ou seja, a primeira manifestação da trindade divina. Mas podemos dizer que foi, de fato, Isabel a primeira pessoa que sentiu a inspiração do Espírito Santo com a presença de Maria, ao mesmo tempo em que isso indica a missão especial que deveria ter o filho dela, Isabel, na preparação do povo judeu para o reconhecimento do Cristo Messias.


Por fim, é importante destacar que a celebração da festa do Natal em 25 de dezembro não corresponde aos fatos históricos narrados por Lucas. Provavelmente, o nascimento de Jesus ocorreu no mês de março, isso também não ficou registrado. No entanto, foi uma imposição do imperador romano Constantino a data de 25 de dezembro para a celebração do Natal, sacralizando a festa pagã do deus saturno (saturnalia), que acontecia tradicionalmente em Roma nesta época da passagem do solstício de inverno, entre os dias 17 e 23 de dezembro, festas acompanhadas de lautos banquetes e distribuição de presentes. Depois dessa festividade, todos se recolhiam até terminar o inverno. Independentemente disso, porém, para nós cristãos, o que interessa é o nascimento de Cristo, que aconteceu uma vez na história, mas que se repete constantemente em nossos corações, quando renovamos nosso compromisso de viver segundo o evangelho.


Com sinceros votos de Feliz Natal a todos.

Antonio Carlos

sábado, 14 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3 DOMINGO DO ADVENTO - 15.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 15.12.2024


Caros Confrades,


Neste 3º domingo do advento, a liturgia retoma o tema da alegria sobre Jerusalém, servindo-se das palavras do profeta Sofonias. Alegra-te, Jerusalém, diz ele, o Senhor teu Deus está no meio de ti. O contexto em que o Profeta faz essa invocação é bem diferente deste que se celebra no Advento, como explicarei em seguida, mas o texto aqui é utilizado para invocar o Senhor que está para chegar. Este domingo é também conhecido como o “domingo laetare” (alegrar-se), em que a liturgia nos convida a ficarmos alegres com a aproximação do Natal. E a leitura do evangelho escrito por Lucas nos traz uma interessante sugestão de reflexão, na perspectiva do ano novo litúrgico, que nos conclama à revisão de nossas atitudes e a renovar nossos compromissos de cristãos.


O profeta Sofonias (3, 14-18) convida o povo a se alegrar, porque o Senhor afastou os inimigos de Jerusalém. Este profeta viveu antes do cativeiro da Babilônia, numa época em que o povo hebreu dividia suas preferências políticas entre os reinos do Egito e da Assíria, buscando qual seria o melhor para fazer aliança. Dentre as autoridades hebraicas, havia os simpatizantes da aliança com o Egito e os que defendiam a aliança com a Assíria, tendência esta que era a favorita do rei de Judá, na época de Sofonias (por volta do ano 630 a.C.), o rei Josias. Não demorou muito para que a Assíria fosse dominada pelos exércitos babilônicos, liderados por Nabucodonosor. Visto que os hebreus tinham essa aliança com a Assíria, tiveram a mesma sorte que os seus amigos assírios e foram levados cativos por Nabucodonosor para a Babilônia. Então, Sofonias profetizou nessa época anterior ao domínio babilônico, conclamando o povo a alegrar-se, porque Javé é o valente guerreiro que salva seu povo. Era uma tentativa de exaltar o nacionalismo judaico diante das ameaças de dominação por povos estrangeiros. Hoje nós sabemos que essa alegria durou pouco tempo, porque logo veio a escravidão. Então, a liturgia retira o texto de Sofonias do seu contexto histórico para encaixá-lo na temática do Advento.


A segunda leitura, extraída de Paulo aos Filipenses, também está deslocada do seu contexto histórico, porque quando o Apóstolo recomendava aos cristãos de Filipos que se alegrassem sempre no Senhor, pois Ele está próximo, queria referir-se à segunda vinda de Cristo que, conforme era o entendimento da época, acreditava-se que seria 'em breve'. Outra vez, precisamos abstrair da situação concreta do texto para que possamos compreendê-lo na perspectiva da temática do Advento. O fato de Paulo exortar os Filipenses à alegria sobre a proximidade da vinda do Senhor passa a ser então apropriado dentro do roteiro do “domingo laetare”, nessa etapa de preparação para a celebração do Natal. Portanto, a liturgia faz uma espécie de silepse histórica, levando-nos a fazer um certo exercício mental para compreendermos dentro do contexto do Advento dois textos que se referem a outras circunstâncias históricas. Na verdade, parece-me que a única justificativa é porque ambos contemplam o tema da alegria, que a liturgia pretende atribuir a este terceiro domingo.


