COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO – 08.12.2024
Caros Confrades,
Neste segundo domingo do advento, a liturgia dominical cede lugar para a celebração da festividade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dos dogmas da Igreja Católica Romana acerca de Maria, proclamado em 1854, pelo Papa Pio IX. Contudo, a tradição já acreditava nessa verdade desde os primeiros tempos do cristianismo. Quando em 431, no Concílio de Éfeso, foi proclamado o dogma de Maria Mãe de Deus (Teotokos), a crença na sua Imaculada Conceição já existia. A argumentação teológica para justificar o dogma é o fato de Maria ter sido beneficiada, por antecipação, da redenção que seria trazida por Jesus Cristo. Embora não haja um fundamento bíblico para o fato, chega-se a essa conclusão por um raciocínio de lógica teológica, dentro da economia da salvação.
Vocês devem ter observado que, acima, eu destaquei que se trata de um dogma da igreja Católica Romana. Sim, porque as outras Igrejas Católicas, as orientais ortodoxas, não reconhecem esse fato como verdade de fé. Segundo a doutrina do catolicismo ortodoxo, Maria nasceu do mesmo modo que todas as meninas, sem nenhum diferencial na sua pessoa. Tempos depois, na adolescência, quando Maria recebeu a visita do anjo Gabriel, que a convidou para ser a mãe de Jesus, o Filho de Deus, e quando ela aceitou, então, por ação do Espírito Santo, ela foi purificada de todo pecado, para que assim fosse digna da gestação divina. Portanto, ela somente se tornou imaculada nessa ocasião, não foi desde a sua concepção biológica, conforme afirma a Igreja Católica Romana. Talvez algum de vocês esteja questionando: com que autoridade as igrejas ortodoxas discordam da igreja romana? Então, elas são heréticas? Pois bem, essa é uma longa história de controvérsias, que já rendeu muitas ocasiões de discussões entre os teólogos no passado. Mas vejamos algumas informações acerca das igrejas ortodoxas, que são muito pouco conhecidas no meio do catolicismo romano.
Todos sabemos que a igreja de Cristo surgiu em Jerusalém, naquele evento da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, Maria e a pequena comunidade de fiéis reunida com eles. É o que chamamos de Pentecostes, dia em que muitos judeus se converteram. Então, essa é a primeira igreja cristã, que ficou sob a direção de Tiago, o irmão do Senhor. De Jerusalém, o cristianismo foi levado para Antioquia, onde havia grande comunidade de judeus, e ali também houve muitas conversões, resultado das pregações de Barnabé e de Paulo. Assim surgiu nova igreja cristã, que ficou sub a direção de Pedro. Em seguida, isso também aconteceu na cidade de Alexandria, onde também havia grande comunidade de judeus, que também se converteram. Essa igreja ficou sob a direção de Marcos, o evangelista. Depois, esses fatos se repetiram em Constantinopla, e ali surgiu nova igreja cristã, que ficou sob a direção de André, irmão de Pedro. Na sequência, Barnabé fundou a igreja cristã de Chipre, terra natal dele e Paulo fundou as diversas igrejas em território grego (Filipos, Éfeso, Tessalônica, Corinto), surgindo assim a igreja cristã grega. Por fim, o mesmo Paulo levou o cristianismo para Roma, fundando a igreja romana. Por ser Roma a cidade mais importante, Paulo foi buscar Pedro em Antioquia e o levou para dirigir a Igreja em Roma. Essas igrejas todas receberam o nome de “católicas”, palavra grega que significa “universal”, porque a mensagem cristã estava ganhando dimensões mundiais. Atualmente, existem 14 igrejas católicas no oriente, com sedes em diferentes países, e apenas uma igreja católica no ocidente, essa é a que tem sede em Roma. As igrejas orientais não são subordinadas ao bispo de Roma, que chamamos Papa, mas cada uma delas tem seu Patriarca, com a mesma função. Dito isso, é possível perceber melhor a questão de que uma declaração dada pela Igreja de Roma pode não ser aceita pelas igrejas ortodoxas, pois cada uma delas tem sua autoridade. Da mesma forma que uma declaração das igrejas ortodoxas pode não ser aceita pelo Papa. Nas igrejas ortodoxas, portanto, não existe essa celebração da Imaculada Conceição e, por isso, no domingo de hoje, celebra-se a liturgia normal do tempo do advento.
Interrompo aqui esse tema, que poderei retomar em outra ocasião. Agora, reporto-me à liturgia de hoje. A primeira leitura (Gn 3, 9-20) narra o diálogo de Deus com Adão e Eva, logo após terem comido do fruto proibido, no qual consta o trecho onde diz que a mulher irá esmagar a cabeça da serpente e essa é uma das imagens bíblicas mais icônicas relacionadas com o culto a Maria. Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 1, 3-6), temos a pregação do Apóstolo ensinando que nós somos filhos adotivos de Deus, por intermédio da encarnação de Jesus, que se deu através de Maria. Paulo não menciona essa última parte, ela fica apenas subentendida. E o evangelho de Lucas (1, 26-38) narra o episódio da anunciação do anjo Gabriel a Maria.
No catolicismo romano, desde há muito tempo, existe uma grande devoção a Maria, que assume inúmeros títulos, fato que muitas vezes até leva a desviar a atenção dos fiéis em relação aos mistérios centrais da religião. Para muitos fiéis, a devoção a Maria e aos Santos está acima da fé em Jesus Cristo e do conhecimento dos textos bíblicos. A recitação do terço é considerada por alguns fiéis como superior à participação na missa. Proliferam no mundo todo relatos miraculosos sobre aparições de Maria a diversas pessoas, sendo as mais conhecidas Fátima e Lourdes, mas há também Guadalupe (comemorada no dia 12), Aparecida, Medjugorje, Loreto, etc. Nesse contexto, a religião católica torna-se mais mariológica do que cristológica, indicando uma real inversão dos valores do cristianismo, onde a figura de Cristo deve ocupar sempre o lugar de destaque.
Sem desmerecer a figura de Maria e a sua importância dentro da economia da salvação, devemos reconhecer que, de fato, existe uma exacerbação devocional da sua pessoa. E não apenas por parte dos fiéis leigos, mas também dentro da hierarquia. Embora os textos evangélicos sejam centrados na pessoa de Cristo e a menção ao nome de Maria se faça em poucas ocasiões, a tradição religiosa se encarregou de desenvolver-lhe todo um culto paralelo desde os inícios do cristianismo. Os dogmas relacionados à figura de Maria demonstram a força dessa tradição, que é invocada para fundamentar as verdades da fé: Maria Mãe de Deus, a Virgindade de Maria, a Imaculada Conceição de Maria, a Assunção de Maria.
A concepção imaculada de Maria é deduzida da sua condição de Mãe de Deus, por uma dedução lógica de que, para ser a Mãe de Deus, ela não devia ter pecado nenhum. A isto se liga diretamente o dogma da Virgindade. E associado aos dois, o dogma cristológico de ser Jesus o Filho Unigênito, ou seja, Maria não teve outros filhos. E indiretamente associada a tudo isso está a doutrina teológica católica que, desde os primeiros tempos, encara com pessimismo tudo que se relaciona ao sexo, a ponto de Sto Agostinho ter sugerido que o pecado de Adão e Eva teria sido um pecado sexual. A moral católica considera, ainda hoje, que o sexo se destina exclusivamente à procriação, sendo permitido apenas com essa finalidade. E na sequência disso, repudia qualquer outra finalidade da sexualidade, bem como rejeita qualquer método ou medicamento que, de alguma forma, impeça, vede ou obstacule a concepção. A supervalorização da virgindade de Maria, o título de Sempre Virgem Maria, exerce uma pressão subliminar dentro do catolicismo acerca da exclusão da sexualidade, sobretudo em relação às mulheres. Estas sempre foram mais tolhidas no seu comportamento, ao longo da história, diferentemente dos homens que, mesmo estando submetidos aos mesmos paradigmas sexuais, contudo sempre obtiveram maior tolerância neste aspecto. Só muito recentemente a Igreja Romana tem procurado mudar essa tradição, reconhecendo e atribuindo maior valor às mulheres e possibilitando a participação delas em órgãos oficiais do Vaticano. Até já se fala em ordenação de diaconisas e sacerdotisas, mas isso ainda depende da superação de barreiras milenares, o que deverá demandar muito tempo.
Pois bem. Quero deixar claro que as ideias apresentadas acima não significam que, da minha parte, haja qualquer restrição às verdades de fé proclamadas acerca de Maria. Eu não me coloco do lado dos não-católicos, que consideram Maria uma mulher como as outras, eu creio que ela foi especial, não tenho dúvidas disso. No entanto, sou honesto em admitir que o exagero devocional que a tradição cultural criou acerca da personalidade de Maria se põe como obstáculo a uma mais adequada vivência do cristianismo. Que Maria nos ensine a compreender essas verdades, dentro da mais autêntica dimensão da nossa fé.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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