sábado, 27 de maio de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DE PENTECOSTES - 28.05.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DE PENTECOSTES – 28.05.2023 – SETE SEMANAS


Caros Confrades,


Celebramos, no domingo de Pentecostes, uma festa que há existia no tempo de Cristo, era celebrada pelos judeus, comemorando o recebimento da Lei (Torá), dada por Javé a Moisés. É a “festa das semanas” (shavuot) dos judeus, assim chamada porque acontecia sete semanas após a Páscoa. Na língua grega, foi traduzida com o nome de Pentecostes. A comunidade cristã primitiva associou essa festa com a vinda do Paráclito, que confirmou as promessas de Cristo aos apóstolos, e isso marca o início oficial da Igreja, a comunidade eclesial formada pelas pessoas de boa vontade, que acreditam em Jesus e se responsabilizam por levar adiante os seus ensinamentos. A celebração de Pentecostes marca assim o evento inaugural oficial da Igreja de Cristo. Aproveitando a presença de muitos peregrinos em Jerusalém, para essa festa judaica tradicional, Pedro fez aquela memorável alocução, narrada por Lucas nos Atos dos Apóstolos (2, 2), em que a ação miraculosa do Espírito se manifestou, através do dom das línguas. Pedro, que era um pescador semianalfabeto, proferiu uma espécie de aula magna para numerosos ouvintes representando os povos de diversas nações, que se encontravam em Jerusalém, e eles ouviram aquela pregação, cada um, no seu próprio idioma, funcionando a eloquência do Espírito como um tradutor instantâneo. O escritor de Atos, o evangelista Lucas, com o detalhismo que lhe é peculiar, teve o cuidado de enumerar as nacionalidades dos presentes, conforme consta em Atos 2,9: “partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia,da Frígia e da Panfília, do Egito e da parte da Líbia próxima de Cirene, também romanos que aqui residem; judeus e prosélitos, cretenses e árabes”, em resumo, habitantes de todos as nações que tinham algum contato com os romanos, as quais eram, na época. quase todas as regiões conhecidas. Excetuando o extremo oriente (China, Índia, Japão, Mongólia, que eram conhecidas mas não negociavam com os romanos) e as américas (que não eram ainda conhecidas), Lucas faz questão de declarar que todas as nações do mundo estavam presentes naquela ocasião e ouviram a pregação de Pedro.


A vinda do Espírito cumpriu a principal promessa de Jesus, quando enviou os discípulos a pregarem pelo mundo o seu evangelho, qual seja: estarei convosco até o fim do mundo. Desse modo, embora a liturgia celebre a festa de Pentecostes apenas em um domingo do ano, devemos estar cientes de que a vinda do Espírito não foi um fenômeno que aconteceu naquele dia, mas que continua a ocorrer todos os dias, em todas as comunidades cristãs (falando coletivamente), e em cada cristão (falando subjetivamente). Pelo sacramento da crisma, cada cristão celebra o seu Pentecostes particular, recebendo o Espírito já não mais em forma de língua de fogo, mas nem por isso de um modo menos abrasador. Pelo batismo, nós ingressamos na comunidade dos cristãos, mas é pela crisma que nos habilitamos verdadeiramente para o exercício do envio à missão, da mesma forma como aconteceu com os apóstolos, naquele dia de Pentecostes. São Paulo, na epístola aos Coríntios (1Cor 12, 4) diz que há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Então, a missão de cada um dentro da Igreja pode ser diferente, mas nos anima e nos une o mesmo Espírito. Os cristãos ordenados, os clérigos, têm a missão de testemunhar Cristo e de anunciá-lo a todos, pregando a palavra e presidindo os trabalhos, seguindo na frente (esse é o sentido original do verbo latino praesum=presidir=estar na frente). Os cristãos não ordenados, os leigos, têm a missão de testemunhar Cristo e anunciá-lo a todos com o seu exemplo, com as suas obras e atitudes.


Ainda na carta aos Coríntios acima citada (1Cor 12,12), Paulo explica e exemplifica essa diversidade de dons, de carismas, de tarefas, através do pedagógico exemplo do corpo: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo.” É a conhecida doutrina teológica do “corpo místico de Cristo”, da qual já ouvimos falar tantas vezes, mas é sempre necessário recordá-la, para que nos conscientizemos da função que cada um de nós deve assumir nesse contexto. Não é necessário fazer nenhum esforço extremo, basta deixar agir o Espírito que está em cada um de nós, basta ouvir a voz da nossa consciência, que nos transmite a mensagem vinda do Espírito. Todos sabemos que o exemplo vale mais do que as palavras. Então, o nosso maior testemunho será viver o dia a dia como autênticos cristãos. Há certas pessoas, sobretudo entre algumas denominações cristãs não católicas, que interpretam de forma literal o mandato de Cristo (ide e pregai a todas as criaturas) e nós os vemos, às vezes, em praças e locais públicos com a Bíblia na mão e um equipamento de amplificação de som a fazerem pregações, que em vez de atrair as pessoas, causam o efeito oposto nelas. Houve um desses pregadores que chegava numa praça de Fortaleza todos os domingos bem cedo da manhã, instalava sua caixa de som e começava a sua leitura e pregação ali sozinho, sem ninguém a ouvi-lo em presença, num momento em que a praça estava vazia. O seu discurso, ainda que bem intencionado, incomodava os moradores das residências próximas, os quais chamaram a polícia acusando-o de perturbar o silêncio. Ou seja, as suas palavras tiveram nenhum resultado. Por isso, repito que mais do que falar, discursar ou discutir religião com as pessoas, o nosso maior testemunho será com o bom exemplo silencioso, coerente, convicto, esse produz muito mais efeito do que palavras bíblicas ao vento, levadas por aparelhos sonoros.


A festa de Pentecostes deve ser também a festa da unidade dos cristãos ou, mais do que isso, a unidade de todos os povos. Foi o grande desafio lançado por Cristo aos apóstolos: ide e pregai a todos os povos, para que se tornem um só rebanho. Esta profecia de Cristo continua sendo o maior desafio a ser enfrentado e vencido por todos os lideres religiosos, principalmente aqueles que comandam as religiões monoteistas. Nesta semana, a Igreja Católica promove a semana de orações pela unidade dos cristãos, uma ação orquestrada com os líderes das grandes religiões monoteístas mundiais. Diversas outras ações já foram realizadas em outros momentos, com essa mesma finalidade. Esse movimento de aproximação em busca da unidade dos cristãos lembra o papa São Paulo VI, o Papa do Concílio Vaticano II, o primeiro Papa, que, após quase mil anos, teve um primeiro diálogo com o Patriarca de Constantinopla, igreja ortodoxa separada, fato ocorrido em 1964. O Papa Francisco, por seu turno, não se cansa de pedir que os cristãos vivam “unidos pelo Espírito Santo” na oração e na ajuda “aos mais pobres”, “todos, todos, todos”, ou seja, sem distinção de rótulos ou designações de grupos religiosos. Lamentavelmente, nem todos os cristãos (católicos e não católicos) conseguem compreender a importância desse apelo, desdobrando-se em grupos radicais que, além de não atenderem aos pedidos do Papa, ainda menosprezam esses esforços. Há grupos que se auto consideram tão autênticos na fé dentro da Igreja Católica, que se colocam acima da autoridade do próprio Papa. Certos grupos cristãos até insinuam que o Papa Francisco é o anticristo previsto no Apocalipse. Muito triste isso.


Meus amigos, nesta festa de Pentecostes, devemos pedir ao Espírito que ilumine e fortaleça o Papa, nessa sua busca tenaz e obstinada por construir uma nova Igreja. O Papa Francisco está seriamente imbuído do mesmo espírito do Seráfico Patriarca de Assis, na tentativa de reconstruir a Igreja, mantendo-se fiel a ela. É do que nós cristãos mais precisamos, nesses tempos conturbados e temerários. O Papa está empenhado em conduzir de volta a Igreja de Cristo para o seu verdadeiro objetivo, que é transformar todos povos no único rebanho de Cristo, contudo algumas pessoas que ocupam elevados cargos na hierarquia estão mais preocupados com as tradições e com os protocolos, estão mais receosos de perderem seus gordos salários e seus exclusivos privilégios, por isso não querem que o Papa mexa em nada, deixe tudo como está e apenas se mantenha seguindo a burocracia, de olho no Direito Canônico e se autoproclamando como único dono da verdade. Que o Espírito ilumine esses corações empedernidos.


Para mim, não resta dúvida de que o Papa está visivelmente sendo conduzido pelo Espírito Santo, nessa sua tarefa de redesenhar a identidade da Igreja Católica e é realmente dele, mais do que de todos os outros Bispos e Sacerdotes, a responsabilidade por bem conduzir essa missão. Ninguém atualmente duvida que o Papa tem um grande carisma e é isso que o move. Apenas para lembrar que kharisma, em grego, é um substantivo derivado do verbo khairôw, que significa estar alegre, ter motivo de alegria; kharisma é, portanto, obséquio, dom, marca de felicidade. Penso que a palavra carisma, no seu significado original, traduz perfeitamente a personalidade do Papa e o credencia para a realização dessa árdua e difícil tarefa a que ele se propôs. Com toda certeza, ele não está sozinho nessa empreitada, mas o Espírito está com ele e as orações de todos nós, verdadeiros cristãos, são essenciais para o bom êxito das suas ações.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 14 de maio de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO DA PÁSCOA - 14.05.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – O NOVO DEFENSOR – 14.05.2023


Caros Confrades,


Neste 6º domingo da Páscoa, o evangelho de João (14, 15-21) destaca a promessa de Cristo aos apóstolos: não vos deixarei órfãos, mandarei sobre vós o Paráclito, o Espírito da verdade. O Espírito é também o sinal da unidade da Igreja. A liturgia apresenta os atos finais da despedida de Cristo, que prepara o seu grupo de apóstolos para a missão, que se iniciará quando ele se elevar definitivamente para o céu. No próximo domingo, celebraremos a festa da Ascensão. Jesus ao mesmo tempo que se despede, também consola os seus, afirmando que continuará presente no meio deles (e de nós) através do “outro defensor”, que assistirá e revigorará constantemente a atividade da Igreja. Ao longo da história, a presença do Espírito paráclito/defensor/consolador tem sido a fonte de vivificação da fé de todos os cristãos.


Temos na primeira leitura litúrgica, do livro dos Atos (8, 5-17), o testemunho da pregação de Filipe na Samaria, convertendo os samaritanos ao cristianismo. Recordemos que os judeus e os samaritanos eram intrigados e, com o episódio do diálogo entre Jesus e a Samaritana, na beira do poço de Jacó, Ele foi convidado a ir até ao povoado e ali passou alguns dias pregando e os samaritanos daquela cidade acreditaram nele. O texto da leitura de hoje diz que Filipe foi a uma cidade da Samaria (não diz qual) e lá anunciou o evangelho e fez milagres, conseguindo a adesão da fé cristã daqueles cidadãos. Seguindo o exemplo de Cristo, Filipe superou aquele sentimento separatista, que há muito tempo dominava judeus e samaritanos, e com coragem se dirigiu para o meio dos “inimigos”. Certamente, a notícia da presença e da pregação de Jesus, no momento anterior, já havia se espalhado por toda a região da Samaria, de modo que a pregação de Filipe não foi exatamente uma “novidade” para aquelas pessoas, mas uma oportunidade a mais para tomarem conhecimento da mensagem cristã e confirmarem sua fé. Quando a boa notícia chegou a Jerusalém, Pedro e João se dirigiram para lá e, concluindo o trabalho iniciado por Filipe, impuseram as mãos sobre esses novos crentes, para que recebessem o Espírito Santo, pois antes somente haviam recebido o batismo. O domingo de Pentecostes ainda está por vir, mas a liturgia já está preparando o terreno para a festa do Divino Espírito.


Na segunda leitura (1Ped 3, 15-18), o apóstolo Pedro continua exortando os judeus convertidos ao cristianismo, animando-os a prosseguirem na fé e na unidade e a não se deixarem esmorecer pelas adversidades. “Pois será melhor sofrer praticando o bem, se esta for a vontade de Deus, do que praticando o mal”. (3, 17) Essa admoestação de Pedro se aplica muito bem a todos os cristãos que, nos dias atuais, estão sofrendo atrozes perseguições pelos governos islâmicos e ateus, que condenam judicialmente os seus cidadãos só porque professam a fé cristã. No Oriente Médio, assim como em diversos países do norte da África, a perseguição religiosa individual e grupal (ataques a templos) tem sido um fato constante. Sequestros de padres e freiras são frequentes. Verifica-se que, naquela época com os judeus e hoje com os muçulmanos, os cristãos daquela região do planeta continuam a padecer agruras por causa da sua fé. O discurso de Pedro, portanto, é bastante oportuno nesse contexto do povo cristão do Oriente Médio, onde professar a fé em Cristo é um ato de bravura e de grande coragem. Quando refletimos sobre isso, vemos o quanto nós somos, muitas vezes, frouxos e pusilânimes ao deixamos de demonstrar publicamente a nossa fé num país onde não sofremos nenhuma represália por causa disso. Professar a fé cristã em alguns países é um ato de grande bravura. A todos eles, a nossa mais eloquente homenagem.


No evangelho de João (14, 15-21), Jesus faz a promessa de mandar um “outro Defensor”. Essa expressão joanina tem um significado interessante e merece uma análise textual. Vejamos o que dizem os textos originais. No original grego, consta a expressão “allon parakleton”, que no texto latino da Vulgata foi traduzido “alium paraclitum” (tradução literal). Em um comentário anterior, já tive oportunidade de explicar que o vocábulo grego “parákleton” significa defensor, advogado, consolador e deriva do verbo grego “parakeleuô”, que significa dar instruções, aconselhar, instruir, animar. Portanto, devemos compreender o significado de “defensor”, como tradução do termo grego parakleton, no sentido daquele que dá instruções, que orienta, que aconselha, que anima. No contexto dessa leitura, o termo defensor guarda mais semelhança com a palavra advogado, aquele que instrui, orienta, dá instruções ao cliente sobre como deve portar-se perante o juiz. Deixemos em segundo plano o sentido de defensor como o que defende, protege, dá segurança (soldado). O Paráclito que Jesus prometeu aos apóstolos é o que vem orientar, dar instruções, animar, vivificar. É importante atentar para o significado da raiz verbal de “parakaleuô”, a fim de entendermos de forma mais plena o sentido de Paráclito. No evangelho (vers. 16), Jesus diz que “o Paráclito vai permanecer sempre convosco”. Ele (Jesus) irá desaparecer dentro de pouco tempo, mas o Paráclito virá e permanecerá com a sua comunidade de fiéis para sempre. De fato, o Paráclito é o Espírito da Verdade e da Unidade, é Ele quem está constantemente assistindo, animando, instruindo, orientando, defendendo, consolando a Igreja de Cristo através dos tempos. É nele que devemos encontrar a confiança de que a mensagem de Cristo seguirá pelo mundo afora, no decorrer dos tempos e que, apesar de eventuais tropeços de seus pregadores, essa mensagem continuará sempre viva e atraente. É o Espírito quem move a Igreja. É o Espírito quem anima o Papa. É o Espírito quem nos impele a vivenciar a nossa fé na vida cotidiana e nos mostra constantemente a melhor forma de agir, basta que estejamos com os “ouvidos” atentos às suas manifestações.


Mas antes de mencionar o Paráclito, o texto do evangelho de João usa o vocábulo “outro” (allon, em grego, alium; em latim, no mesmo sentido). Por que Jesus fala em “outro” Paráclito? A resposta é fácil. Porque Jesus é também o Paráclito. Diz o versículo 18 de João: “Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós.” Ora, meus amigos, vejam bem: “eu virei a vós, naquele dia, sabereis que eu estou no Pai, vós em mim e eu em vós”. Que lição interessante o evangelista João está nos dando sobre a Santíssima Trindade: eu virei a vós, eu estou no Pai, vós estais em mim, ele estará dentro de vós. Juntando as frases, temos aí a afirmação de que a Santíssima Trindade habita em nós e que a presença do Espírito é permanente em nós. Jesus diz bem claramente: eu pedirei e o Pai mandará outro paráclito, que permanecerá sempre convosco. O primeiro paráclito (defensor, instrutor) que o Pai enviou foi Jesus Cristo, que veio cumprir a sua missão redentora. Cumprida esta, ele retorna ao encontro do Pai e este mandará o outro Paráclito, que permanecerá conosco para sempre. Ou seja, o Pai, o Cristo, o Paráclito são um só, a Trindade Santa, e eles habitam em nós. O evangelista João era um exímio teólogo e sabia expressar as verdades da fé em palavras simples, diferentes dos teólogos posteriores que transformaram a teologia num tratado lógico científico, nos moldes da ciência aristotélica. Nem precisava isso. Basta ler com atenção e meditar sobre as palavras colocadas por João, de forma simples e direta, para compreendermos o significado do Paráclito e da Trindade. E para sabermos que nós somos o templo onde essa Trindade habita.


O Espírito da verdade, o Espírito da Unidade é também o Espírito da fidelidade. Já faz alguns anos, que os Papas têm se preocupado com a questão da unidade dos cristãos (romanos com os orientais) e do cristianismo com as demais religiões monoteístas (judaísmo e islamismo). Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco vem promovendo ações, em conjunto com os demais líderes das grandes religiões mundiais (judaísmo, budismo, islamismo), por exemplo, um dia de orações e jejum pelo livramento do planeta das terríveis ameaças que vêm nos assolando, pandemia, guerras, perseguições, causando tensão em toda a humanidade. Cada religião à sua maneira, compromete-se a realizar uma jornada espiritual em prol do planeta. É o ecumenismo comandado pelo Espírito Santo que se faz efetivo nessa aliança de paz.


Que este mesmo Espírito inspire todos os nossos dirigentes hierárquicos no caminho da unidade de todos os fiéis cristãos e estimule em nosso íntimo o sentimento da fraternidade, que é a característica fundamental também do franciscanismo.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 6 de maio de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA PÁSCOA - 07.05.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – DIÁCONOS E PRESBÍTEROS – 07.05.2023


Caros Confrades,


Neste 5º domingo da Páscoa, a liturgia nos traz uma leitura dos Atos dos Apóstolos, que relata a criação do Diaconato na Igreja de Cristo. A função destes era cuidar dos trabalhos assistenciais e sociais, enquanto os Apóstolos (presbíteros) se dedicavam à pregação da palavra e às funções sagradas. Por muitos anos, a figura do Diácono ficou esquecida no ambiente eclesial, sendo reativada pelo Concílio Vaticano II e tornava efetiva nas últimas décadas. Os nossos confrades Ribamar e Batista Rios fazem parte desse grupo dos novos diáconos do nosso tempo. Vale lembrar que, nos primeiros tempos do cristianismo, havia também as diaconisas, função que desapareceu com o tempo e bem podia ser restaurada, tantas são as santas mulheres que servem junto às Paróquias e Dioceses. O recente Sínodo dos Bispos da Alemanha elegeu, entre uma de suas conclusões, a reabilitação do diaconato feminino, cabendo ao Vaticano referendar ou não essa proposta.


Nos Atos dos Apóstolos, consta o nome dos primeiros sete diáconos (At 6,5): Estêvão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas e Nicolau de Antioquia. De acordo com o texto lucano, a tarefa deles era “servir às mesas”, o que eu entendo como as obras de caridade material e assistencial. No texto de Lucas, eram todos homens. No entanto, Paulo, na carta a Romanos (16,1), refere-se a “Phoebe, nossa irmã, diaconisa da igreja de Cencréia”, o que implica entender que havia mulheres também exercendo a diaconia. O site “prebiteros.com.br” explica que “eram mulheres de conduta irrepreensível chamadas a participar dos serviços que a Igreja prestava a pessoas do sexo feminino, principalmente por ocasião do Batismo (ministrado por imersão). Recebiam o seu ministério pela imposição das mãos do Bispo, que não conferia caráter sacramental. – Com a rarefação do Batismo de adultos, foi-se extinguindo a figura da diaconisa na Igreja a partir do século VI.” Não apenas o diaconato feminino, mas também o masculino tornou-se esquecido por muito tempo, até ser restaurado pelo Concílio Vaticano II, porém somente o diaconato masculino, deixando de lado a figura feminina, evidenciando este fato um injustificável preconceito por parte dos padres conciliares. Se na antiguidade cristã, havia as diaconisas, por que não reabrir essa possibilidade nos dias atuais? Aqui em Fortaleza, lembro que nos anos 90, Dom Aloísio nomeou uma freira (Irmã Elizabeth) para oficiar em caráter extraordinário casamentos, batizados e celebrações da palavra na Paróquia do Conjunto Ceará, por causa da escassez de ministros ordenados, e ela oficiou nessa função por bastante tempo, causando espécie até mesmo no Vaticano. Uma pessoa admirável a Irmã Elizabeth Stumpfler, quem a conheceu certamente concordará comigo. Uma jovem alemã que fugiu da Alemanha Oriental para Berlim, na época da segunda guerra mundial e veio trabalhar, até o fim dos seus dias, entre as comunidades carentes do Ceará. Minha homenagem a ela neste domingo que coincide com o Dia das Mães, porque ela foi mãe adotiva de inúmeros jovens e adultos, que buscavam seu apoio e seus conselhos. Que ela, lá do céu, interceda por todos nós.


Na segunda leitura, temos um trecho da carta de Pedro aos judeus dispersos e perseguidos (1Ped 2, 4-9). Conforme já comentei antes, as cartas de Pedro eram dirigidas aos novéis convertidos judeus, da região da Ásia Menor, que eram ofendidos e perseguidos pelos judeus legalistas, por causa da sua conversão ao cristianismo. Isso não deixa de ser um fato curioso, porque no texto dos Atos, lido hoje, Lucas se refere a “numerosos sacerdotes judeus convertidos” (Atos 6, 7), o que talvez explicasse a perseguição por parte dos judeus ortodoxos. Pedro procura levantar-lhes o moral, dizendo que eles são as pedras com as quais Cristo constrói o seu edifício, que é a Igreja, e que essas mesmas pedras, para os que não creem, são tropeço e ignomínia. “Vós, como pedras vivas, formais um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo.” (2, 5) Enquanto Paulo dirigia suas cartas às comunidades gentias (estrangeiras) do território grego, Pedro atendia aos fiéis da Ásia Menor, região que corresponde hoje à Turquia.


Na leitura do Evangelho de João (Jo 14, 1-12), continuamos a observar as dificuldades pedagógicas de Jesus com os seus rudes discípulos. Depois de passar três anos, convivendo diuturnamente com eles e ensinando-lhes a sua Boa Nova, para que eles a espalhassem pelo mundo, Jesus ainda passou cinquenta dias após a sua ressurreição, dando aulas de reforço. Quem já atuou como professor, sobretudo em classes de reforço, já deve ter sentido na pele aquela desanimadora atitude do(a) aluno(a) que, depois de você explicar um assunto já em repescagem, faz uma pergunta que demonstra que ele não entendeu nada e você tem de começar a explicar tudo do começo. Dá vontade de sair correndo da sala. Pois é, Jesus passou por isso também. Estando a se aproximar o dia em que Ele, definitivamente, iria deixar o grupo e encerrar a sua missão, Ele está passando as últimas informações, recordando as lições antigas e fazendo a reciclagem. O apóstolo João faz questão de mostrar a cabeça dura daqueles antigos pescadores de peixes, que Jesus pretendia transformar em pescadores de homens e não economiza as palavras: “Vou preparar um lugar para vós e, quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós. E, para onde eu vou, vós conheceis o caminho”. (14, 3-4) Então, vem Tomé com aquela desconcertante pergunta: Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho? Até parece que a gente escuta Jesus responder: “pelamordedeus”, Tomé, o caminho sou eu, ninguém vai ao Pai senão por mim. Aí chega o Felipe com uma ainda mais desanimadora pergunta: Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta! E Jesus, em vez de sair correndo de desespero com tamanho despreparo, vai pacientemente explicar de novo. Como é que tu dizes: mostra-nos o Pai... Felipe, quanto tempo eu estou com vocês e ainda não me conhecem? Quem Me vê, vê o Pai, porque Eu estou no Pai e o Pai está em Mim. Se não acreditam no que digo, acreditem ao menos nas obras que fiz. Meus amigos, ao refletir sobre essas situações, temos a certeza da origem divina da Igreja. Só mesmo o poder divino pôde conseguir que uma dezena de pessoas incultas e de limitado entendimento construíssem todo esse arcabouço de fé e doutrina, que nos legaram através dos tempos. Alguém poderia até argumentar: mas depois eles receberam o Espírito Santo e ficaram inteligentes... não é bem assim. O Espírito ilumina e vivifica, mas não acrescenta recursos intelectuais a quem não os possui pela natureza. A difusão da Igreja de Cristo só se explica mesmo pela promessa que Ele fez: ide pelo mundo e Eu estarei convosco até o fim do mundo.


Nesse trecho do evangelho, João também coloca na boca de Jesus uma frase que é muito conhecida e interpretada das mais diversas maneiras: Na casa do meu Pai há muitas moradas. (Jo 14, 2) Eu enxergo nessa afirmação a raiz do ecumenismo. Até aprece que Jesus já sabia das divisões que o cristianismo teria de enfrentar no futuro. Era como se ele dissesse: haverá divisões entre vós, com entendimentos diferenciados, criando múltiplas crenças religiosas, no entanto, todas elas, quando exercidas com consciência e fidelidade, são caminhos válidos para o encontro com Deus. Durante séculos, os teólogos ensinaram (e os Papas tornaram isso quase um dogma) que fora da Igreja Católica não há salvação, porque esta é a única e verdadeira Igreja de Cristo. Muitos católicos ainda defendem esse ponto de vista, sobretudo os grupos tradicionalistas, fundamentalistas e carismáticos. É muito triste perceber que, nos dias de hoje, existam pessoas que vivem mentalmente em época anterior ao Concílio Vaticano II. E como são muitos, inclusive sacerdotes e bispos. Logo no início do seu pontificado, o Papa Francisco fez uma afirmação chocante, que causou grande alarde na imprensa e imensa dor de cabeça nos grupos católicos tradicionalistas: ele disse, respondendo a um jornalista, que também as pessoas de outras crenças, que têm atitudes compatíveis com o evangelho, mesmo sem serem cristãs, merecem a salvação. Pois é. Jesus já sabia que, no decorrer dos tempos, haveria grandes dissensões de ideias e graves divergências doutrinárias dentro da sua Igreja e, nem por isso, deixaria de haver um só rebanho. As atitudes dos últimos Papas, fazendo visitas às comunidades judaicas e muçulmanas, além de visitas às Igrejas ortodoxas orientais vêm abrindo caminho para a formação dessa unidade de todos os crentes. Patriarcas orientais, rabinos judaicos, autoridades árabes, todos estão ansiosos com essa aproximação da Igreja de Roma, porque isso demonstra uma extraordinária quebra de preconceitos e tabus seculares, coisa que os Papas anteriores não ousaram enfrentar. E assim estamos caminhando verdadeiramente, pela via do diálogo e da mútua compreensão, para realizar o desejo de Cristo: que haja um só rebanho e um só Pastor, que é Ele próprio.


Que nós saibamos superar vetustos preconceitos e possamos trabalhar pela unidade de todos os povos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 29 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA PÁSCOA - 30.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – O PASTOR E O IMPOSTOR – 30.04.2023



Caros Confrades,


No 4º domingo da Páscoa, a liturgia nos apresenta a clássica imagem do Bom Pastor, talvez uma das imagens mais conhecidas e mais reproduzidas pela arte sacra. A exposição detalhada e consistente do evangelista João reforça essa figura, que era tradicional nas culturas antigas e muito familiar naquele ambiente oriental do cristianismo primitivo. Neste domingo, tanto quanto no domingo anterior, sobressai-se a figura de Pedro, na leitura de Atos e também na leitura da sua primeira carta. O oposto do bom pastor será o impostor, o que não entra pela porta, mas escorrega furtivamente pela janela e engana ostensivamente. Olhando para a nossa sociedade contemporânea, parece que estamos com grande deficiência de bons pastores. A todo momento, temos notícias de lobos travestidos de ovelhas, enganando o povo que, por sua vez, se deixa enganar.


A primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (2, 14ss), relata outro trecho do discurso de Pedro feito no dia de Pentecostes para a multidão, que acorreu ao Cenáculo com o barulho da ventania. O mesmo povo que, dias antes, havia pedido a morte de Jesus e a soltura de Barrabás, diante do discurso inspirado de Pedro, pergunta, arrependido: o que devemos fazer? E Pedro responde: convertei-vos e recebei o batismo para o perdão dos pecados. (At 2, 38) Diz o texto que, naquele dia, cerca de três mil pessoas foram batizadas. Esta leitura, embora sem mencionar diretamente, retrata a figura do Bom Pastor, enquanto porta da salvação para as “ovelhas” arrependidas. Esses fenômenos de conversões em massa, que se sucederam logo após o dia de Pentecostes, causavam grande irritação aos fariseus e sumos sacerdotes, porque haviam manobrado o povo contra Jesus, pedindo a Pilatos a sua condenação e agora viam o mesmo povo mudando de lado, arrependido. Grande parte dos visitantes e da população de Jerusalém, muitos que estavam ali para os festejos da Páscoa e haviam acompanhado os acontecimentos da paixão de Jesus, também souberam dos eventos miraculosos que sucederam a sua morte, causando-lhes grande comoção. E, ouvindo a pregação simples dos apóstolos, passaram a acreditar em Jesus e entraram a fazer parte do rebanho do Bom Pastor.


Na segunda leitura, extraída da primeira carta de Pedro (1Pd 2, 20), lemos a sequência do texto do domingo anterior, daquela carta dirigida aos judeus convertidos, que sofriam perseguições por causa de sua opção religiosa pelo cristianismo. Daí que Pedro os exorta a suportarem com paciência o sofrimento, seguindo o exemplo de Jesus que, mesmo sem culpa, não se maldisse nem se vingou dos que o maltrataram. E embora sem fazer alusão direta, o texto de Pedro também guarda relação com a figura do Bom Pastor, quando diz: “andáveis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guarda de vossas vidas.” (1Pd 2, 25) O Bom Pastor, portanto, está presente na pregação dos apóstolos desde os primeiros tempos, porque a metáfora do pastor e do rebanho estava bastante ligada à realidade do povo judeu, que tinha na ovinocultura uma importante fonte de renda, sendo uma profissão tradicional e muito integrada na vida econômica de suas comunidades. Ora, se ainda hoje, quando vivemos numa época de maciça produção tecnológica, a ideia de um pastor ainda tem forte apelo emocional e devocional, quanto mais naquele tempo em que essa atividade era costumeira e rendosa. Os nossos Bispos ainda são chamados de pastores e os ministros das igrejas cristãs não católicas adotaram esse epíteto como referência para a sua liderança religiosa. No Ceará, a figura humana que corresponderia ao pastor seria a do vaqueiro, tradicional e romântico personagem da nossa zona rural, que antes aparecia com chapéu de couro e gibão, montado em brilhosos cavalos, e hoje transita montado em outros “cavalos”, estes mecânicos, de pés redondos e emborrachados, movidos a gasolina. Nas cidades do interior, com certeza há mais motocicletas do que automóveis e, se duvidar, do que as tradicionais montarias. Tanger rebanhos montado numa moto é a nova imagem do nosso sertão tecnológico.


A leitura do evangelho de João (Jo 10, 1-10) narra o início da parábola do Bom Pastor, um dos símbolos muitas vezes repetidos na catequese de Jesus, sendo uma narrativa que consta apenas no evangelho escrito por João. É compreensível que João, tendo escrito seu texto depois dos outros evangelistas e ainda tendo tido o privilégio de conviver com Jesus, pôde fazer uma espécie de complementação, relatando fatos e circunstâncias que os demais não haviam escrito. Por isso, é comum encontrarem-se certas passagens que constam apenas no evangelho joanino e é também por isso que este evangelho não leva o título de sinótico, como os três primeiros. Enquanto os outros fizeram uma espécie de sinopse de textos esparsos que circulavam nas comunidades, guardando assim diversas passagens em comum, o evangelho de João é mais reflexivo e específico, legando-nos o entendimento das primeiras comunidades localizadas na região da Ásia Menor, onde ele atuava. Apenas para recordar, João, assim como Paulo, são os primeiros teólogos do cristianismo e escreveu seu evangelho em Éfeso, onde era bispo daquela comunidade.


Acerca da figura do Bom Pastor, ele começa descrevendo o seu oposto, isto é, o mau pastor, aquele que não entra pela porta, mas furtivamente e às escondidas. A tradução oficial da CNBB usa dois substantivos para exemplificar o mau pastor: ladrão e assaltante. (Jo 10, 1) Mas vejamos os vocábulos originais, para fazermos uma comparação. No texto da vulgata, São Jerônimo chama o mau pastor de “fur et latro”, que em português correspondem à tradução oficial. FUR é o que rouba às escondidas e LATRO é o que rouba com violência. A lei penal brasileira faz essa mesma distinção entre os tipos penais. Porém, no texto grego original, os vocábulos são “kléptes” e “lestes”. KLEPTES significa embusteiro, enganador, o que age com dissimulação, não necessariamente o ladrão. Na língua portuguesa, existe a palavra “cleptomania”, aplicada às pessoas que têm um desvio de conduta, anomalia que as leva a se apoderarem de bens alheios furtivamente, até sem ter necessidade, apenas pela emoção de surrupiar. E a palavra grega “LESTES” deriva do verbo “lesteuô”, que significa fazer pirataria, portanto, “lestes” é o pirata, o usurpador. No grego como no latim, ambas as palavras têm a ver com o furto e podem ser traduzidas, genericamente, por ladrão. Mas me parece que essas explicações dos vocábulos gregos ajudam a compreender um sentido mais profundo por trás do conceito do mau pastor. O ladrão e o assaltante põem as ovelhas para correr e assim não podem ser comparadas com um pastor. Já o enganador, o impostor, o usurpador tentam se passar pelo autêntico pastor e podem, sim, enganar as ovelhas. São os lobos travestidos de cordeiros, outra figura também emblemática nesse contexto. Por isso, penso que esses estereótipos são mais compatíveis com a figura do mau pastor do que os conceitos comuns de ladrão e assaltante. Mais adiante, no versículo 12 (que não faz parte da leitura de hoje), João compara o mau pastor com o mercenário, que está mais relacionado com a figura do usurpador, do enganador, o que reforça a minha conclusão de que os termos “ladrão e assaltante” não são os mais adequados para a tradução.


Então, o bom pastor é o que entra pela porta e as ovelhas conhecem sua voz e o seguem. Logo em seguida, ao fazer uma explicação mais direta, porque pareceu que seus interlocutores não haviam entendido, Jesus diz claramente: digo-lhes uma coisa – eu sou a porta, (Jo 10, 7) quem entrar por mim será salvo (Jo 10, 9). Observemos a transmutação dos conceitos: o bom pastor torna-se a própria porta por onde as ovelhas devem entrar, ele entra pela porta e se transforma na própria porta do aprisco. Mais do que o simples condutor do rebanho, como são todos os pastores convencionais, Jesus se identifica como a porta por onde as ovelhas devem entrar para encontrarem pastagens abundantes. Aí está a grande novidade. Transcendendo o conceito de bom pastor para a porta da verdade, Jesus está se autoafirmando como Deus. Ele não apenas conduz os seus seguidores para Deus, mas quem crê nele e, portanto, passa através dele, já chegou a Deus. Concretamente, no âmbito de nossas vidas, a porta por onde passamos para chegar até Jesus é o nosso batismo, pelo qual passamos a fazer parte do seu “rebanho”. Assim, voltamos ao trecho da leitura de Atos, citado acima, quando Pedro responde aos que o interrogaram sobre o que deviam fazer: convertam-se e aceitem o batismo de Jesus. (At 2, 38) Aceitar o batismo significa escolher a porta certa, a porta da verdade, que conduz à salvação.


Meus amigos, o batismo não é um fato do nosso passado, de quando ainda éramos infantes e nossos pais nos levaram a receber esse divino dom. Esse evento foi apenas o momento da entrada, mas nós continuamos a caminhar na estrada da salvação. Por isso, o batismo deve se renovar a cada dia, na nossa missão junto à família, à sociedade, à profissão, através do nosso testemunho de pertença ao rebanho de Cristo, pelo qual as pessoas com quem convivemos possam perceber em nós a marca que identifica os verdadeiros cristãos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 22 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - 23.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – FICA CONOSCO, SENHOR – 23.04.2023


Caros Confrades,


Neste terceiro domingo da Páscoa, a liturgia nos dá uma pequena demonstração da dificuldade que Jesus teve para instruir o grupo de seus discípulos, de modo a que pudessem sair propagando a sua “boa nova”. Quando nós lemos essas narrativas sobre os primórdios do cristianismo, entendemos melhor de que modo a mão de Deus protegeu e guiou essas primeiras comunidades, de forma a mantê-las vivas e ativas, após o final da missão de Cristo. Muitas pessoas dizem: “ah, o Império Romano promoveu a Igreja e lhe deu sustentação política...” é fato histórico que isso aconteceu, porém não naqueles momentos iniciais, quando predominava a perseguição. Esse apoio institucional de Roma só aconteceu no século IV, por obra do imperador Constantino. Mas até lá, foram mais de 300 anos de muita luta e muita resistência às perseguições cruéis, até que o vento soprasse favoravelmente. A Igreja de Cristo não dependeu do Império Romano para se manter, ao longo desses 300 anos iniciais, ao contrário, os imperadores romanos anteriores a Constantino tentaram, de diversas maneiras, destruir essas comunidades. Sem deixar de mencionar também a perseguição que os primeiros cristãos sofreram por parte dos chefes dos sacerdotes judeus, conforme se veem relatos nos Atos dos Apóstolos.


As duas primeiras leituras deste domingo dão ênfase ao trabalho de Pedro, nos primórdios do cristianismo (Atos 2, 14-33 e 1Pd 1, 17-21). Na primeira leitura, um trecho dos Atos dos Apóstolos relata que Pedro faz uma pregação para o povo no dia de Pentecostes e ele faz uma interpretação bastante extensiva do Salmo 15, atribuído a Davi, no qual este assim canta: “meu corpo no repouso está tranquilo; pois não haveis de me deixar entregue à morte, nem vosso amigo conhecer a corrupção - este salmo é rezado também na liturgia de hoje – aludindo a que Davi estaria profetizando a ressurreição de Cristo. Vejamos como Pedro interpretou essa passagem: “o patriarca Davi morreu e foi sepultado e seu sepulcro está entre nós até hoje. Mas, sendo profeta, sabia que Deus lhe jurara solenemente que um de seus descendentes ocuparia o trono. É, portanto, a ressurreição de Cristo que previu e anunciou com as palavras.” Não é preciso grande esforço para perceber que o estilo da pregação de Pedro não tem a força persuasiva, a construção elegante do raciocínio e a profundidade reflexiva dos escritos de Paulo. E Pedro era, mesmo assim, aquele mais esperto, tanto que foi indicado por Cristo como líder do grupo. Percebe-se que Pedro não tinha lá um grande entrosamento com as Escrituras e foi buscar um trecho de um salmo para tirar daí uma conclusão bem diferente do que os exegetas habitualmente fazem. Os salmos não são livros proféticos, são cânticos ora de louvor, ora de arrependimento, ora de confissão, ora de lamento, além do que Davi não era exatamente um profeta. Com todo respeito à figura apostólica singular de Pedro, mas sabe-se que ninguém dá o que não tem e, no caso dele, nem mesmo com a suprema inspiração do Espírito Santo, ele foi muito feliz na referência ao rei Davi. Ou seja, se a Igreja de Cristo tivesse que depender somente da pregação dos onze discípulos originais, teria sucumbido logo no início. Essa dificuldade pedagógica de Jesus, sobre a qual falávamos acima, teve uma solução exemplar: Jesus cooptou Paulo, um judeu fervoroso, perseguidor implacável para transformá-lo no mais fervoroso discípulo e propagador do evangelho. O chamado de Paulo foi consequência dessa dificuldade que Jesus enfrentou para formar um grupo de discípulos e continuadores do seu trabalho, dada a grande limitação humana dos vocacionados galileus.


Na segunda leitura, da primeira Carta de Pedro (1Pd 1, 17-21), vemos uma referência aos judeus cristãos, que se espalhavam por toda a Ásia Menor. Pedro escrevia para as primeiras comunidades cristãs, compostas por judeus convertidos, que sofriam as represálias dos judeus tradicionalistas, que os rejeitavam. Daí o discurso de Pedro, lembrando a antiga aliança e sua atualização feita por Jesus: “Sabeis que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais, não por meio de coisas perecíveis, como a prata ou o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo.” (1 Ped 1, 18). Pedro faz o contraponto entre a “vida fútil” da antiga Lei e a vida nova no sangue de Cristo, que inaugura a nova aliança. Os biblistas colocam em dúvida a autoria desta carta de Pedro, por causa de certas semelhanças com o estilo de Paulo, porém outros justificam que o escriba desta carta teria sido Silas, que era discípulo de Paulo, e ao escrever a pedido de Pedro, teria mostrado uma certa influência paulina. Também o versículo anterior a este denota que os destinatários eram judeus dispersos, que viviam em locais onde pagãos e judeus não convertidos eram maioria e tinham atitudes hostis para com os judeus convertidos: vivei então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste mundo.” (17) A palavra traduzida por “migração”, no texto acima, corresponde no original grego ao vocábulo “paroikias”, que significa a situação daquele 'que vive num país estrangeiro' e isso se aplicava nos dois sentidos, tanto no sentido material político da época (cristãos vivendo em cidades judias) quanto no sentido espiritual da “peregrinação” terrestre, a caminho do céu. Como deve ser do conhecimento de todos, enquanto Pedro e os outros discípulos desenvolveram seu trabalho na Ásia Menor, onde havia a maior quantidade de população judia, o trabalho de Paulo se voltou para as comunidades gregas, na época dominada pelos romanos, expandindo suas atividades até a própria Roma, abrindo caminho para Pedro depois se estabelecer por lá.


O texto do evangelho de Lucas (24, 13-35) relata o conhecido episódio dos discípulos que fugiam para Emaús. Essa história é contada apenas pelo evangelista Lucas, com o seu característico estilo cheio de detalhes, só faltou dizer o nome do segundo discípulo. O texto mostra como Jesus precisou sair correndo atrás daqueles dois fujões, que haviam se desgarrado do grupo que ficara em Jerusalém, certamente desiludidos com os últimos acontecimentos. E como foi difícil para eles reconhecerem a Jesus e compreenderem o significado de tudo o que acontecera. Conforme o testemunho de Lucas, Jesus censurou aqueles dois apressados: 'Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?' (Lc 24, 25-26). E precisou repetir toda a catequese, relacionando com as escrituras e, por fim, somente no ato de partir o pão eles o identificaram. Então, voltaram imediatamente para Jerusalém (diz o evangelho que ficava a cerca de 11 km, distância do centro de Fortaleza a Messejana) e, chegando lá, encontraram os outros reunidos e relataram para eles a experiência que tiveram. A leitura do evangelho de hoje termina nesse ponto, mas no versículo seguinte, diz que “enquanto eles ainda estavam falando, Jesus apareceu no meio deles” (36) e eles ficaram amedrontados, pensando que estavam vendo um fantasma. Foi preciso Jesus dizer: 'por que estais perturbados? Sou eu...Vede as minhas mãos e pés...' que coisa mais incrível. Os dois estavam falando justamente que haviam conversado com Jesus ressuscitado e, ato contínuo, Jesus lhes apareceu e não conseguiram reconhecê-lo. Quão difícil foi, para Jesus, preparar esse pequeno grupo para dar continuidade ao seu trabalho messiânico.


Além dessa dificuldade de natureza pedagógica e administrativa, foram muitos os entraves de ordem política que os primeiros cristãos tiveram de enfrentar. O próprio apóstolo Paulo relatou que precisou, às vezes, sair de uma cidade às pressas, com medo de ser apedrejado pelos seus perseguidores, que eram judeus fanáticos e Paulo, com sua formação judaica, os desafiava. E depois vieram as perseguições mais audazes e destruidoras por parte das autoridades romanas, que vitimaram os dois grandes líderes Pedro e Paulo no mesmo ano, embora não juntos, na época do imperador Nero. Este e Diocleciano fizeram o maior massacre de cristãos naquele tempo, algo similar ao que ainda ocorre nos dias de hoje em alguns países islâmicos, na Europa e na África. Ultimamente, a extrema esquerda na Nicarágua também vem produzindo perseguições aos católicos. Mas a mesma força da fé que mantinha unidos os cristãos dos primeiros tempos, também opera com os de hoje, que passam por severas provações. Nós, que temos uma vida relativamente calma em relação a essas políticas agressivas e sangrentas de outros países, não conseguimos fazer ideia do que é ser cristão em situação adversa. Contudo, no passado tanto quanto hoje, a presença de Cristo e os dons do Espírito fortalecem os cristãos que são perseguidos, mantendo-os firmes nas suas convicções.


Pois bem, meus amigos. Essas recordações dos tempos heroicos dos primeiros missionários devem servir para nos fortalecer também na nossa fé, quando tomamos consciência do quanto eles tiveram de suportar para testemunharem a Cristo, enquanto nós, muitas vezes por comodismo ou por preguiça, nos esquivamos de demonstrar a nossa fé e o nosso compromisso, através das nossas atitudes, pelas quais devemos ser identificados como discípulos de Cristo. O tempo pascal se presta para refletirmos sobre a nossa vocação cristã e para avaliarmos o grau de nossa fidelidade à fé que professamos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 15 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - 16.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – VER E CRER – 16.04.2023


Caros Confrades,


Estamos no segundo domingo da Páscoa ou domingo da oitava da Páscoa. O Papa João Paulo II estabeleceu que este domingo deveria ser comemorado como o Domingo da Misericórdia, criando a Festa da Divina Misericórdia, a ser celebrada sempre nesta ocasião. Na tradição milenar da Igreja Católica, o domingo após a Páscoa tem o nome de Dominica in Albis (o domingo da brancura), porque na antiga oitava da Páscoa, aqueles que se haviam batizado na Vigília Pascal e haviam passado toda a semana em comemoração, usando sua veste batismal, reuniam-se novamente e ali depunham solenemente essas vestes brancas, voltando a usar suas roupas comuns e se inserindo na comunidade, juntando-se aos outros irmãos da fé. A tradição de celebrar a “oitava” de uma festa religiosa, como acontece na Páscoa, está também ligada a um antigo costume judaico, que é anterior à Páscoa cristã. Trata-se da festa religiosa judaica dos pães ázimos, que tem duração de sete dias, na qual eles comemoram, até os dias de hoje, a saída do povo hebreu do Egito, sob o comando de Moisés, fato ocorrido há quase 4.000 anos. Convém recordar ainda que os pães ázimos dos hebreus, o pão sem fermento, prefiguram a Sagrada Eucaristia como a temos hoje, em que a hóstia é preparada com o trigo não fermentado.


Nas leituras litúrgicas deste domingo, temos na primeira um conhecido trecho dos Atos dos Apóstolos (At 2, 42-47), que narra o modo de vida das primeiras comunidades cristãs, cujo exemplo permanece como desafio constante a todos nós: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.” (At 2, 44-45) Penso que esse modo de vida só existiu mesmo naqueles primeiros tempos, uma irmandade total e irrestrita. Depois que o cristianismo se foi infiltrando no mundo romano, sobretudo no meio da população mais rica de Roma, essa disponibilidade e repartição dos bens já não era assim tão exemplar. Se observamos bem, foi isso que o Seráfico Patriarca Francisco colocou na sua regra, no século XIII, como o voto de pobreza, porque então já não se praticava mais a partilha entre os cristãos. Até o Papa da época, Inocêncio III, duvidou que alguém conseguisse viver desse modo... Quanta ironia, era como se esse comportamento não estivesse de acordo com o evangelho que ele, como Papa, devia conhecer e ser o primeiro a observar. Atualmente, as relações sociais se tornaram muito mais complexas e a vivência desse ideal precisa passar por um conjunto de ajustes hermenêuticos, a fim de ser posto em prática. Por isso, o testemunho das primeiras comunidades cristãs permanece como um desafio sempre atual para os cristãos de todos os tempos, conclamando-os a buscarem viver autenticamente o evangelho de Cristo, de acordo com as peculiaridades de cada segmento histórico.


A segunda leitura é retirada da primeira carta de Pedro. Poucas vezes, a liturgia seleciona trechos de escritos não paulinos, como é o caso deste domingo. Esta carta de Pedro foi dirigida aos judeus convertidos de língua grega dispersos nas províncias romanas da Ásia Menor (Ponto, Galácia, Capadócia, Bitínia), numa época difícil de perseguição por motivos religiosos. Pedro incentiva os novos cristãos daquelas paragens evocando aspectos autobiográficos, exemplos de sua própria vida como apóstolo de Cristo, lembrando-lhes que é necessário suportar provações passageiros, para merecer a glória do céu. Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira - mais preciosa que o ouro perecível, que é provado no fogo - e alcançará louvor, honra e glória no dia da manifestação de Jesus Cristo. (1Pd 1,7) Mas também esse trecho da carta é escolhido porque sintoniza com a leitura do evangelho, no testemunho de João, que narra o famoso episódio da falta de fé manifestada pelo apóstolo Tomé acerca da ressurreição de Cristo. Exaltando os cristãos, Pedro afirma: Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais. (1Pd 1,8) Apenas uma informação de curiosidade: Pedro não era um homem de letras, todos sabem que ele era um pescador, ou seja, Pedro não sabia escrever, aliás, fato que era bastante comum naquele tempo, em que havia os escribas profissionais. Então a carta de Pedro foi manuscritada por seu discípulo Silvano.


Na leitura do evangelho de João (Jo 20, 19-31), o tema é a incredulidade de Tomé, um dos textos bíblicos mais conhecidos e que, naquela época, era muito utilizado na catequese dos primeiros cristãos. O evangelista João, no seu intuito catequético, faz questão de narrar com detalhes o acontecimento, como uma forma de fortalecer a fé dos convertidos, numa metodologia que hoje se chama de “pedagogia reversa”, isto é, toma como referência o contra exemplo de Tomé, que queria ver para crer, e associa isso com a reprimenda de Jesus, para vitalizar a atitude dos novos cristãos que creem sem ter visto. É interessante observar que Lucas narra esse episódio (24, 36-49) sem mencionar a reação de Tomé. A narrativa de João traz esta particularidade, porque ele estava presente no momento do fato, diferentemente dos outros evangelistas, que escreveram baseados em outras fontes literárias. Ademais disso, devemos considerar que João escreveu seu evangelho mais tardiamente e certamente já conhecia os textos dos outros evangelistas, isso fez com que ele acrescentasse detalhes que considerou importantes e que os outros podiam ter omitido. O próprio João ainda justifica: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro.” (2, 30) Ou seja, João sabia de mais coisas, que não escreveu, mas provavelmente contava oralmente aos cristãos do seu tempo. Daí se originam as tradições orais de fatos que, mesmo não estando escritos, são aceitos e acreditados pelos fiéis desde os primeiros tempos. Além disso, o evangelho de João tinha um propósito bem definido de servir como texto-base para uso na catequese das primeiras comunidades, quando o cristianismo se difundia velozmente entre as populações estrangeiras. Outro exemplo disso podemos observar no diálogo de Jesus com a samaritana (Jo 4,5), mostrando como Jesus acolhia bem os não judeus.


Um outro detalhe que se percebe nesse ponto da narrativa joanina é a referência ao “primeiro dia da semana”, que era o dia preferido para Jesus aparecer aos discípulos. Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles...” (Jo 20,19). Um pouco adiante, repete de modo análogo: Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa... (Jo 20, 26), isto é, uma semana depois, portanto, no primeiro dia da semana novamente. É interessante analisarmos essa tradução portuguesa de “primeiro dia da semana”. Se consultarmos o texto latino de S. Jerônimo, ele escreveu assim: “Cum ergo sero esset die illo una sabbatorum...”, que significa “portanto, como já fosse tarde naquele dia, um dia depois do sábado...” isto é, ele não diz que é o “primeiro dia” e sim que é o dia depois do sábado. A tradução portuguesa é que adapta a expressão para “primeiro dia da semana”, porque a semana dos judeus terminava no shabat e os apóstolos eram judeus. Deduz-se daí que, nessa época, o sábado era ainda o dia mais importante da semana, porque prevalecia a tradição judaica. Para a cultura judaica, ainda hoje, o dia termina com o por-do-sol e aí tem início o dia seguinte. Dizer, portanto, que já era tarde da noite de sábado equivale a dizer que já passava do por-do-sol e já era a “feria prima”, o primeiro dia da semana (o nome domingo não existia naquela época). Por isso, algum tempo depois, os cristãos começaram a notar essa preferência de Jesus para realizar coisas prodigiosas no “dia depois do sábado”, sendo este também o dia em que ele ressuscitou, razão pela qual o Concílio de Nicéia (325 d.C.) mandou transferir o dia do repouso (shabat) para o dia depois do sábado, ou seja, o primeiro dia da semana, que passou a chamar-se “dominica”, isto é, o dia do Senhor. É a tradição que seguimos até os dias de hoje.


E sobre a festa da Divina Misericórdia, celebrada hoje, o Papa Francisco recordou a instituição desse dia em 2000, por João Paulo II, afirmando: “Eis o sentido da misericórdia que se apresenta no dia da ressurreição de Jesus como perdão dos pecados. Jesus ressuscitado transmitiu à sua Igreja, como primeira tarefa, a sua própria missão de levar a todos o anúncio concreto do perdão. Este sinal visível da sua misericórdia traz consigo a paz do coração e a alegria do encontro renovado com o Senhor”, ”


Meus amigos, neste domingo especial da oitava da Páscoa e festa da Divina Misericórdia, renovo a todos os votos de uma contínua e permanente ressurreição, na labuta diária de cada um.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 9 de abril de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA PÁSCOA - 09.04.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 09.04.2023 – DIA DO SENHOR


Caros Confrades,

Sempre no domingo de páscoa eu faço a comemoração do aniversário desses comentários, pois foi na Páscoa de 2011 que comecei a escrevê-los, atendendo a algumas solicitações de Colegas, e com isso pus-me a rever e aprofundar os conceitos bíblico-teológicos da nossa fé cristã. Associando isso aos estudos de hebraico, que passei a fazer em 2014, procuro integrar os costumes judaicos com a fé cristã, pois esta faz a continuidade e a atualização do judaísmo antigo. A vivência religiosa de todos nós deve estar numa incessante evolução, pela qual vamos superando certos conceitos recebidos na juventude e que hoje devem ser repaginados. Existe muito romantismo associado à festa da Páscoa, sobretudo quando são lidos os textos do Êxodo, acerca da saída dos hebreus do Egito, por volta do século XIV antes de Cristo. Certamente a narração bíblica é permeada com elementos culturais literários didático-pedagógicos para a catequese dos judeus daquele tempo. Precisamos ultrapassar esse nível do texto para adentrar no seu conteúdo mais profundo.


Numa abordagem histórica, os pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos estacionários em determinados locais, onde passaram a plantar alimentos e criar animais, deixando assim de ser nômades, e assim formaram as primeiras comunidades humanas. Ou seja, a festa da páscoa originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da sociedade humana. Este momento histórico e geográfico que, no hemisfério norte, corresponde ao término do inverno e à chegada da primavera, coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar após o degelo invernal, começando a produzir os primeiros frutos da terra. Com as nuvens se dissipando no céu, a lua podia ser divisada mais facilmente e a primeira lua cheia após o inverno passou a ser festejada como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes, tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde tempos imemoriais.

Como podem verificar, nós celebramos a páscoa pelo ciclo geográfico europeu, isto é, a páscoa dos povos do norte, pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos cósmicos no hemisfério sul, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro. Estando a festa da Páscoa relacionada com a primeira lua cheia da primavera europeia, já imaginaram se nós, ocidentais e austrais, fôssemos seguir o mesmo esquema para a definição da data da páscoa? Deixaria de ser uma festa comemorada universalmente, como é nos dias atuais, pois haveria a Páscoa do norte e a do sul. Porém, essa divergência geográfica de fato não fará diferença, uma vez que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após a ressurreição de Cristo.


Numa abordagem teológica, a festa cristã da Páscoa passou a ser celebrada logo depois que foi proclamada a liberdade religiosa no império romano, o que se deu com o imperador Constantino, em 313 d.C. O século IV da era cristã foi um período de muitas definições dogmáticas e doutrinárias, tendo em vista diversas heresias que se disseminavam no meio cristão, havendo a necessidade do trabalho de refinamento teológico de insignes Doutores da fé, expurgando doutrinas contrárias ao ensinamento de Cristo, sendo necessário ainda, por diversas ocasiões, a reunião de Concílios ecumênicos, com o objetivo de serem debatidas as verdades teológicas que formam o núcleo central da doutrina cristã. Foi nesse contexto que houve o debate acerca da definição da data da Páscoa, bem como das diversas solenidades que compõem o ano litúrgico. Foi nessa ocasião também que se deu uma importante e radical mudança, que foi motivo de muita discussão e ainda hoje divide opiniões, a mudança do “shabat”, ou seja, do descanso semanal, que passou do sábado para o domingo. A partir da consciência da magnitude da ressurreição de Cristo como sendo o evento mais importante de todo o mistério da redenção, as autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia dominical. Essa definição caracteriza também a passagem da tradição do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e de Laodicéia (364).


Nesses concílios, ficou decidido que a festa da Páscoa seria no domingo que sucede a lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de referência o dia 21 de março. Desse modo, o domingo que sucede a lua cheia após 21 de março de cada ano é a data da festa da Páscoa. Essa definição, porém, continua sendo ponto de discórdia entre a igreja católica romana e as igrejas católicas orientais, pois estas consideram que foi uma imposição do império romano, do mesmo modo que a celebração do Natal, também definida na mesma oportunidade, teria sido feita para atender a um pedido do imperador Constantino. Atualmente, a mim parece que não é mais o caso de levar adiante tal discussão, porque seria de pouca utilidade prática e o calendário internacional não iria ser alterado por conta disso. Assim, a data da páscoa continua seguindo o calendário lunar, gerando divergências com as demais datas, que se orientam pelo calendário solar, mas isso é administrado de uma forma já convencional e não acarreta maiores transtornos. Embora não haja uma coincidência exata de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os tempos ancestrais.


A Páscoa, portanto, originalmente está associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a geografia europeia, pois naquela época as terras do hemisfério sul terrestre não eram conhecidas). Dentro da economia da salvação, o plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um sentido totalmente novo e inusitado. Integrando o Antigo com o Novo Testamento, há uma curiosidade interessante: a entrada de Jesus em Jerusalém deu-se no 10º dia do mês de Nissan, data que corresponde à prescrição constante em Êxodo 12:3-6, dia em que, de acordo com a Lei de Moisés, um cordeiro era separado do rebanho e colocado à disposição para ser sacrificado na Páscoa. Nesse dia, entrando triunfalmente em Jerusalém, Jesus foi colocado à disposição dos sumos sacerdotes judeus para ser sacrificado, uma coincidência que, sem dúvida, une os dois Testamentos. Após a ressurreição de Cristo, a Páscoa deixou de ser apenas uma festa das colheitas do campo, da celebração da vida natural, da cultura humana, e veio assumir uma dimensão especial na economia da salvação, transmudando o seu sentido para a dimensão espiritual e alcançando não apenas os habitantes de uma região do mundo, mas toda a humanidade. Jesus ia todos os anos a Jerusalém, para celebrar a Páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus, sacerdotes e chefes do povo. Ali, ele se colocou à disposição. Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.


As primeiras comunidades cristãs não perceberam essa nova dimensão dos fatos logo no início e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana, após o shabat. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e, portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue, continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de significado do “sábado-dia do descanso” para o “domingo-dia do senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia da semana. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, passou a ser, então, a nova referência para as festividades pascais.


Meus amigos, quando hoje celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele, nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para além, portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro significado.

Renovados votos de Feliz Páscoa a todos.
Antonio Carlos