sábado, 3 de fevereiro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5ª DOMINGO COMUM - 04.02.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO – 04.02.2024


Caros Confrades,


A liturgia deste 5º domingo comum nos convida a refletir sobre as enfermidades, tanto às doenças do corpo quanto às doenças do espírito. Nos dias de hoje, como no passado, é firme a convicção de que a máxima latina “mens sana in corpore sano” permanece em pleno vigor, na medida em que cada vez mais se descobre o quanto as preocupações e achaques mentais terminam por transformarem-se em enfermidades no corpo (somatização), causando aquelas doenças graves, de causas genéricas e de cura desconhecida, ou seja, se a mente não está sã, o corpo também não estará são. Hoje, muito mais do que no passado, os profissionais da área da saúde com frequência atestam que a fonte e a causa de grande parte dos males que acometem o corpo decorrem de perturbações de ordem mental e espiritual. Com o evento da pandemia recente e suas sequelas, o agravamento das doenças provocadas pelo estresse tem sido uma frequente causa de distúrbios nas famílias e de ausência do trabalho. É nesse ponto que a fé e a religião podem ter uma função importante no processo de cura.


Quado se fala em sofrimento, a figura emblemática que logo nos chega à lembrança é a de Jó, pois toda a tradição hebraico-cristã tem nesse personagem o protótipo do justo sofredor. Vários estudiosos da Bíblia colocam em dúvida a existência real e histórica desse personagem, que mais se assemelha a um protagonista de um romance de natureza didático-religiosa, em cuja figura o seu autor (ou seus autores, porque isso também é controverso) pretende desmistificar uma certa noção que havia naquela época acerca da doença e do sofrimento como castigo divino. O livro de Jó é classificado na Bíblia dentre os livros sapienciais e esses são os livros que colecionam os ditos e ensinamentos dos antigos sábios hebreus. A finalidade do livro de Jó é demonstrar que o sofrimento não é consequência do pecado, ou seja, não se deve correlacionar a ideia de que os pecadores sofrem por seus pecados e os justos não devem sofrer. Assim era a antiga crença hebraica. Então, a figura de Jó, o justo que sofre, perde tudo que possui e depois readquire tudo novamente, é o símbolo da pedagogia do sofrimento, isto é, da visão do sofrimento como um período de reflexão para nos levar a um estado de vida mais purificado e mais santificado.


Diz assim a primeira leitura: (Jo 7,2) “tive por ganho meses de decepção, e couberam-me noites de sofrimento. Se me deito, penso: Quando poderei levantar-me? E, ao amanhecer, espero novamente a tarde e me encho de sofrimentos até ao anoitecer.” Este trecho caracteriza muito bem a situação em que se encontra uma pessoa acometida de grave enfermidade crônica: a pessoa vê os dias se passando um após o outro e a sua situação não melhora. Parece que Deus se esqueceu dela. E a pessoa então se desmancha em queixumes e desesperanças, a vida torna-se um pesado fardo, algumas pessoas chegam a pedir a chegada da morte por não aguentarem tanto sofrimento. O livro de Jó ensinava os hebreus e continua a nos ensinar hoje a não cair no desespero diante das mazelas da vida, mas fortalecer a nossa fé através da oração confiante, porque Deus vela pelos que sofrem. A liturgia deste domingo procura exatamente chamar a atenção para esse fato de que o sofrimento é algo que faz parte da nossa existência humana e ainda conclama os cristãos a terem solidariedade para com os enfermos, visitando-os e orando com eles. E também sem esquecer de valorizar aqueles profissionais que trabalham na área da saúde e que estão em permanente contato com pessoas enfermas, para que não enxerguem o ser humano doente como se fosse uma máquina com defeito, mas estejam sempre conscientes e dispostos a praticarem uma medicina humanizada. Com tantos recursos tecnológicos utilizados atualmente no campo da medicina, muitas vezes os cientistas da área são levados a confundir os seres humanos com as máquinas que lhes auxiliam no seu trabalho, esquecendo que o corpo é templo de Deus e morada do Espírito Santo. Esse é o sentido que deve ter o cristão acerca da enfermidade e do sofrimento.


Na segunda leitura, da primeira carta de Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 9,16), ele comenta sobre as agruras suportadas por causa de sua missão de pregar o Evangelho: sem descanso, sem salário, sem reconhecimento, com perseguições, e mesmo assim, fazendo isso como uma necessidade interna que ele sentia. Por causa do Evangelho, ele se tornou um escravo de todos. O sofrimento a que Paulo se refere já não é tanto aquele decorrente de uma enfermidade corporal, mas decorre da sua própria missão e das preocupações associadas a ela. Diz ele (9, 18): “Em que consiste então o meu salário? Em pregar o evangelho, oferecendo-o de graça, sem usar os direitos que o evangelho me dá. ” Fico pensando em quais seriam esses “direitos” que o evangelho dá a ele e dos quais ele não usufrui. Suponho que seria a tranquilidade de estabelecer-se num certo local e dedicar-se aos fiéis daquela comunidade, assim como muitos líderes religiosos daquela época e de hoje fazem. Ao contrário, Paulo era aquele apóstolo itinerante, que não tinha um pouso nem uma morada. Cuidava de todas as igrejas, no entanto, não estava vinculado a nenhuma delas. Essa foi a sua opção para atender com fidelidade à missão de pregar o evangelho. Por isso, ele conclui no vers. 19: “Assim, livre em relação a todos, eu me tornei escravo de todos.” A preocupação com a pregação do evangelho era o sofrimento dele de cada dia.


No evangelho de Marcos (Mc 1, 29), vemos mais uma vez a intenção desse evangelista de mostrar o poder de Jesus, especialmente através da cura dos doentes e da expulsão dos demônios. Procurando entender essas expressões numa linguagem atual, poderíamos ler aí como se estivesse escrito a cura das doenças do corpo e do espírito. Conforme já foi mencionado em outros comentários, o entendimento daquela época acerca das doenças psicológicas era de que se tratava de possessão pelo demônio. O evangelista Marcos procura destacar o poder que Jesus tem sobre os males do corpo e do espírito devolvendo a saúde aos paralíticos e leprosos, mas também expulsando os maus espíritos e proibindo os demônios de falarem ao povo quem é Ele. Jesus está fazendo milagres em Cafarnaum, no início de sua missão. Começou curando a sogra de Pedro, que estava com febre e apenas com o toque da sua mão, a curou. A notícia se espalhou e logo a frente da casa de Pedro estava tomada por uma multidão de enfermos e pessoas “possessas”, pedindo para serem curados, e Jesus curou a todos.


Estes relatos do evangelista Marcos nos mostram a missão de Jesus como aquele que veio para retirar os sofrimentos das pessoas, corroborando aquele ensinamento já tratado no livro de Jó, acerca do sofrimento não como um castigo de Deus. Jesus veio mostrar o Pai como alguém que está ao lado dos que sofrem, para minimizar-lhes os sofrimentos, não para castigá-los ainda mais. Depois de curar os enfermos em Cafarnaum, Jesus quis ir com os discípulos para as cidades e aldeia da Galileia, a fim de ali também pregar sua palavra, pois para isso foi que ele veio. Essa imagem literária da ida às cidades e aldeias vizinhas significa o universalismo da doutrina cristã. Jesus demonstrou que Ele não deveria ficar só em um determinado lugar e as pessoas virem a ele, mas que Ele mesmo deveria ir aonde as pessoas estivessem passando por necessidades. A escolha da região da Galileia tem esse significado de universalismo, porque ali moravam pessoas oriundas das mais diversas regiões e nacionalidades. Foi esse exemplo de Jesus que o apóstolo Paulo seguiu, percorrendo o mundo de cidade em cidade e pregando o evangelho.


Há uma referência nesse evangelho de Marcos, que eu gostaria de destacar: a cura que Jesus faz da sogra de Simão, estando hospedado na casa deste (Mc 1, 30-31): “A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus. E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se. Então, a febre desapareceu.” Simão era casado e morava em Cafarnaum. O evangelho não refere que ele tinha filhos, o que não significa que não os tivesse. O evangelista faz referência à sogra de Simão assim de passagem, porque o interesse dele é mostrar o poder de Jesus para curar os enfermos, talvez por isso não entre em detalhes sobre os demais familiares. Assim como Simão, certamente outros discípulos também eram casados. Sabemos que Jesus não tinha uma moradia própria, mas hospedava-se nas casas dos amigos. Um local bastante conhecido para isso era a casa de Betânia, onde moravam os irmãos Marta, Maria e Lázaro, mas é bem possível que ele também se hospedasse em casa de algum outro discípulo. Ressalto isso para defender que não há incompatibilidade entre o discipulado e o matrimônio, que o celibato não foi uma imposição que Jesus fez aos seus discípulos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 20 de janeiro de 2024

COMENTARIO LITURGICO - 3ª DOMINGO COMUM - 21.01.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO 3º DOMINGO COMUM – O TEMPO OPORTUNO – 21.01.2024


Caros Confrades,


Na liturgia deste 3º domingo comum, as leituras se nos convidam a refletir sobre o tema do kairós ou do tempo oportuno. O tempo está chegando, diz o profeta Jonas. O tempo está abreviado, diz Paulo aos Coríntios. O tempo já se completou, diz Jesus aos galileus. Também para nós o tempo é constantemente objeto de preocupação. E por mais que nos pareça algo muito concreto, na verdade, o conceito de tempo é abstrato, está afeito à nossa sensibilidade. Falamos sempre do tempo como se fosse algo corpóreo, contudo, o tempo é apenas uma produção da nossa atividade psicológica, ou seja, é uma forma de conceituarmos essa sensação que captamos diante da evolução dos acontecimentos, numa corrente sucessiva. Para melhor controle, as pessoas aprenderam a medir o tempo, a quantificá-lo ou a dividi-lo em fatias (como diz o soneto de Drummond). Na língua portuguesa, o vocábulo “tempo” é polissêmico, por isso o utilizamos nas mais diversas situações, mas sabemos distinguir mentalmente o seu significado. A título de exemplo, no idioma grego, há duas palavras diferentes para falar do tempo: uma quando a referência é sobre os dias-meses-anos (chrónos) e outra quando a referência é algo indeterminado, um tempo simbólico (kairós), entendido aqui o tempo simbólico como a oportunidade, o momento apropriado, a hora certa de fazer algo, ou como dizem os teólogos, o tempo favorável. É neste último sentido que se deve compreender a alusão ao tempo na liturgia de hoje: o tempo favorável para a ação de Deus na história. Esse tempo não vem com data marcada, nós é que temos de encontrá-lo ou, se for o caso, construi-lo.


Na primeira leitura, o texto traz a lembrança da missão do profeta Jonas, em Nínive (Jn 3, 1-5). Deus mandara que ele pregasse ao povo de Nínive assim: Se não mudardes o vosso modo de vida, dentro de 40 dias, a esta cidade será destruída. O povo se converteu e Deus suspendeu o castigo que iria mandar. Nínive era a capital da Assíria, uma megalópole daquele tempo, talvez maior do que é Fortaleza nos dias de hoje, porque o texto afirma que eram necessários três dias para atravessar a cidade. Era um local de muitas perversidades, como em toda grande cidade. O profeta Naum chamara Nínive de cidade sanguinária, cheia de mentiras e de roubo (Na 3,1), por isso Javeh iria transformá-la num deserto. Mas com a pregação do profeta Jonas, o rei e os cidadãos ninivitas se converteram e fizeram penitência, assim o castigo foi evitado. Evidentemente, essa tarefa de Jonas não deve ter sido assim tão simples e de resultado imediato, conforme a descrição do texto, mas o que a liturgia quer destacar aqui é o tempo favorável, que os ninivitas reconheceram e souberam aproveitá-lo. A população da cidade dirigiu seus ouvidos à pregação do profeta e deu-lhe crédito. Devemos também considerar que havia ali um momento favorável, no sentido de que muitos dos habitantes da cidade ainda se recordavam da derrota do rei de Judá, Ezequias, para o rei de Nínive, Senaqueribe, e da humilhação sofrida pelo povo, por isso tiveram maior sensibilidade para ouvir o profeta.


Na segunda leitura, Paulo exorta os fiéis de Corinto para viverem o seu tempo favorável, cada um de acordo com o seu estado. (1Cor 7, 29-31) Contextualizando a leitura, nos versículos anteriores, Paulo fala sobre a vida dos casados, dos solteiros, das viúvas, dos escravos, dando conselhos a cada grupo para viverem na graça de Deus. A igreja de Corinto era uma comunidade fundada por Paulo e os coríntios entenderam a sua pregação como se a volta de Cristo fosse acontecer logo nos próximos dias. Alguns até não queriam mais nem trabalhar, deixaram tudo de lado só esperando a nova vinda de Cristo. Então, Paulo os adverte a viverem suas vidas cotidianas, na perspectiva da eternidade. Cada um fique no estado em que foi chamado. Quem quiser ser como ele Paulo, que era celibatário, ele acha melhor, mas quem não conseguir viver assim, que procure um cônjuge, porque é melhor casar-se do que abrasar-se (7, 9). Sinceramente, eu não entendo por que a Igreja Católica não segue o conselho de Paulo e continua a exigir dos sacerdotes o celibato obrigatório. Além disso, a tradução oficial da CNBB não reproduz bem o sentido do texto paulino. Diz 'o tempo está abreviado', mas no texto latino, Paulo diz: 'tempus breve est', expressão que, a meu ver, não tem o mesmo sentido. A tradução melhor seria “o tempo é breve”, isto é, passa muito rápido. Tempo abreviado dá um sentido de encurtado, diminuído e não me parece que seja este o sentido expresso no texto paulino. O tempo breve nos conduz à consciência de que é preciso viver com os pés no hoje, mas com os olhos no futuro, porque nós não somos deste mundo e a nossa estadia aqui é passageira.


Na leitura do evangelho de Marcos (1, 14-20), temos a narrativa do chamado dos primeiros apóstolos: Pedro, André, João e Tiago. De acordo com este evangelista, Jesus teria chamado os quatro na mesma ocasião, mas se observamos o evangelho de João, lido no domingo passado, acerca do chamado de Pedro, veremos que não foi bem assim. No texto de Marcos, Jesus estava passeando pela beira do mar da Galileia e viu Simão e André, seu irmão, e os chamou. No texto de João (1, 42), ele diz que André era discípulo de João Batista e viu quando este falou sobre Cristo: eis o Cordeiro de Deus, então André passou a segui-lo e depois apresentou a Ele seu irmão Simão. Não devemos, porém, concluir com isso que o texto de Marcos seja impreciso ou incorreto. Como sabemos, no tempo de Cristo não havia jornalistas documentando fatos nem havia escribas acompanhando seus passos e registrando suas atividades. Ora, o evangelho de Marcos, cronologicamente o primeiro a ser escrito, deve ter sido redigido pelo menos uns 40 anos antes do evangelho de João. Além disso, Marcos não foi testemunha ocular, mas utilizou-se da tradição oral e de textos esparsos que circulavam nas comunidades da região onde ele vivia, os quais por sua vez foram escritos a partir de tradições orais, histórias que passavam de boca em boca entre os primeiros cristãos. Por outro lado, João foi testemunha viva daqueles fatos e escreveu a sua própria experiência, não por ouvir dizer. Marcos e João escreveram em locais distantes entre si e servindo-se de fontes diferentes, de modo que o texto de João, até por ter sido escrito bastante tempo depois, é mais elaborado, mais pesquisado, mais coerente. Apesar das divergências, o que verdadeiramente importa não é se foi na beira do mar, como disse Marcos, ou num lugar qualquer da Galiléia, como disse João, mas o que interessa é que eles atenderam ao chamado, eles aceitaram a proposta de Cristo para mudarem de vida e em vez de ser pescadores de peixes, passaram a ser pescadores de gente. Cada um deles teve o seu tempo favorável de ouvir o chamado e aceitar a missão que lhes foi confiada.


O evangelho de Marcos lido neste domingo também faz referência ao início das atividades públicas de Jesus, o que ocorreu após a prisão de João Batista. Alguns domingos atrás, quando comemorou-se o batismo de Jesus, João Batista dizia ao povo que, após ele, viria alguém de quem ele não seria digno de desamarrar as sandálias. Então, a prisão de João Batista foi o tempo favorável para o início da missão profética que Jesus veio realizar. Jesus não iria fazer concorrência com João Batista, até porque este foi o agenciador da chegada d'Aquele, por isso não seria oportuno que ambos atuassem simultaneamente. Essa oportunidade chegou quando João Batista saiu de cena, abrindo-se o espaço para o anúncio da “boa nova”. E um detalhe significativo é que Jesus começou suas pregações na Galiléia, não foi em Jerusalém, a grande cidade da época. Por que na Galiléia? Porque aquela região era habitada por pessoas de diversas origens étnicas e de diversas nacionalidades. Isso teria ocorrido porque a população primitiva daquela região teria sido levada, em sua maior parte, cativa para a Babilônia e a terra ficou desabitada, passando a ser ocupada por pessoas nômades de outras tribos, durante o tempo em que os hebreus permaneceram no cativeiro. Com o retorno do povo hebreu libertado, os novos habitantes se relacionaram bem com aqueles e por esse motivo o local era um misto populacional de diversas origens, razão porque era chamada de Galiléia das Nações. Então, Jesus escolheu iniciar a pregação do reino de Deus exatamente num local em que a população, além de ser pobre, não era constituída exclusivamente de hebreus, demonstrando logo no início o destino universal dos seus ensinamentos. É essa igreja dos pobres que o Concílio Vaticano II destacou em seus documentos, diferentemente daquela igreja elitizada, como ela passou a ser a partir do seu envolvimento com os imperadores romanos e com os senhores feudais da Idade Média. Esse é o sentido da “opção preferencial pelos pobres”, que tanto o Concílio quanto os documentos oficiais posteriores pretendem resgatar, o que deu origem à doutrina muitas vezes mal entendida e não poucas vezes deturpada chamada “teologia da libertação”.


Esta mensagem acerca do tempo favorável, do momento e da oportunidade nos convida a estar sempre atentos aos “sinais dos tempos”, sempre reavaliando nosso modo de ser, pois Deus está se manifestando a nós de diversos modos nos acontecimentos e às vezes nós não percebemos e deixamos passar aquela oportunidade de praticar o bem.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 14 de janeiro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2ª DOMINGO COMUM - 14.01.2024

 

COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – A VOCAÇÃO – 14.01.2024


Caros Confrades,

Passado o tempo do natal, a liturgia católica retoma o tempo comum e neste 2º domingo comum, o tema litúrgico é o chamado ou a vocação de cada um. A nossa vocação está associada à nossa missão, ao nosso objetivo de vida. Cada pessoa possui certas habilidades e tendências inatas, próprias do seu caráter e da sua personalidade, que orientam sua ação na sociedade, de modo que realizar a própria vocação corresponderá a descobrir esses talentos que Deus nos dá em maior abundância e fazer uso deles para o maior bem de nós mesmos, dos irmãos, da sociedade, do reino de Deus, para cujo desenvolvimento nós somos convocados a colaborar. A vocação requer escuta e compromisso. Escuta para que cada pessoa possa identificar o que Deus espera dela. Compromisso para que cada um assuma a sua missão com honestidade e com firmeza, na certeza de que a graça divina não deixará de lhe favorecer.


Na primeira leitura litúrgica, retirada do livro de Samuel (3, 10-19), lemos a vocação deste sacerdote e profeta, quando recebeu o primeiro chamado de Javeh. Ele era ainda um jovem e neófito no templo, nunca havia tido contato com o Senhor e por isso não identificou, de início, quem o estava chamando e apresentou-se ao sacerdote Eli, na suposição de seria ele o autor do chamado. Somente depois de ouvir algumas vezes a voz de Deus, instruído por Eli, Samuel conseguiu identificar a origem do chamamento. Isso também pode acontecer conosco, embora, muitas vezes, já não sejamos jovens de idade como o Samuel da leitura, mas nem sempre conseguimos ouvir ou identificar com clareza o chamado que nos chega da parte de Deus. Este chamado em geral não é assim tão nítido e insistente, como aconteceu com Samuel, às vezes, ele é sutil e delicado, como é o caso de quando vem através da voz do irmão necessitado, do próximo que pede a nossa ajuda, por exemplo. Tempos atrás, nós fomos conduzidos até o Seminário, por termos ouvido um “chamado divino” através dos nossos pais, parentes, sacerdotes ou através de situações marcantes, que nos impulsionaram até lá. O fato de termos saído do seminário não significa que nós renunciamos a seguir o chamado, mas apenas que Deus nos mostrou outras alternativas e nos deu outras oportunidades para servi-Lo, que não através da vida religiosa consagrada. Cada um prossegue no atendimento ao chamado, contribuindo para a maior glória de Deus nas tarefas do dia a dia como cidadãos, dando aos irmãos exemplos de vida pessoal e profissional, na fidelidade do seguimento do evangelho de Cristo.


É interessante observarmos que Javeh chamou Samuel enquanto ele dormia. No Antigo Testamento, há diversos exemplos de casos em que Javeh fala diretamente com alguém, não se servindo de um intermediário, um portavoz. E a metodologia dessa mensagem com frequência está associada ao sonho. Era comum que as pessoas escolhidas por Javeh recebessem mensagens divinas através de sonhos. Há vários exemplos na escritura sagrada sobre os sonhos dos “navis” (profetas), que eram uma espécie de revelação que eles recebiam de Deus, assim como aconteceu com Samuel. A palavra “profeta” surgiu na tradução da escritura para a língua grega, quando a palavra hebraica “navi” foi traduzido por “prophaités”, palavra esta derivada do verbo grego “phainow” (falar), então o profeta é aquele que fala em nome de alguém. No Antigo Testamento, o “navi” trazia um recado de Javeh, o qual ele havia recebido geralmente através de um sonho, daí porque foi traduzida por “pro-phaités”. Visto que, no mais das vezes, os fatos abordados se referiam a eventos futuros, gerou-se uma tradição de que profeta é aquele que é capaz de prever acontecimentos, como se fosse um adivinho, sendo esse o significado semântico mais usual. Na verdade, “profetas” somos todos nós quando, através das nossas atitudes, nossas palavras e nosso testemunho demonstramos para os irmãos a nossa característica de cristãos e, mesmo sem proferir discursos ou pregações, somos eloquentes no agir e no fazer.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 6, 13-20), o Apóstolo aborda a vocação matrimonial, advertindo os cristãos de Corinto para não se envolverem com as prostitutas sagradas do templo de Diana, mantendo a fidelidade com os respectivos cônjuges, pois o homem que se une a uma prostituta faz do seu corpo um só com o corpo dela (6, 16) e isso contradiz a união espiritual que o cristão tem com o Senhor. Por isso, diz Paulo: fugi da fornicação. “Ou ignorais que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que mora em vós e que vos é dado por Deus? E, portanto, ignorais também que vós não pertenceis a vós mesmos? De fato, fostes comprados, e por preço muito alto, ” (6, 19-20) ou seja, com a paixão e morte de Jesus. Portanto, continua, usem o seu corpo para a glória de Deus. É mais adiante, nessa mesma carta (cap. 13), que Paulo escreveu o seu belíssimo poema sobre o amor cristão, que é muito conhecido e repetido, e que começa com essa bela comparação: “Eu poderia falar todas as línguas que são faladas na terra e até no céu, mas, se não tivesse amor, as minhas palavras seriam como o som de um gongo ou como o barulho de um sino.” A vocação matrimonial é, talvez, o maior desafio que se coloca para os seres humanos (homem e mulher), quando firmam um compromisso de vida em comum por toda a existência, o que só pode ser conseguido com a assistência permanente da graça divina.


Na leitura do evangelho de João (1, 42), vemos a narração do chamado especial de Cristo dirigido a Pedro. Pelo que se deduz da narrativa joanina, André era discípulo de João Batista e passou a seguir a Cristo, depois que João O identificou como “Cordeiro de Deus”. Após passar um dia na companhia de Jesus, André foi convidar seu irmão Simão para tornar-se também um seguidor, dizendo “encontrei o Messias”. Logo que Simão foi apresentado por André a Jesus, este foi logo dizendo: teu nome é Simão, mas serás chamado Kéfas. Este trecho do evangelho é marcado por digressões explicativas, pelo que se deduz que João escrevia para pessoas que não entendiam as palavras em hebraico. Ele explica que Rabi significa mestre, que Messias significa Cristo e que Kéfas significa pedra.


Observemos alguns aspectos interessantes da análise do vocábulo KÉFAS. No próprio texto do evangelho (1,42), o evangelista João se preocupa logo em traduzir “kéfas”. Lembremo-nos que o evangelho de João foi escrito por volta do ano 100 d.C. e nessa época a figura de Pedro já estava consolidada como chefe da Igreja. No texto latino, diz assim: quod interpretatur Petrus - Petrus está escrito com letra maiúscula (tradução literal: que se interpreta como Pedro). A palavra Kéfas não é grega, mas aramaica, uma variação do hebraico falada por moradores da Galileia, onde estava Cristo. Segundo a internet, kéfas em aramaico significaria 'rochedo esburacado'. Por isso, João disse que Kéfas se interpreta como Petros, ele não disse que era sinônimo de pedra. E João fez isso cerca de 30 anos após a morte de Pedro, certamente lembrando a passagem de Mateus (13, 18). Apenas para recordar, o evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico e só depois traduzido para o grego. Portanto, deduz-se que foi através desta passagem de Mateus (13,18 - tu es Petros e sobre esta Petra edificarei a minha igreja)  que a palavra kéfas foi introduzida no idioma grego e deste, transferida para o latim.


Um outro aspecto também interessante da palavra kéfas é que, por não ser grega nem latina, ela foi simplesmente transliterada nos dois idiomas - quero dizer: tanto em grego como em latim, foi copiada a sua pronúncia do aramaico. Mas por uma feliz coincidência, kéfas contém a primeira parte da palavra grega kefalé, que significa 'cabeça', então o chamado de Pedro foi especial porque Jesus o colocou, ao mesmo tempo, como fundamento e como cabeça do grupo. Esse é um polêmico ponto de divergência entre a Igreja Católica ocidental e a oriental, questão que vem se arrastando por vários séculos e que o Papa Francisco está cuidadosamente tentando superar, já tendo realizado diversas visitas e conversas com as Igrejas Orientais, em busca da unidade eclesial. A diferença no tratamento do problema está em que os Papas anteriores se apresentavam como “chefes” a quem todos deveriam manifestar obediência. No caso do Papa Francisco, ele se apresenta como um irmão que tenta reatar os laços de fraternidade com outros irmãos. E isso mesmo ele faz também em relação às outras religiões não cristãs, como o judaísmo e o islamismo, cumprindo a previsão de Cristo de que todos formariam um só rebanho e teriam um só pastor. Esta é a vocação especial que Cristo reservou para ele.


Nesse contexto, cada um de nós é convidado a refletir de que modo, nas nossas vidas, na familia, no trabalho, no lazer, no estudo, na educação dos filhos, na vida social em geral nós prosseguimos com sinceridade sendo fiéis ao chamado que nos foi dirigido por Deus.


Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos

sábado, 6 de janeiro de 2024

COMENTARIO LITURGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 07.01.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 07.01.2024


Caros Confrades:


Celebramos, na liturgia deste domingo, a festa da Epifania do Senhor, palavra que em grego significa ¹manifestação¹, isto é, a revelação de Jesus aos povos não judeus, na visita dos Magos. A tradição popular sempre se refere a três Reis Magos, porém não há evidências de que eles eram reis e nem de que eram três. O evangelho de Mateus fala apenas que “alguns magos” vieram do Oriente. Talvez pela alusão aos três presentes ofertados, deduziu-se que eram três, no entanto, os presentes fazem parte do simbolismo que o evangelista quis atribuir à pessoa do Messias, a luz das nações. E ainda a expressão “magos” não se vincula à magia, no sentido que hoje se atribui a essa palavra, mas ao fato de que eles seriam estudiosos dos fenômenos cósmicos, a ciência dos astros, algo que no passado se chamava de astrologia, isto é, o conhecimento adquirido através do estudo dos corpos celestes. E foi assim que eles observaram um incomum alinhamento dos planetas e compreenderam que aquilo era o sinal de um grande evento, combinando esse fato com alguns oráculos antigos. A Epifania do Senhor designa a universalidade da salvação trazida por Cristo, isto é, a sua manifestação aos pagãos, aos povos não pertencentes ao povo de Israel. A vinda de Jesus interessa ao mundo todo, não só aos judeus.


No passado, Javeh estabelecera uma aliança com o líder de um povo determinado e fizera-lhe promessas de se disseminarem por toda a terra. No modo de pensar daquele tempo, eles entenderam isso pela ótica da materialidade e da genealogia, contudo, com a chegada do Messias, a promessa se cumpriu e não foi pela trilha da genética e da hereditariedade cromossômica, mas seguiu a rota da vocação à santidade, oferecida a todos os povos, através do evangelho. A presença dos magos vindos do Oriente é o primeiro sinal da universalidade da salvação trazida por Cristo, mesmo antes que os fatos concretos da redenção tivessem ocorrido. O texto bíblico não informa de que cidade eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. O evangelho fala somente que os 'magos' seguiram a estrela, a qual lhes teria indicado o local onde encontrariam Aquele de quem as profecias antigas faziam menção. Sim, eles eram pessoas de fé e de ciência, numa época em que essas duas realidades se confundiam numa só. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e praticada na região da Babilônia, que hoje corresponde ao Irã. Para os propósitos do evangelista Mateus, não interessa efetivamente quem eram nem mesmo se eram aquilo, pois o objetivo é mostrar que o Messias, em primeiro lugar, é aquele a quem os profetas mais antigos se referiram e, em segundo lugar, que a sua vinda não se restringia a um determinado povo ou a pessoas de uma determinada região geográfica, mas alcançaria também gentios e pagãos, realizando a promessa divina de um modo novo e inesperado.


Na primeira leitura, do livro de Isaías (60, 1-6), aparece claramente o sentido da universalidade do Messias, quando o Profeta se refere a Jerusalém como um local onde se congregam povos de diversas origens: “Os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão de tua aurora. Levanta os olhos ao redor e vê: todos se reuniram e vieram a ti.” Jerusalém já não é mais a capital apenas do povo hebreu, mas de todas as nações. “Com eles virão as riquezas de além-mar e mostrarão o poderio de suas nações”, desse modo, o Profeta vaticina a transformação de Jerusalém numa cidade onde haverá a confraternização de todos os povos, pois eles se dirigem a ela não com o objetivo de domínio ou de fazer negócios, mas para proclamar a glória do Senhor. Na figura alegórica do Profeta, vislumbra-se a Jerusalém de Judá como a antecipação da Jerusalém celeste, ou seja, a Igreja de Cristo, que se estenderá a todos os povos e a todos os lugares. E se existirem povos inteligentes em outros planetas e em outras galáxias (afirma-se que somente na Via Láctea existem 36 planetas similares à terra), também para eles se destina a missão dada por Cristo: “ide e ensinai a todos os povos”. Da mesma forma que, até a Idade Média, quando não se conheciam as terras do continente americano, pensava-se apenas no mundo europeu, mas logo que se descobriram outras paragens, os missionários trouxeram a mensagem cristã para a nossa região, assim também, quando novas comunidades intergalácticas de seres inteligentes forem encontradas, competirá a nós a tarefa de missionar as novas regiões, cumprindo o mandamento de Cristo.


Vemos, na carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), um testemunho interessante do Apóstolo acerca do “mistério” que lhe foi comunicado por revelação, qual seja, “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Ora, o próprio Paulo não conheceu pessoalmente a Jesus Cristo, não ouviu Seus ensinamentos, não participou do processo pedagógico do grupo de galileus, aos quais Jesus tentou ensinar, durante três anos, a sua mensagem, a sua “nova lei”, recebendo o ensinamento de um modo todo próprio: por revelação.. Ele próprio, Paulo, era um judeu da diáspora, semelhante a um gentio, e a revelação que ele recebeu de Cristo diz respeito exatamente ao fato de que a salvação não está restrita ao povo da antiga aliança, isto é, os pagãos também são chamados para fazerem parte do povo de Deus. Foi isso que os fariseus nunca entenderam na pregação de Jesus, foi por isso que não o reconheceram como o Messias, porque pensavam a salvação apenas em termos nacionalistas e étnicos, porque liam as escrituras de uma forma meramente literal e fechada e isso os impedia de ver, no texto sagrado, um novo sentido mais amplo e mais flexível. Paulo recebeu esses ensinamentos por revelação e tratou de transmiti-los através da sua pregação, do seu exemplo, dos seus escritos, da sua própria vida, devotada ao evangelho. A só presença de Paulo e a sua atividade missionária comprovam essa nova dimensão da antiga aliança, ensinada por Cristo. O evangelho de Mateus fala dos magos vindos do Oriente; as cartas de Paulo se destinam aos gentios do Ocidente; a junção das duas perspectivas nos dá a dimensão maior da envergadura que comporta a mensagem cristã.


Sobre a leitura do evangelho (Mt 2, 1-12), é curioso observar que nem Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”, sobretudo Lucas, que foi o evangelista portador dos maiores detalhes particulares da infância de Cristo. É de se imaginar que a visita de “magos” vindos do estrangeiro nos primeiros dias após o nascimento de Jesus devia ter sido um fato importante, no entanto, Lucas não obteve essa informação. Ademais, se fizermos as contas, a provável chegada desses magos teria encontrado o Menino Jesus já com alguns meses de idade, considerando que a visão da “estrela” teria ocorrido no nascimento e considerando a distância de onde eles se encontravam, uma viagem no lombo de camelos deveria demorar pelo menos uns três meses até Belém. Provavelmente, os magos tiveram de ir até Nazaré para ver o menino. Como se vê, existem muitas incongruências envolvendo essa narrativa da vinda dos magos, de modo que nunca se saberá com certeza o que há de realidade nesses fatos e por isso, mais uma vez, fica evidenciado que não se deve ler e interpretar a Bíblia de forma literal. Mas visto que os evangelhos não são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a doutrina da universalidade da salvação.


O evangelista Mateus tem um propósito deliberado de demonstrar que Jesus é o Messias prometido, aquele de quem falam as profecias. Ele faz todo um esforço para compor a narrativa, unindo os fatos com os textos proféticos, harmonizando-os e integrando-os. Daí que ele vai buscar um texto antigo do profeta Miquéias (Mq 5, 2) e o insere no contexto do diálogo de Herodes com os “magos”, quando os sacerdotes e doutores da lei revelaram a cidade de Belém como a terra natalícia do Messias. Diz o Profeta: “E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que governará em Israel.” O codinome “efrata” associado a Belém, de acordo com os estudiosos, é uma referência aos descendentes de Efraim (os efratas), que teriam sido os fundadores da cidade. Efrata era também o nome da esposa de Caleb, um dos líderes do povo de Israel, juntamente com Josué, após a morte de Moisés. De acordo com a tradição judaica, Efrata seria um nome correspondente a Míriam, que é o nome original de Maria, a mãe de Jesus. Gramaticalmente, “efrata” é também um substantivo que significa “terra frutífera”, terra boa de plantar. Por sua vez, a palavra Belém (em hebraico, bait +lehem=casa do pão) indica um local de grande fartura, onde existe alimento em abundância. Verifica-se, desse modo, um grande acúmulo de simbologias, cada qual mais interessante, associado à cidade de Belém, as quais a qualificam como um local privilegiado. Daí porque o Profeta diz que, embora pequena cidade, ela não é menos importante do que as maiores, porque dela sairá aquele que irá governar Israel. Vê-se, com isso, que o evangelista Mateus era também um profundo conhecedor das antigas escrituras.


Meus amigos, no meio de tantas informações, nem sempre coerentes, o que nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou.


Renovados votos de Feliz Ano Novo e cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 16 de dezembro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3ª DOMINGO DO ADVENTO - 17.12.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – O ÚLTIMO PROFETA – 17.12.2023


Caros Confrades,


Na liturgia deste 3º domingo do advento, o tema predominante é o refrão “Alegrai-vos, Ele está bem perto”, sendo por isso denominado o domingo “laetare” (alegrar-se). No evangelho, os fariseus questionam sobre a identidade de João Batista, porque multidões a ele acorriam: “quem és tu, afinal?”, perguntavam-lhe. E ele, humildemente, negava ser o Messias ou um profeta, definindo a si próprio como “a voz que clama no deserto”. Porém, Jesus irá dizer dele, em outra ocasião (Mt 11,11) que João Batista é muito mais do que um profeta e, dentre os nascidos da raça humana, ninguém é maior do que ele. Com efeito, João Batista foi o último profeta, aquele que anunciou que o Messias já está no meio de nós. Com o Batista, encerrou-se o ciclo do Antigo Testamento, pois o Novo já estava chegando.


A primeira leitura, do profeta Isaias (61, 1-11), contém aquela passagem que está repetida em Lucas (4, 18), quando Jesus foi convidado para fazer a leitura na sinagoga de Nazaré e se autodeclarou para os presentes de forma inequívoca: este, de quem o profeta fala, sou eu. O trecho é o seguinte: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para dar a boa-nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos; para proclamar o tempo da graça do Senhor.” (Is 61, 1) Quando Jesus foi convidado para fazer a leitura na sinagoga, em Nazaré, onde ele comparecia aos sábados, como todos os bons judeus, Ele escolheu propositalmente esse trecho de Isaías e, ao final, completou: hoje se cumpriu aquilo que foi dito pelo profeta. Jesus havia há pouco iniciado suas pregações e aquela era a primeira vez que ele ia a Nazaré, sua terra natal, após o início de sua vida pública. Ao proclamar-se abertamente que Ele era o ungido, os nazareenses presentes na sinagoga ficaram se entreolhando e se perguntando: mas, esse não é o filho de José? Não foi ele que vimos nascer e crescer aqui? (Lc 4, 22) Ou seja, entre surpresos e incrédulos, os habitantes de Nazaré não souberam reconhecer naquele “filho do carpinteiro” o Messias, filho de Deus, fato que levou Jesus a dizer: nenhum profeta é bem recebido na sua pátria (Lc 4, 23), o que deixou aqueles seus conterrâneos irritados, a ponto de quererem lançá-lo do precipício. A escolha desse trecho para a leitura demonstra o quanto Jesus era conhecedor das escrituras, em especial, do profeta Isaías, o seu livro predileto.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Tessalonicenses (1Ts 5, 16-24), o Apóstolo exorta os cristãos daquela cidade a estarem preparados para a vinda de Cristo, afastando-se de toda maldade. Estai sempre alegres e rezai sem cessar, recomendava Paulo. O conselho dele acerca da alegria na espera do Senhor está em sintonia com o tema deste terceiro domingo: a alegria da espera. Falando aos peregrinos presentes no Vaticano, o Papa Francisco assim comentou essa carta de Paulo: “Neste terceiro domingo, a liturgia nos propõe outra atitude interior para viver a espera do Senhor, ou seja, alegria. Mais uma vez São Paulo na liturgia de hoje nos indica as condições para ser "missionários da alegria": orar sem cessar, sempre dar graças a Deus, seguir o seu Espírito, buscar o bem e evitar o mal. Nunca se ouviu falar de um santo triste ou de uma santa com cara fúnebre, nunca se ouviu, seria uma contradição.” (sermão publicado no site www.zenit.org)


Essa afirmação do Papa me faz lembrar uma frase que o Frei Higino costumava repetir: um frade triste é um triste frade. São Francisco era o protagonista da alegria, isso está documentado nos escritos dos seus contemporâneos. A vocação cristã não é um convite à tristeza e ao isolamento, pelo contrário, é como disse o Papa, uma convocação para sermos missionários da alegria. Em outro trecho do seu sermão, o Papa diz assim: “Não é só uma alegria esperada ou deslocada para o paraíso, ‘aqui na terra estamos tristes, mas no paraíso estaremos alegres’, não, não é isso. Mas, de uma alegria já real e que já é possível sentir agora, porque o mesmo Jesus é nossa alegria, é nossa casa.” O paraíso não é uma situação futura, mas uma realidade que já se faz presente. Nesse contexto, aquela narração bíblica da “queda” de Adão e Eva deixa de ter um sentido de perda para adquirir um significado de conquista. Nós não fomos expulsos do paraíso, nós estamos a caminho de lá e a simples expectativa da chegada ali já nos deixa alegres. O reino de Deus, que Jesus veio anunciar, é uma experiência antecipada, na vida terrena, daquilo que nos está prometido para uma vida futura. Ou seja, nós não precisamos esperar que isso aconteça algum dia, pois pelo batismo, nós fomos colocados no umbral do paraíso e já podemos antever o que ocorre naquela dimensão transcendental.


No evangelho de João (Jo 1, 6-28), lemos um episódio em que os enviados dos fariseus vão até João Batista a fim de indagarem sobre a sua identidade. A fama de João Batista se espalhara na região e os líderes judeus queriam certificar-se de quem era ele e, para isso, mandarem mensageiros a indagar-lhe. Quem és, afinal, para que possamos informar os que nos enviaram? João Batista, então, serviu-se das palavras do profeta Isaías para falar de si próprio: eu sou a voz que clama no deserto – aplainai os caminhos do Senhor. E ao afirmar que ele não era o Messias, acrescentou que “no meio de vós, está aquele que virá depois de mim”, isto é, eu não sou o Messias, mas Ele já está no meio de vós. João tinha consciência plena da sua missão preparatória, conforme ele mesmo proclamou em outra ocasião: é preciso que Ele cresça e eu desapareça. (Jo 3, 30) Ou como ele diz no evangelho de hoje: eu não sou digno nem de desamarrar as correias das Suas sandálias. (Jo 1, 27)


Os fariseus estranharam, porque João batizava sem ser um profeta. Aqui, podemos considerar dois aspectos. Primeiro, Jesus mesmo disse que João era mais do que um profeta. Etimologicamente, a palavra “profeta” deriva do grego “pro+fainô”, isto é, falar por alguém, falar em nome de alguém. Essa palavra surgiu, portanto, com a tradução da escritura hebraica para a língua grega, conhecida como a tradução dos Setenta ou Septuaginta. A palavra correspondente, em hebraico, é NAVI (ou NABI), que significa “aquele que tem uma antevisão dos fatos”, o que ocorria geralmente com as manifestações de Javeh em sonhos para certas pessoas. Então, João Batista era mais do que isso, porque ele não falava em nome de alguém, mas em nome próprio, porque ele foi a primeira testemunha da chegada do Messias; e ainda porque ele não recebera nenhuma antevisão através de sonhos, como acontecera com os profetas anteriores. Os teólogos consideram João Batista o último profeta do Antigo Testamento, e de fato, ele foi um profeta especial, um profeta-testemunha, enquanto os outros eram apenas porta-vozes. A maior profecia de João Batista, na verdade, a sua maior revelação, foi a de dizer para aqueles que iam ouvi-lo na margem do Jordão, onde ele batizava: o Messias já está no meio de vocês.


Um outro fato a merecer destaque era o batismo trazido por João, donde lhe advém o cognome de Batista. Os outros profetas não batizavam. Os judeus ficaram intrigados com isso. Como é que ele batiza e nem profeta ele é. De fato, os judeus praticavam um ritual (tevilah) de purificação com água, que era adotado sobretudo pelas mulheres, após o ciclo menstrual ou após o parto, para poderem novamente frequentar a sinagoga. João utiliza esse ritual, dando a ele um significado novo, a “tevilah” de arrependimento, a mudança de vida, preparando o caminho para a chegada do Messias. O ritual feito por João era praticado através da imersão do corpo todo no rio, significando que ao emergir, o fiel estaria renascendo, abandonando a sua vida de pecados para reviver purificado. Jesus também se submeteu a esse ritual, conforme sabemos pelas narrativas evangélicas, embora Ele não necessitasse de arrependimento. Mas o fato de Jesus ter-se associado a esse ritual é uma amostra de que Ele estava aprovando aquilo e reconhecendo o valor daquele rito simbólico. Com a tradução pra o grego, a palavra hebraica “tevilah” passou para “baptizô” (ou baptismô), que significa também lavar, derramar, aspergir, tendo essa palavra grega assumido todos os significados da “tevilah” hebraica, inclusive as abluções que os judeus faziam (lavagem das mãos) antes das refeições. João deu um significado mais amplo e profundo para a “tevilah” (ou baptismô), que deixou de ser um ritual simples e repetitivo para tornar-se uma atitude única de mudança de comportamento, de assunção de um novo modo de vida, de maneira que não haveria mais necessidade de ser repetido. Aqui está mais uma razão para ele ser considerado o último profeta e “mais do que um profeta”, porque depois dele, não haveria mais nenhum outro, e sim a manifestação do próprio Deus, em Jesus Cristo.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 9 de dezembro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DO ADVENTO - 10.12.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – NOVOS CÉUS E NOVA TERRA – 10.12.2023


Caros Confrades,


Neste segundo domingo do advento, a liturgia destaca o tema da consolação, através da palavra de conforto do profeta Isaías ao povo no cativeiro, informando que o tempo do castigo terminou, é hora de preparar o retorno a Jerusalém. O tempo litúrgico do advento nos convida a essa preparação do espírito não para a volta do exílio, mas para a chegada daquele que vem. O evangelho de Marcos destaca a importância do papel de João, o Precursor, conclamando o povo para o batismo da conversão, em preparação da chegada daquele que haveria de vir. Os temas da primeira e da terceira leituras se coordenam perfeitamente, repetindo a mensagem do pregador do deserto, profetizado por Isaías.


A primeira leitura retirada do profeta Isaías (Is 40, 1-11) nos convida a vivenciar o tempo do advento na alegria da espera da nossa libertação: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas.” Esse trecho é bastante conhecido, porque ele foi retomado por João Batista, quando pregava o batismo de penitência, nas margens do rio Jordão. Os apelos do profeta e do precursor continuam ressoando nos nossos dias, quando a liturgia nos põe outra vez no início da trajetória da história da nossa salvação, com a expectativa da vinda do Salvador. O profeta Isaías é aquele que melhor antecipou os acontecimentos relacionados com a chegada do Messias, o Libertador: “eis que o Senhor Deus vem com poder, seu braço tudo domina: eis, com ele, sua conquista, eis à sua frente a vitória.” Embora a mensagem do Profeta se referisse, no contexto histórico imediato, ao final do cativeiro da Babilônia, na perspectiva transistórica, a mensagem de consolação e de libertação se prolonga nos nossos dias, visto que a salvação prometida não é ato de um dia só, mas um processo contínuo de aperfeiçoamento da humanidade, em busca de novos céus e de nova terra.


Esse conceito de “novos céus e nova terra” está na segunda carta de Pedro, lida na liturgia de hoje (2Pd 3, 8-14). Como todos sabemos, Pedro não era nenhum intelectual, ao contrário, era de poucas letras, pois fora criado à margem do Lago de Genesaré, onde se dedicava ao ofício da pesca profissional, quando recebeu o chamado de Jesus. Estima-se que as cartas de Pedro foram escritas por Marcos, que era discípulo dele e o acompanhava. Diferentemente de Paulo, que escrevia aos gentios, isto é, aos povos pagãos, que não conheciam a tradição judaica, Pedro escrevia para uma comunidade de Judeus, daí porque ele não precisava explicar muitas coisas, pois os seus leitores já conheciam. No trecho dessa leitura, Pedro repete duas imagens que são recorrentes nos evangelhos sinóticos: o dia do Senhor virá como um ladrão e o cataclismo da precipitação dos céus para a terra, causando um grande incêndio que destruirá tudo. Devemos nos lembrar também que as cartas de Pedro foram escritas bem antes dos evangelhos, portanto, não se pode dizer que ele copiou esse assunto da leitura dos evangelhos, mas sim, o oposto, isto é, Pedro referiu-se a esses por primeiro.


Já tive oportunidade de me manifestar acerca desses eventos escatológicos desastrosos, em comentários anteriores, não sendo o caso de retomá-los aqui. Nesse contexto, importa destacar que Pedro se refere à promessa divina de que, no futuro, surgirão novos céus e nova terra, onde habitará a justiça. Pode-se deduzir, então, que essa imagem da destruição não deve ser compreendida no sentido físico, geocósmico, mas no sentido da destruição do pecado e da injustiça, para cederem lugar à justiça que vem de Deus. É interessante observarmos o uso do termo no plural: “novos céus” (no original grego, kainoús dé ouranoús), enquanto “terra” está no singular. Isso deve significar que Pedro acreditava na tradição judaica acerca da existência de sete céus (o primeiro, chamado Vilon, seria o local onde originalmente moravam Adão e Eva, de onde eles “caíram” para a terra; a este primeiro, seguiam-se outros até chegar ao sétimo céu, que seria propriamente a morada de Deus). Dessa concepção, parte a ideia de que os céus “cairão” sobre a terra, porque essa era a noção geográfica daquela época. Visto que Pedro escrevia aos judeus, ele não precisava explicar com detalhes o que seriam esses céus, que seriam renovados. Referindo-se à terra (no original grego, gen kainen), aparece outra vez o adjetivo “kainos”, que significa algo inédito, extraordinário, nunca visto antes. Ou seja, a tradução de ‘kainos’ por “novo” em português não indica toda a força que a palavra grega possui. Assim, os novos céus e a nova terra representam a ideia de um processo de depuração, de purificação, não sendo simplesmente uma coisa que vem substituir outra, assim como nós passamos a usar um novo sapato e jogamos o outro no lixo. O “novo” tem aqui o sentido da renovação plena, de tomar algo que está velho e fazê-lo tornar-se novo outra vez. E acerca dos “sete” céus, esse conceito continua vigente no talmud judaico e significa uma espécie de local físico, embora muito elevado, porém não é compatível com o conceito de céu uno presente na doutrina teológica cristã.


Portanto, deixando de lado essa noção dos sete céus, entendida quase no sentido cosmológico, a mensagem da carta de Pedro nos incentiva a vivermos na esperança da renovação prometida, cuja realização depende também do esforço de cada um de nós: “vivendo nessa esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz.” Tal como Paulo fez em suas cartas, Pedro também adverte os cristãos mais apressados para que tenham paciência para esperar a vinda do Senhor, pois “para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora.” Percebe-se que tanto nas comunidades dos gentios quando nas comunidades judaicas, prevalecia uma expectativa de que Jesus retornaria “em breve”, ou seja, naqueles próximos dias, por isso tanto Paulo quanto Pedro ensinavam aos cristãos que não deviam ter pressa nem tentar adivinhar esse dia, mas que cada um permanecesse fiel e se mantivesse alerta e em prontidão. Passados mais de dois milênios e considerando a evolução dos conhecimentos científicos acerca do universo, devemos compreender esses conceitos de “novos céus e nova terra” no sentido metafórico teológico e espiritual, de modo que vivendo nessa “velha” terra o “reino de Deus”, estamos antecipando pela fé a vida na Jerusalém celeste, servindo como nosso guia nessa caminhada o evangelho de Cristo.


Na leitura do evangelho de Marcos (Mc 1, 1-8), vemos repetido o mesmo trecho do profeta Isaías, fazendo expressa referência a João Batista como aquele que foi enviado para preparar o caminho, quando já estava próxima a chegada histórica de Cristo. Dizia João Batista: já está no meio de vós aquele que virá depois de mim. Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”. Aqui também devemos entender que esse trecho foi escrito muito depois da época de João, pois João ainda não conhecia a pessoa divina do Espírito Santo, a qual foi revelada somente algum tempo depois, nas pregações de Cristo. É verdade que João teve uma antevisão do Espírito Santo em forma de pomba, por ocasião do batismo de Cristo por ele, mas isso não significa que ele tivesse tido uma antecipação da doutrina trinitária, que Jesus iria explicar aos apóstolos durante sua catequese com eles. A consciência do seu papel de precursor está bem expressa na metáfora de João sobre “desamarrar suas sandálias”. João tinha ciência de que a origem divina de Cristo e a missão que Ele ali iniciaria não tinha termo de comparação com o seu próprio trabalho. E sabe-se pela leitura de Mateus (3, 11) que João teria argumentado com Jesus: eu devo ser batizado por ti, mas tu vens a mim. E Jesus teria respondido: deixa assim por enquanto. Tudo devia acontecer de acordo com o plano do Pai e João era um importante personagem nesse plano.


Meus amigos, que nós saibamos, interpretar com sabedoria a temática bíblica posta diante de nós pela liturgia do advento, de modo a compreendermos sempre melhor o significado desse tempo religioso importante, mas que fica em geral obscurecido pelos apelos comerciais e emocionais relacionados com o natal da troca de presentes, desviando-nos do verdadeiro sentido do natal cristão.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 2 de dezembro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1ª DOMINGO DO ADVENTO - 03.12.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – VIGILATE – 03.12.2023


Caros,


O primeiro domingo do advento dá início ao novo ano na liturgia católica romana, que não segue o calendário civil. Hoje é, portanto, o primeiro dia do ano novo religioso. Neste ano, que é classificado com a letra B, as leituras do evangelho serão, preferencialmente, do evangelista Marcos. Cronologicamente, o evangelho segundo Marcos foi o primeiro dos quatro a ser escrito. Consta que João Marcos era um discípulo de Pedro e teria sido também o escriba das cartas deste. Era também sobrinho do apóstolo Barnabé e acompanhou o seu tio e Paulo nas suas primeiras viagens missionárias, com especial atuação na igreja de Antioquia. É um personagem importante dos primeiros tempos da era cristã. O evangelho de Marcos é considerado o mais próximo das fontes documentais, pelo fato de apresentar-se mais resumido e com poucos detalhes dos fatos narrados, tendo servido de referência para os demais evangelhos. Deve ter sido escrito por volta do ano 50 d.C.


A palavra “advento”, numa interpretação literal, quer dizer aquilo que está para chegar, ou seja, a festividade do nascimento de Cristo. É sempre conveniente recordar que a festa celebrada em 25 de dezembro é apenas uma data referencial, não significando o dia exato em que Jesus nasceu. A escolha desta data foi uma interveniência do imperador Constantino na Igreja. Ele aproveitou uma festa tradicional romana pagã, em homenagem ao deus sol invencível, que marcava a passagem do solstício de inverno no hemisfério norte. A partir de Constantino, esta solenidade pagã foi transformada em uma festa cristã, homenageando Jesus, o novo sol do mundo. As igrejas cristãs orientais (católicas ortodoxas) não seguem essa data, pois não aceitaram a imposição de Constantino, e lá celebra-se o nascimento de Jesus no dia 6 de janeiro. Contudo, o 25 de dezembro foi assumido pelo catolicismo romano e de lá trazido para o continente americano, associado a paisagens com pinheiros cobertos de neve. Porém devemos nos lembrar que Jesus nasceu em Belém, na Judeia, e lá não havia nem pinheiros nem neve, ao contrário, a região é predominantemente desértica. Esta é a visão europeia do natal e é mais um motivo para nós compreendermos a sua simbologia coerente com o evangelho e não com os costumes tradicionais, que associam o Natal à troca de presentes e à farta ceia com iguarias típicas da data. Diferente disso, o nascimento de Cristo foi um acontecimento modesto e até austero, pois como se sabe, Maria e José não encontraram nem hospedagem decente naquele dia de grande aglomeração em Belém, servindo-se de uma acomodação improvisada, dada a urgência do nascimento de Jesus.


Nas leituras litúrgicas de hoje, temos a primeira do profeta Isaías (63, 16 – 64,7), em que o Profeta recorda o tempo do exílio como um castigo divino, porque o povo se afastou dos caminhos do Senhor, e faz uma declaração de humildade, ao dizer que “nós nos tornamos imundície e todas as nossas obras são como um pano sujo … por isso, escondeste de nós a tua face e nos entregaste à mercê de nossas maldades”. E logo em seguida, vem a declaração de confiança: Assim mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos. A figura do barro nas mãos do oleiro tem um significado bastante forte de confiança na misericórdia do Senhor, na medida em que o barro é um objeto amorfo e receberá a forma que as mãos do oleiro quiser lhe dar.


Essa imagem é reforçada pelo vers. 3 do cap 64: Nunca se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam. Essa passagem de Isaías tem tudo a ver com o tempo do advento, que é a ocasião propícia para cada cristão se desvencilhar do seu invólucro espiritual velho e construir em si um novo receptáculo, para ali depositar o Salvador, cujo nascimento esperamos. Tal como a quaresma é o tempo de penitência em preparação para a Páscoa do Senhor, o advento é também um tempo de revisão de procedimentos, de limpar as veredas e aplainar os caminhos para a chegada do Senhor. Na verdade, a festa do Natal é a segunda mais importante do calendário cristão, superada apenas pela festa da Páscoa. A vinda de Cristo é o início do mistério da redenção prometido por Javeh aos antigos Patriarcas e que não se destina mais somente aos judeus, mas alcança todo o gênero humano. Esse é o acontecimento chave que marca o ponto de partida da caminhada eclesial que será seguida no decorrer do ano novo.


A segunda leitura traz o início da primeira carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 1, 3-9), em cujo preâmbulo o Apóstolo felicita aquela comunidade e recomenda a perseverarem firmes na fé até “o dia de Nosso Senhor Jesus Cristo”, numa alusão evidente à segunda vinda de Cristo. Conforme já explicitado em comentários anteriores, os cristãos daquela época (e Paulo inclusive) entendiam a vinda gloriosa de Cristo “para julgar o mundo” como algo que ocorreria nos próximos dias, não iria demorar muito. No versículo 7, Paulo diz isso textualmente, quando escreve “vós que aguardais a revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo”, ou seja, Ele irá retornar a qualquer momento. O tema dessa leitura paulina está em consonância com o tema do evangelho de Marcos, chamando a atenção para a perseverança até o final, dentro da fidelidade à graça recebida. Deus é fiel, repete Paulo, e essa fidelidade de Deus deve ser correspondida com a fidelidade do crente. Percebe-se, pela frequência com que Paulo volta a esse assunto, que essa maneira de compreender a segunda vinda de Cristo era uma ideia recorrente nas primeiras comunidades cristãs. Assim se entende porque o tema da “vigilância” é tantas vezes reprisado tanto nas cartas de Paulo quanto nos evangelhos, sendo também um apelo insistente da liturgia nessa época do ano.


A leitura do evangelho de Marcos tem essa mesma conotação da vigilância (Mc 13, 33-37). O texto tradicional latino exorta: Vigilate! (Vigiai). Podemos perceber como essa preocupação chegava a ser exagerada, pela forma como o tema nos é apresentado na parábola do patrão que viajou ao estrangeiro e deixou sua propriedade sendo cuidada pelos seus empregados. O patrão também deixou a cada empregado uma tarefa específica, encarregando um deles de ser o porteiro, que ficaria vigiando a casa. Quanto aos demais, diz a parábola, devem estar sempre preparados, porque não sabem a que dia ou hora o patrão retornará. Pode ser de tarde, de noite, de madrugada, ninguém sabe quando será este dia. Do modo como a história é contada, tem-se a impressão de que aqueles empregados não poderiam nem dormir, porque podia ser que o patrão chegasse na hora do sono deles. Ora, meus amigos, parece óbvio que se trata aqui de uma figura de linguagem. Na verdade, o foco da mensagem, a meu ver, se refere à execução da tarefa da qual cada um foi encarregado e não ao sono em si. Vigilância não significa abandonar o sono, mas estar atento à missão que nos foi confiada. Essa, sim, deve ser cumprida conforme o cronograma divino, de modo que, no retorno do patrão, a tarefa não esteja em atraso. A tarefa maior que Jesus deixou para nós, seus empregados, está resumida naqueles dois mandamentos, que todos conhecemos muito bem: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Essa é a tarefa que não pode ser deixada para depois, mas deve ser realizada e revisada constantemente.


A metáfora de “não sabemos o dia ou a hora em que o patrão retornará” faz parte daqueles denominados discursos escatológicos de Jesus e seu entendimento deve ser atualizado. A segunda vinda de Cristo, apresentada tradicionalmente como um fenômeno cósmico, com trovões e trombetas, a meu ver, será um evento privado na vida de cada pessoa. Em vez de ser Ele que virá ao nosso encontro, nós, ao contrário, é que nos dirigiremos a Ele. Devemos compreender que aquela maneira teatral de apresentar o fenômeno do retorno de Jesus é resultado da noção que se tinha na época acerca da terra e sua posição relativa aos demais corpos celestes. Não há dúvida de que toda a escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, conforme afirmou o apóstolo Paulo (2Tim 3, 16), porém, ela é palavra divina em linguagem humana e deve ser contextualizada dentro da concepção científica e cosmológica da época em que foi escrita, para que possamos entendê-la nos dias de hoje. Compete a nós, que hoje lemos esses textos, desapegar do fundamentalismo e da literalidade para assim alcançarmos o seu significado mais apropriado para o nosso tempo.


Portanto, o ensinamento de Cristo para que estejamos sempre vigilantes se refere ao nosso tempo existencial. Por isso, essas leituras do tempo do advento não devem ser assimiladas com um tom de ameaça ou de chantagem, mas como um apelo de vida consciente e centrada nos nossos compromissos de cristãos. Vigilate, não deixeis dormir a vossa fé.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos