COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 30º DOMINGO COMUM – A VERDADEIRA JUSTIÇA – 27.10.2013
Caros Confrades,
As leituras da liturgia
deste 30º domingo comum nos levam a meditar sobre a verdadeira
justiça, aquela que não faz discriminação de pessoas e também
atribui a cada um o valor compatível com a sua essencialidade.
Segundo a lição de Aristóteles, a melhor justiça é aquela
praticada com equidade, a justiça perfeita. Equidade, derivada da
palavra latina “aequs” significa exatamente algo que é plano,
sem altos e baixos, sem pender para nenhum dos lados. E já diz o
ditado popular: a justiça, para ser boa, tem que começar de casa.
Na primeira leitura,
extraída do livro do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição
de Javeh como o justo juiz. O livro do Eclesiástico, cuja autoria é
atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito para lembrar aos hebreus,
numa época de mudanças sócio-políticas, a fidelidade de Javeh
contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria divina. Esta
expressão “lei de Moisés” não significa um texto legislativo
específico, mas refere-se à aliança e à promessa de Javeh com
Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo que não podem
misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos povos
estrangeiros, porque assim estariam desrespeitando os compromissos
assumidos pelos patriarcas. Então, entra a figura do justo juiz, que
bem acolhe aqueles que O servem como Ele o quer, e não deixa de
atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da
sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A
prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá
repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça
justiça aos justos e execute o julgamento.”
(Eclo, 35, 21) Esta referência do Eclesiástico irá encontrar eco,
tempos depois, na oração do publicano, que Jesus compara com a
oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas, lido também
neste domingo.
A segunda leitura,
dando continuidade ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos
domingos anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, no qual
Paulo comenta que combateu o bom combate, terminou a carreira e
guardou a fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele
agora espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu
sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé
e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória
a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com
tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o
tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta,
quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores,
esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo,
pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos
cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma
e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a
persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo
imperador Nero, que usava os cristãos como bode expiatório do seus
próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico imperador
para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor, e que
dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa de
Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os
historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição,
os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo,
tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes
riscos que isso acarretava.
Na leitura do evangelho
deste domingo, dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14),
temos a muito conhecida parábola em que Jesus faz a comparação
entre a oração do fariseu e a oração do publicano. De acordo com
o próprio evangelista, o objetivo desta parábola que Jesus tinha em
mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos,
nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é
clássica: o fariseu arrogante e convencido fazendo elogios a si
mesmo e, ao mesmo tempo, lançando um ar de desprezo para com o
publicano, pecador público, que estava rezando ao seu lado. Enquanto
isso, o publicano rezava, sem fazer qualquer juízo sobre si mesmo ou
sobre seu vizinho, mas apenas pedindo perdão. Como em diversas
outras ocasiões, Jesus está sempre tomando o exemplo dos fariseus
para nos ensinar que o cumprimento da lei não é bastante, é
necessário ter atitudes coerentes e agir com humildade. Os fariseus
se consideravam justos, porque cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo
duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda”) e,
por isso, estavam automaticamente salvos. Já os que não cumpriam os
preceitos, os desonestos, os adúlteros, os ladrões, estes estavam,
por sua vez, automaticamente condenados (“como esse cobrador de
impostos”).
Observemos que Jesus
não diz que o fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo
para ser cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia
de si próprio e do seu próximo, ou seja, na sua falta de humildade.
O livro do Eclesiástico, conforme lido na primeira leitura, já
dizia que a prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu
e suas súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha
uma elevada presunção de santidade, segundo a sua própria justiça,
não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que
julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o
seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a
salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa
justificado, o fariseu, não.
Podemos fazer aqui uma
ligação com outra parábola na qual Jesus compara o óbulo da viúva
com a oferta do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou
apenas duas pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários
dobrões, que tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva
ofertou mais do que todos eles, porque deu tudo o que possuía. As
viúvas, naquele tempo, eram pessoas excluídas da sociedade, embora
não fossem classificadas como pecadoras, mas a perda do marido era
entendida como um castigo de Deus, como se aquela pessoa fosse
amaldiçoada. Elas eram segregadas e, em geral, viviam
miseravelmente, porque não participavam da divisão dos bens da
herança, que era feita apenas entre os descendentes e ascendentes do
falecido. Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo
anterior, Jesus não censura o fariseu por colocar moedas valiosas,
mas recrimina o modo como ele se considera autêntico cumpridor da
lei, porque dá o dízimo de toda a sua renda. O problema está no
autojulgamento, isto é, no fato de ele se considerar, por isso, um
merecedor da salvação, confiando-se na sua própria justiça e não
na justiça divina.
Meus amigos, nesse
contexto, devemos nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos
Coríntios (10, 12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que
não caia. O autojulgamento é uma tentação constante na nossa
vida. Nos nossos dias, há muitos cristãos que pensam já estar com
a salvação garantida porque vão à missa aos domingos, participam
dos sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem
isso como uma obrigação formal, como uma conduta tradicional, não
colocam o coração junto com a sua oferta, não extrapolam dessas
atitudes religiosas individuais para a concretude da fé vivida na
comunidade. Essa atitude do fariseu, dramatizada por Cristo na
parábola, pode ser uma ameaça velada e constante na nossa prática
de cristãos, sobretudo quando acompanhada do julgamento que fazemos
do nosso próximo, com o qual inconscientemente nos comparamos. A
parábola do fariseu e do publicado deve ser permanente motivo de
exame de consciência de todos nós, para que evitemos a sempre
cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes dos outros,
valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça. Algumas vezes,
censuramos o comportamento de outras pessoas e, posteriormente, nos
surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes. Daí a oportuna
exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de pé, cuide para
que não caia. Antes de observarmos maldosamente as ações do nosso
próximo, devemos tentar compreender seus motivos e, se for o caso,
ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em vez de
criticá-los. Assim, estaremos deixando de julgar pela nossa justiça
pessoal e deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.