Agora, afastando-nos do tema da alegria, examinemos o evangelho de Lucas (3, 10-18), que destaca a figura de profética de João Batista, pregando o batismo da conversão e batizando no Jordão. Diz Lucas que as pessoas convertidas procuravam João perguntando “o que devemos fazer” para viverem em coerência com o batismo da conversão. E João exortava a todos, de acordo com a atividade social exercida pelo batizado, recomendando-lhes o fiel cumprimento da missão de cada um. Aos vendedores e compradores, ele dizia: quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo. Ou seja, saibam partilhar os bens com os mais pobres. Aos cobradores de impostos, esses que, desde aquele tempo, já eram vistos pelo povo como corruptos, pecadores públicos, João dizia: não cobreis mais do que foi estabelecido, ou seja, pratiquem a sua atividade com justiça, não façam extorsão. Aos soldados, esses que eram também considerados pessoas costumeiramente violentas e perversas, João dizia: não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações, ou seja, não exerçam o poder com abuso de autoridade. E mais: ficai satisfeitos com o vosso salário, ou seja, controlem a ambição de sempre querer mais. È proveitoso meditarmos sobre esse discurso de João, exortando os convertidos a viverem conforme sua conversão.


Com efeito, o discurso de João até parece que está direcionado para a sociedade dos nossos dias. O tempo do Advento é uma época adequada para fazermos um exame das nossas atitudes e avaliarmos como está a fidelidade à nossa vocação. João Batista está mostrando que, para cada um de nós, o Menino Deus tem um pedido especial, qual seja, a de vivermos com dignidade a nossa missão no dia a dia. Se tivermos o cuidado de 'ouvir' a voz de Deus nas nossas consciências em cada decisão que tomamos na vida, poderemos perceber que, em cada situação, Ele nos pede e espera de nós uma atitude de compromisso com a solidariedade, com a justiça, sempre no sentido do melhor cumprimento das verdades que Ele ensinou. Essa leitura do evangelho de Lucas nos sugere que, antes de cada tarefa e diante de cada nova missão que assumamos, na vida pessoal ou profissional, façamos perante a nossa própria consciência aquela indagação dos discípulos de João: para podermos viver a cada dia a nossa constante conversão ao chamado de Cristo, o que devemos fazer? E fiquemos atentos para o que Deus falará ao nosso coração.


E João Batista, ciente de sua própria missão, quis deixar claro, para aqueles seus discípulos que viam nele a figura de um provável Messias, quem era ele, confessando humildemente: eu não sou o Messias, mas virá aquele que é mais forte do que eu e eu não sou digno de desamarrar os cadarços da Suas sandálias (Lc 3, 16) e Ele vos batizará no espírito santo e no fogo. E completa: Ele virá com uma pá para limpar sua eira e uma peneira para separar o trigo do carrapicho. Embora o texto apresentado na versão oficial da CNBB use a expressão pá na mão, no texto latino, a palavra é “ventilabrum”, cuja tradução mais própria seria “joeira”, palavra que não é comum na nossa cultura, e que é algo mais parecido com a peneira. A ideia é fazer aquilo que os produtores rurais fazem com o feijão, o milho, o arroz depois que eles põem pra secar, a fim de separar os grãos quebrados dos inteiros, separar os grãos de suas palhas: peneirar. No nosso meio sertanejo, além da peneira, faz-se também a prática de “ventilar” o feijão, o milho, ou seja, passar pelo vento, pra separar os grãos das cascas, é outra técnica rudimentar que tem o mesmo objetivo.


A meu ver, seria essa a mensagem que João Batista queria transmitir. Eu não sou o Messias, mas ele está perto de chegar e virá com uma peneira pra separar os grãos perfeitos das cascas, os grãos inteiros dos quebradiços. Os grãos selecionados serão recolhidos ao celeiro, enquanto as palhas serão lançadas ao fogo (Lc 3, 17). Então, o caminho de preparação para a celebração do Natal coloca na nossa frente os desafios que devemos enfrentar para sermos dignos de vê-Lo nascer em nosso espírito, em nossas famílias, em nossa comunidade. Traz um alerta para que não relaxemos nos nossos compromissos de cristãos e uma oportunidade para fazermos um balanço sobre as práticas realizadas no período que termina. Ou seja, a liturgia nos remete à reflexão sobre o modo como realizamos, no dia a dia das nossas atividades, aquelas ações e práticas que devem espelhar o estilo de vida do verdadeiro cristão.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 7 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA IMACULADA CONCEIÇÃO - 08.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO – 08.12.2024


