COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA PÁSCOA – 09.04.2023 – DIA DO SENHOR
Caros Confrades,
Sempre no
domingo de páscoa eu faço a comemoração do aniversário desses
comentários, pois foi na Páscoa de 2011 que comecei a escrevê-los,
atendendo a algumas solicitações de Colegas, e com isso pus-me a
rever e aprofundar os conceitos bíblico-teológicos da nossa fé
cristã. Associando isso aos estudos de hebraico, que passei a fazer
em 2014, procuro integrar os costumes judaicos com a fé cristã,
pois esta faz a continuidade e a atualização do judaísmo antigo. A
vivência religiosa de todos nós deve estar numa incessante
evolução, pela qual vamos superando certos conceitos recebidos na
juventude e que hoje devem ser repaginados. Existe muito romantismo
associado à festa da Páscoa, sobretudo quando são lidos os textos
do Êxodo, acerca da saída dos hebreus do Egito, por volta do século
XIV antes de Cristo. Certamente a narração bíblica é permeada com
elementos culturais literários didático-pedagógicos para a
catequese dos judeus daquele tempo. Precisamos ultrapassar esse nível
do texto para adentrar no seu conteúdo mais profundo.
Numa abordagem histórica, os
pesquisadores não sabem a origem da festa da páscoa, porque essa é
uma tradição que se perde no tempo. Estima-se que a páscoa começou
a ser celebrada desde que os seres humanos começaram a formar grupos
estacionários em determinados locais, onde passaram a plantar
alimentos e criar animais, deixando assim de ser nômades, e assim
formaram as primeiras comunidades humanas. Ou seja, a festa da páscoa
originalmente estaria integrada com o próprio surgimento da
sociedade humana. Este momento histórico e geográfico que, no
hemisfério norte, corresponde ao término do inverno e à chegada da
primavera, coincide com o tempo em que as árvores iniciam a brolhar
após o degelo invernal, começando a produzir os primeiros frutos da
terra. Com as nuvens se dissipando no céu, a lua podia ser divisada
mais facilmente e a primeira lua cheia após o inverno passou a ser
festejada como o tempo da primeira colheita, tempo de fartura e da
prosperidade, celebrando a paz entre a natureza e os seus habitantes,
tempo em que os animais também acasalam e a vida sobre a terra se
renova. Este seria o sentido primitivo da páscoa, festejada desde
tempos imemoriais.
Como podem verificar, nós celebramos a páscoa pelo ciclo geográfico europeu, isto é, a páscoa dos povos do norte, pois se fôssemos considerar os mesmos fenômenos cósmicos no hemisfério sul, a nossa páscoa seria celebrada no mês de setembro. Estando a festa da Páscoa relacionada com a primeira lua cheia da primavera europeia, já imaginaram se nós, ocidentais e austrais, fôssemos seguir o mesmo esquema para a definição da data da páscoa? Deixaria de ser uma festa comemorada universalmente, como é nos dias atuais, pois haveria a Páscoa do norte e a do sul. Porém, essa divergência geográfica de fato não fará diferença, uma vez que nós não celebramos a páscoa pelo seu significado histórico e cultural, mas pelo sentido religioso que essa festa passou a ter após a ressurreição de Cristo.
Numa abordagem teológica, a festa cristã da Páscoa passou a ser celebrada logo depois que foi proclamada a liberdade religiosa no império romano, o que se deu com o imperador Constantino, em 313 d.C. O século IV da era cristã foi um período de muitas definições dogmáticas e doutrinárias, tendo em vista diversas heresias que se disseminavam no meio cristão, havendo a necessidade do trabalho de refinamento teológico de insignes Doutores da fé, expurgando doutrinas contrárias ao ensinamento de Cristo, sendo necessário ainda, por diversas ocasiões, a reunião de Concílios ecumênicos, com o objetivo de serem debatidas as verdades teológicas que formam o núcleo central da doutrina cristã. Foi nesse contexto que houve o debate acerca da definição da data da Páscoa, bem como das diversas solenidades que compõem o ano litúrgico. Foi nessa ocasião também que se deu uma importante e radical mudança, que foi motivo de muita discussão e ainda hoje divide opiniões, a mudança do “shabat”, ou seja, do descanso semanal, que passou do sábado para o domingo. A partir da consciência da magnitude da ressurreição de Cristo como sendo o evento mais importante de todo o mistério da redenção, as autoridades cristãs permutaram o antigo dia sabático pelo dia dominical. Essa definição caracteriza também a passagem da tradição do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Canonicamente, essa mudança foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e de Laodicéia (364).
Nesses concílios, ficou decidido que a festa da Páscoa seria no domingo que sucede a lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte, que tem como data de referência o dia 21 de março. Desse modo, o domingo que sucede a lua cheia após 21 de março de cada ano é a data da festa da Páscoa. Essa definição, porém, continua sendo ponto de discórdia entre a igreja católica romana e as igrejas católicas orientais, pois estas consideram que foi uma imposição do império romano, do mesmo modo que a celebração do Natal, também definida na mesma oportunidade, teria sido feita para atender a um pedido do imperador Constantino. Atualmente, a mim parece que não é mais o caso de levar adiante tal discussão, porque seria de pouca utilidade prática e o calendário internacional não iria ser alterado por conta disso. Assim, a data da páscoa continua seguindo o calendário lunar, gerando divergências com as demais datas, que se orientam pelo calendário solar, mas isso é administrado de uma forma já convencional e não acarreta maiores transtornos. Embora não haja uma coincidência exata de datas, no entanto a festividade pascal, em todas as culturas, é celebrada sempre nesse mesmo período do ano, desde os tempos ancestrais.
A Páscoa, portanto, originalmente está associada à renovação da vida na terra, (no caso, considerando a geografia europeia, pois naquela época as terras do hemisfério sul terrestre não eram conhecidas). Dentro da economia da salvação, o plano salvífico de Deus fez coincidir a ressurreição de Cristo com essa simbólica festividade da humanidade setentrional, dando-lhe um sentido totalmente novo e inusitado. Integrando o Antigo com o Novo Testamento, há uma curiosidade interessante: a entrada de Jesus em Jerusalém deu-se no 10º dia do mês de Nissan, data que corresponde à prescrição constante em Êxodo 12:3-6, dia em que, de acordo com a Lei de Moisés, um cordeiro era separado do rebanho e colocado à disposição para ser sacrificado na Páscoa. Nesse dia, entrando triunfalmente em Jerusalém, Jesus foi colocado à disposição dos sumos sacerdotes judeus para ser sacrificado, uma coincidência que, sem dúvida, une os dois Testamentos. Após a ressurreição de Cristo, a Páscoa deixou de ser apenas uma festa das colheitas do campo, da celebração da vida natural, da cultura humana, e veio assumir uma dimensão especial na economia da salvação, transmudando o seu sentido para a dimensão espiritual e alcançando não apenas os habitantes de uma região do mundo, mas toda a humanidade. Jesus ia todos os anos a Jerusalém, para celebrar a Páscoa com os discípulos, mas Ele sabia que naquela vez seria diferente, daí ter preparado tudo, conforme descrevem os evangelistas, inclusive aquela entrada triunfal, sendo aclamado com ramos de palmeiras, de modo a chamar bem a atenção dos fariseus, sacerdotes e chefes do povo. Ali, ele se colocou à disposição. Tudo fora preparado, no plano divino, para que a antiga páscoa dos homens fosse transformada na nova Páscoa de Cristo.
As primeiras comunidades cristãs não perceberam essa nova dimensão dos fatos logo no início e continuaram celebrando o dia do Senhor no sábado, como era a tradição judaica. Mas depois foram percebendo que, com a ressurreição de Cristo, a Páscoa tinha ganho um novo sentido e aquela tradição sabática precisava ser superada pela celebração dominical, porque Jesus havia ressuscitado no primeiro dia da semana, após o shabat. Aqueles que não creem em Cristo como o Salvador e, portanto, não reconhecem o novo testamento escrito com o seu sangue, continuam guardando o sábado. Ou algumas denominações cristãs radicais que, mesmo acreditando em Cristo, não aceitam a mudança de significado do “sábado-dia do descanso” para o “domingo-dia do senhor” e continuam a guardar o sétimo dia, em vez do primeiro dia da semana. O novo significado da Páscoa, como festa da vida renovada, da vida plena e definitiva, da vida que supera a morte devia ser comemorada como uma nova festa, com um novo simbolismo. O dia da ressurreição do Senhor, o primeiro dia da semana, passou a ser, então, a nova referência para as festividades pascais.
Meus amigos, quando hoje
celebramos a Páscoa, devemos nos lembrar disso: pela Páscoa da
ressurreição de Cristo, nós ganhamos um verdadeiro motivo para
comemorar, qual seja, a nossa redenção, a conquista da nossa vida
plena e definitiva, que Cristo antecipou para nós com a sua
ressurreição dos mortos e nos deu a certeza de que, assim como Ele,
nós também teremos a nossa vitória sobre a morte e sobre o pecado
e um dia nos uniremos com Ele, junto do Pai, na morada eterna. Para
além, portanto, das costumeiras saudações de Feliz Páscoa ou
mesmo utilizando essa costumeira terminologia, nossas palavras passam
a ter um novo sentido, se estivermos conscientes do seu verdadeiro
significado.
Renovados votos de Feliz Páscoa a
todos.
Antonio Carlos
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