Caros Confrades,


Neste segundo domingo do advento, a liturgia dominical cede lugar para a celebração da festividade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dos dogmas da Igreja Católica Romana acerca de Maria, proclamado em 1854, pelo Papa Pio IX. Contudo, a tradição já acreditava nessa verdade desde os primeiros tempos do cristianismo. Quando em 431, no Concílio de Éfeso, foi proclamado o dogma de Maria Mãe de Deus (Teotokos), a crença na sua Imaculada Conceição já existia. A argumentação teológica para justificar o dogma é o fato de Maria ter sido beneficiada, por antecipação, da redenção que seria trazida por Jesus Cristo. Embora não haja um fundamento bíblico para o fato, chega-se a essa conclusão por um raciocínio de lógica teológica, dentro da economia da salvação.


Vocês devem ter observado que, acima, eu destaquei que se trata de um dogma da igreja Católica Romana. Sim, porque as outras Igrejas Católicas, as orientais ortodoxas, não reconhecem esse fato como verdade de fé. Segundo a doutrina do catolicismo ortodoxo, Maria nasceu do mesmo modo que todas as meninas, sem nenhum diferencial na sua pessoa. Tempos depois, na adolescência, quando Maria recebeu a visita do anjo Gabriel, que a convidou para ser a mãe de Jesus, o Filho de Deus, e quando ela aceitou, então, por ação do Espírito Santo, ela foi purificada de todo pecado, para que assim fosse digna da gestação divina. Portanto, ela somente se tornou imaculada nessa ocasião, não foi desde a sua concepção biológica, conforme afirma a Igreja Católica Romana. Talvez algum de vocês esteja questionando: com que autoridade as igrejas ortodoxas discordam da igreja romana? Então, elas são heréticas? Pois bem, essa é uma longa história de controvérsias, que já rendeu muitas ocasiões de discussões entre os teólogos no passado. Mas vejamos algumas informações acerca das igrejas ortodoxas, que são muito pouco conhecidas no meio do catolicismo romano.


Todos sabemos que a igreja de Cristo surgiu em Jerusalém, naquele evento da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, Maria e a pequena comunidade de fiéis reunida com eles. É o que chamamos de Pentecostes, dia em que muitos judeus se converteram. Então, essa é a primeira igreja cristã, que ficou sob a direção de Tiago, o irmão do Senhor. De Jerusalém, o cristianismo foi levado para Antioquia, onde havia grande comunidade de judeus, e ali também houve muitas conversões, resultado das pregações de Barnabé e de Paulo. Assim surgiu nova igreja cristã, que ficou sub a direção de Pedro. Em seguida, isso também aconteceu na cidade de Alexandria, onde também havia grande comunidade de judeus, que também se converteram. Essa igreja ficou sob a direção de Marcos, o evangelista. Depois, esses fatos se repetiram em Constantinopla, e ali surgiu nova igreja cristã, que ficou sob a direção de André, irmão de Pedro. Na sequência, Barnabé fundou a igreja cristã de Chipre, terra natal dele e Paulo fundou as diversas igrejas em território grego (Filipos, Éfeso, Tessalônica, Corinto), surgindo assim a igreja cristã grega. Por fim, o mesmo Paulo levou o cristianismo para Roma, fundando a igreja romana. Por ser Roma a cidade mais importante, Paulo foi buscar Pedro em Antioquia e o levou para dirigir a Igreja em Roma. Essas igrejas todas receberam o nome de “católicas”, palavra grega que significa “universal”, porque a mensagem cristã estava ganhando dimensões mundiais. Atualmente, existem 14 igrejas católicas no oriente, com sedes em diferentes países, e apenas uma igreja católica no ocidente, essa é a que tem sede em Roma. As igrejas orientais não são subordinadas ao bispo de Roma, que chamamos Papa, mas cada uma delas tem seu Patriarca, com a mesma função. Dito isso, é possível perceber melhor a questão de que uma declaração dada pela Igreja de Roma pode não ser aceita pelas igrejas ortodoxas, pois cada uma delas tem sua autoridade. Da mesma forma que uma declaração das igrejas ortodoxas pode não ser aceita pelo Papa. Nas igrejas ortodoxas, portanto, não existe essa celebração da Imaculada Conceição e, por isso, no domingo de hoje, celebra-se a liturgia normal do tempo do advento.


Interrompo aqui esse tema, que poderei retomar em outra ocasião. Agora, reporto-me à liturgia de hoje. A primeira leitura (Gn 3, 9-20) narra o diálogo de Deus com Adão e Eva, logo após terem comido do fruto proibido, no qual consta o trecho onde diz que a mulher irá esmagar a cabeça da serpente e essa é uma das imagens bíblicas mais icônicas relacionadas com o culto a Maria. Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 1, 3-6), temos a pregação do Apóstolo ensinando que nós somos filhos adotivos de Deus, por intermédio da encarnação de Jesus, que se deu através de Maria. Paulo não menciona essa última parte, ela fica apenas subentendida. E o evangelho de Lucas (1, 26-38) narra o episódio da anunciação do anjo Gabriel a Maria.


No catolicismo romano, desde há muito tempo, existe uma grande devoção a Maria, que assume inúmeros títulos, fato que muitas vezes até leva a desviar a atenção dos fiéis em relação aos mistérios centrais da religião. Para muitos fiéis, a devoção a Maria e aos Santos está acima da fé em Jesus Cristo e do conhecimento dos textos bíblicos. A recitação do terço é considerada por alguns fiéis como superior à participação na missa. Proliferam no mundo todo relatos miraculosos sobre aparições de Maria a diversas pessoas, sendo as mais conhecidas Fátima e Lourdes, mas há também Guadalupe (comemorada no dia 12), Aparecida, Medjugorje, Loreto, etc. Nesse contexto, a religião católica torna-se mais mariológica do que cristológica, indicando uma real inversão dos valores do cristianismo, onde a figura de Cristo deve ocupar sempre o lugar de destaque.


Sem desmerecer a figura de Maria e a sua importância dentro da economia da salvação, devemos reconhecer que, de fato, existe uma exacerbação devocional da sua pessoa. E não apenas por parte dos fiéis leigos, mas também dentro da hierarquia. Embora os textos evangélicos sejam centrados na pessoa de Cristo e a menção ao nome de Maria se faça em poucas ocasiões, a tradição religiosa se encarregou de desenvolver-lhe todo um culto paralelo desde os inícios do cristianismo. Os dogmas relacionados à figura de Maria demonstram a força dessa tradição, que é invocada para fundamentar as verdades da fé: Maria Mãe de Deus, a Virgindade de Maria, a Imaculada Conceição de Maria, a Assunção de Maria.


A concepção imaculada de Maria é deduzida da sua condição de Mãe de Deus, por uma dedução lógica de que, para ser a Mãe de Deus, ela não devia ter pecado nenhum. A isto se liga diretamente o dogma da Virgindade. E associado aos dois, o dogma cristológico de ser Jesus o Filho Unigênito, ou seja, Maria não teve outros filhos. E indiretamente associada a tudo isso está a doutrina teológica católica que, desde os primeiros tempos, encara com pessimismo tudo que se relaciona ao sexo, a ponto de Sto Agostinho ter sugerido que o pecado de Adão e Eva teria sido um pecado sexual. A moral católica considera, ainda hoje, que o sexo se destina exclusivamente à procriação, sendo permitido apenas com essa finalidade. E na sequência disso, repudia qualquer outra finalidade da sexualidade, bem como rejeita qualquer método ou medicamento que, de alguma forma, impeça, vede ou obstacule a concepção. A supervalorização da virgindade de Maria, o título de Sempre Virgem Maria, exerce uma pressão subliminar dentro do catolicismo acerca da exclusão da sexualidade, sobretudo em relação às mulheres. Estas sempre foram mais tolhidas no seu comportamento, ao longo da história, diferentemente dos homens que, mesmo estando submetidos aos mesmos paradigmas sexuais, contudo sempre obtiveram maior tolerância neste aspecto. Só muito recentemente a Igreja Romana tem procurado mudar essa tradição, reconhecendo e atribuindo maior valor às mulheres e possibilitando a participação delas em órgãos oficiais do Vaticano. Até já se fala em ordenação de diaconisas e sacerdotisas, mas isso ainda depende da superação de barreiras milenares, o que deverá demandar muito tempo.


Pois bem. Quero deixar claro que as ideias apresentadas acima não significam que, da minha parte, haja qualquer restrição às verdades de fé proclamadas acerca de Maria. Eu não me coloco do lado dos não-católicos, que consideram Maria uma mulher como as outras, eu creio que ela foi especial, não tenho dúvidas disso. No entanto, sou honesto em admitir que o exagero devocional que a tradição cultural criou acerca da personalidade de Maria se põe como obstáculo a uma mais adequada vivência do cristianismo. Que Maria nos ensine a compreender essas verdades, dentro da mais autêntica dimensão da nossa fé.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos