domingo, 27 de outubro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - A VERDADEIRA JUSTIÇA - 27.10.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – A VERDADEIRA JUSTIÇA – 27.10.2013

Caros Confrades,

As leituras da liturgia deste 30º domingo comum nos levam a meditar sobre a verdadeira justiça, aquela que não faz discriminação de pessoas e também atribui a cada um o valor compatível com a sua essencialidade. Segundo a lição de Aristóteles, a melhor justiça é aquela praticada com equidade, a justiça perfeita. Equidade, derivada da palavra latina “aequs” significa exatamente algo que é plano, sem altos e baixos, sem pender para nenhum dos lados. E já diz o ditado popular: a justiça, para ser boa, tem que começar de casa.

Na primeira leitura, extraída do livro do Eclesiástico (35, 15-22), temos a descrição de Javeh como o justo juiz. O livro do Eclesiástico, cuja autoria é atribuída a Jesus Ben Sirac, foi escrito para lembrar aos hebreus, numa época de mudanças sócio-políticas, a fidelidade de Javeh contida na Lei de Moisés, que é a verdadeira sabedoria divina. Esta expressão “lei de Moisés” não significa um texto legislativo específico, mas refere-se à aliança e à promessa de Javeh com Abraão e seus descendentes, lembrando ao povo que não podem misturar o judaísmo tradicional com os novos costumes dos povos estrangeiros, porque assim estariam desrespeitando os compromissos assumidos pelos patriarcas. Então, entra a figura do justo juiz, que bem acolhe aqueles que O servem como Ele o quer, e não deixa de atender às preces daqueles que o invocam, sobretudo os excluídos da sociedade (pobres, órfãos e viúvas), os mais humildes. “A prece do humilde atravessa as nuvens: enquanto não chegar não terá repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha, faça justiça aos justos e execute o julgamento.” (Eclo, 35, 21) Esta referência do Eclesiástico irá encontrar eco, tempos depois, na oração do publicano, que Jesus compara com a oração do fariseu, no trecho do evangelho de Lucas, lido também neste domingo.

A segunda leitura, dando continuidade ao texto da segunda carta a Timóteo, iniciada nos domingos anteriores (2Tim 4, 6-18), é o epílogo da carta, no qual Paulo comenta que combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé. Tendo cumprido a sua missão, recebida de Cristo, ele agora espera apenas o desfecho final de sua vida, sabendo que o seu sacrifício está cada vez mais próximo. E faz sua confissão de fé e confiança no Senhor, justo juiz, que outorgará a coroa da vitória a ele e a todos os que permanecerem firmes na fé. Fala ainda, com tristeza, dos amigos que o abandonaram no seu julgamento perante o tribunal, pedindo que o mesmo justo juiz não leve isso em conta, quando chegar o tempo do julgamento deles. Segundo os historiadores, esta carta teria sido, provavelmente, a última escrita por Paulo, pouco antes de sua morte, na época da grande perseguição dos cristãos pelo imperador Nero, que mandou incendiar a cidade de Roma e colocou a culpa disso nos cristãos, insuflando os romanos a persegui-los. Numa época de grandes arbitrariedades cometidas pelo imperador Nero, que usava os cristãos como bode expiatório do seus próprios desmandos, Paulo aproveita a imagem do sádico imperador para fazer o contraponto com o justo juiz, que é o Senhor, e que dará a coroa a todos os que combatem o bom combate. A queixa de Paulo sobre ter sido abandonado na prisão em Roma, segundo os historiadores, deveu-se ao fato de que, com a grande perseguição, os amigos de Paulo na sociedade romana, que eram cristãos em sigilo, tinham muita dificuldade em ir visitá-lo, por causa dos evidentes riscos que isso acarretava.

Na leitura do evangelho deste domingo, dando sequência ao evangelista Lucas (18, 9-14), temos a muito conhecida parábola em que Jesus faz a comparação entre a oração do fariseu e a oração do publicano. De acordo com o próprio evangelista, o objetivo desta parábola que Jesus tinha em mente era ensinar que não se deve confiar nos próprios julgamentos, nem a respeito de si nem a respeito dos outros. A cena descrita é clássica: o fariseu arrogante e convencido fazendo elogios a si mesmo e, ao mesmo tempo, lançando um ar de desprezo para com o publicano, pecador público, que estava rezando ao seu lado. Enquanto isso, o publicano rezava, sem fazer qualquer juízo sobre si mesmo ou sobre seu vizinho, mas apenas pedindo perdão. Como em diversas outras ocasiões, Jesus está sempre tomando o exemplo dos fariseus para nos ensinar que o cumprimento da lei não é bastante, é necessário ter atitudes coerentes e agir com humildade. Os fariseus se consideravam justos, porque cumpriam rigorosamente a lei (“jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de toda a minha renda”) e, por isso, estavam automaticamente salvos. Já os que não cumpriam os preceitos, os desonestos, os adúlteros, os ladrões, estes estavam, por sua vez, automaticamente condenados (“como esse cobrador de impostos”).

Observemos que Jesus não diz que o fariseu agia mal em cumprir a lei, pois a lei é mesmo para ser cumprida. O problema está no julgamento que o fariseu fazia de si próprio e do seu próximo, ou seja, na sua falta de humildade. O livro do Eclesiástico, conforme lido na primeira leitura, já dizia que a prece do humilde atravessa as nuvens e chega até o céu e suas súplicas são sempre atendidas. O fariseu da parábola tinha uma elevada presunção de santidade, segundo a sua própria justiça, não segundo a justiça divina. E com a mesma facilidade com que julgava a si mesmo uma pessoa santa, também arriscava-se a julgar o seu próximo, pecador público, como alguém que não merecia a salvação e o perdão. Ora, diz Jesus, o publicano voltou para casa justificado, o fariseu, não.

Podemos fazer aqui uma ligação com outra parábola na qual Jesus compara o óbulo da viúva com a oferta do fariseu (Marcos 12, 43), quando a viúva colocou apenas duas pequenas moedas, enquanto o fariseu depositou vários dobrões, que tilintavam no fundo do cofre. E Jesus concluiu: a viúva ofertou mais do que todos eles, porque deu tudo o que possuía. As viúvas, naquele tempo, eram pessoas excluídas da sociedade, embora não fossem classificadas como pecadoras, mas a perda do marido era entendida como um castigo de Deus, como se aquela pessoa fosse amaldiçoada. Elas eram segregadas e, em geral, viviam miseravelmente, porque não participavam da divisão dos bens da herança, que era feita apenas entre os descendentes e ascendentes do falecido. Seguindo a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior, Jesus não censura o fariseu por colocar moedas valiosas, mas recrimina o modo como ele se considera autêntico cumpridor da lei, porque dá o dízimo de toda a sua renda. O problema está no autojulgamento, isto é, no fato de ele se considerar, por isso, um merecedor da salvação, confiando-se na sua própria justiça e não na justiça divina.

Meus amigos, nesse contexto, devemos nos lembrar da advertência do apóstolo Paulo aos Coríntios (10, 12): aquele que pensa estar de pé, cuide para que não caia. O autojulgamento é uma tentação constante na nossa vida. Nos nossos dias, há muitos cristãos que pensam já estar com a salvação garantida porque vão à missa aos domingos, participam dos sacramentos, rezam o terço, pagam o dízimo, etc., mas fazem isso como uma obrigação formal, como uma conduta tradicional, não colocam o coração junto com a sua oferta, não extrapolam dessas atitudes religiosas individuais para a concretude da fé vivida na comunidade. Essa atitude do fariseu, dramatizada por Cristo na parábola, pode ser uma ameaça velada e constante na nossa prática de cristãos, sobretudo quando acompanhada do julgamento que fazemos do nosso próximo, com o qual inconscientemente nos comparamos. A parábola do fariseu e do publicado deve ser permanente motivo de exame de consciência de todos nós, para que evitemos a sempre cômoda atitude de fazer julgamento das atitudes dos outros, valendo-nos do nosso próprio conceito de justiça. Algumas vezes, censuramos o comportamento de outras pessoas e, posteriormente, nos surpreendemos praticando aquelas mesmas atitudes. Daí a oportuna exortação do apóstolo Paulo: quem pensa estar de pé, cuide para que não caia. Antes de observarmos maldosamente as ações do nosso próximo, devemos tentar compreender seus motivos e, se for o caso, ajudá-lo a superar seus defeitos e dificuldades, em vez de criticá-los. Assim, estaremos deixando de julgar pela nossa justiça pessoal e deixando essa tarefa para o justo juiz de todos nós.


domingo, 20 de outubro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - A RIQUEZA DA ORAÇÃO - 20.10.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM –A RIQUEZA DA ORAÇÃO – 20.10.2013

Caros Confrades,

Neste 29º domingo comum, terceiro do mês de outubro, a Igreja comemora o Dia das Missões, lembrando e pedindo colaboração material para apoio dos missionários que viajam pelo mundo afora pregando a palavra de Cristo. Nas leituras litúrgicas, o tema para a nossa reflexão é a riqueza da oração. No domingo passado, comentamos sobre a oração de agradecimento. Neste domingo, Jesus nos fala da importância do pedido em forma de oração, ensinando-nos que devemos orar sempre e sem cessar.

O Pai do céu sabe das nossas necessidades, por que então devemos pedir-lhe algo? Qual o pai que não está sempre pronto para atender às carências dos seus filhos, mesmo sem que eles peçam? Então, porque Jesus ensina que o Pai do céu quer que sempre peçamos e de forma insistente? Pode parecer uma incoerência no ensinamento de Jesus, mas a verdade é que, embora Ele saiba das nossas necessidades, Deus quer a nossa colaboração, para que sejamos merecedores. Quando Jesus diz “orai sempre, orai sem cessar”, isso não significa ficar o dia todo de joelhos, com o terço na mão ou com um livro devocional recitando coleções de preces das mais diversas espécies, mas sim que a nossa vida toda deve ser uma oração. Nós estamos orando não apenas quando pronunciamos palavras ou quando as temos no pensamento, mas a nossa oração se expande para as nossas atividades rotineiras, quando através das nossas ações, estamos manifestando aos irmãos elementos concretos da nossa fé pelo nosso testemunho de vida do evangelho. Esta é a colaboração que Deus espera de nós. Podemos ver isso nos textos litúrgicos deste domingo.

Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 8-13), lemos o episódio da batalha dos hebreus com os amalecitas, contando com a participação ativa de Moisés, à distância. Enquanto as tropas lutavam, as mãos de Moisés erguidas carreavam a vitória para os israelitas; quando Moisés abaixava os braços, os amalecitas levavam vantagem. Contudo, pela idade e pelo longo espaço de tempo, Moisés não conseguia manter os braços levantados e isso punha em risco o resultado da batalha. Então, seus auxiliares Ur e Aarão apoiaram os braços de Moisés, para que ele conseguisse mantê-los erguidos até a vitória final dos israelitas. Excluindo desse episódio o seu conteúdo bélico, podemos descobrir no ato de Moisés levantar os braços uma atitude de oração, que deve ser contínua e persistente. Abaixar os braços significa fraquejar na oração, o que acontece, muitas vezes, na nossa vida de pessoas imperfeitas. Daí a necessidade que Moisés teve de ser ajudado por seus assessores significa a necessidade que nós temos de buscar apoio e solidariedade na comunidade dos irmãos. A oração solitária tem seu valor, sem dúvida, mas para ele ser mais fortalecida, precisa de ser realizada com a comunidade. Aqui está a importância da oração eclesial, da missa, das atividades devocionais realizadas no templo. Nos momentos desta oração eclesial, os nossos braços simbólicos erguidos ao céu, tal como os de Moisés, são ajudados pela comunidade, para que as nossas forças sejam multiplicadas. Nesses momentos, ocorre uma colaboração recíproca: ao mesmo tempo em que os irmãos nos ajudam a manter os “braços erguidos”, cada um de nós também ajuda o outro no mesmo sentido. Sem deixar de reconhecer a importância da oração secreta, individual, interior, devemos também reconhecer a importância da oração comunitária, como forma de exercer uma troca recíproca de energias e um ressoar mais forte do nosso brado orante.

Na segunda leitura, prosseguindo com o texto da 2a carta a Timóteo, que vem sendo lida já há vários domingos, temos hoje o trecho em que Paulo adverte o seu pupilo sobre a importância de utilizar a Sagrada Escritura como ponto de partida para a oração. “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir e para educar na justiça.” (2Tim 3, 16) A oração da comunidade sempre deve ter como referência a Escritura, pois é dela que retiramos os conteúdos mais próprios para compor a nossa oração e os ensinamentos mais eficazes para se transformarem em ações na nossa vida cotidiana. Além disso, a Palavra também tem o dom de aconselhar diante de situações problemáticas da vida e de repreender o nosso comportamento, quando ele se distancia daquilo que Deus quer de nós. Por isso, Paulo exorta a Timóteo: “eu te peço com insistência – proclama a palavra” (4,1), insiste, admoesta quer agrade, quer desagrade, usando de toda paciência e doutrina. As Sagradas Escrituras “têm o poder de te comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus.” (2Tim 3, 15) Ler a Bíblia ou, melhor dizendo, meditar a Bíblia é a oração mais produtiva para o direcionamento das nossas práticas de acordo com a nossa vocação cristã. Eu diria que a leitura do Novo Testamento será mais indicada, dado o seu conteúdo cristológico mais explícito.

Na leitura do evangelho de Lucas (18, 1-8), Jesus recorre à sua conhecida pedagogia das parábolas para explanar de forma bem didática a sua doutrina. No caso, temos a parábola do juiz injusto. O próprio evangelista diz que o objetivo desta parábola é demonstrar a necessidade de orar sempre e nunca esmorecer. Mas antes de adentrar nesse conteúdo, eu gostaria de destacar a figura do juiz injusto, uma contradição em si mesma. Todos sabemos que o objetivo da tarefa do juiz é distribuir a justiça. Assim pensando, um juiz injusto seria um antijuiz. Dentro das tribulações de cada dia, é bem possível que um juiz cometa injustiças, mas certamente isso não seria intencional, ao menos, não se espera isso de ninguém que exerça tal função na sociedade. Pois bem, mas prescindindo do ofício de julgar típico da sociedade organizada, podemos também considerar que nós, os não juízes de profissão, por vezes nos tornamos juízes das ações dos nossos irmãos, quando avaliamos e tiramos conclusões sobre o comportamento das pessoas e podemos até ofendê-las com a falta de equilíbrio nos nossos julgamentos. Se para um juiz profissional a prática de atos injustos acarreta uma autocontradição, assim também para nós, quando nos tornamos juízes inescrupulosos das atitudes do nosso próximo, estamos contradizendo o significado mais profundo da fraternidade, que deve ser a marca registrada do cristão.

Passando agora ao tema da oração sem cessar, através da parábola do juiz injusto, Jesus nos ensina que devemos orar sempre e nunca perder a confiança. A viúva retratada na parábola insistiu por muito tempo com o juiz ímprobo, pedindo que ele lhe fizesse justiça. Por fim, o juiz resolveu atendê-la, não pelo seu amor à justiça, mas apenas para livrar-se da importunação. Daí, Jesus conclui: se até um juiz injusto, diante da insistência de uma viúva, acaba por agir com justiça, quanto mais o vosso Pai do céu, que é sempre justo, nunca deixará de fazer justiça aos seus escolhidos. No entanto, o que Jesus ressalva nesse contexto é o poder que a oração tem para fazer acontecer o bem na nossa vida. Isso não quer dizer que devamos todos os dias pedir a Deus para acertar sozinho na mega sena, até que um dia Deus vai permitir, nem que seja para se livrar da importunação. Não se trata disso, claro. O que devemos pedir na oração é para sermos pessoas melhores, para conseguirmos superar as nossas fraquezas e imperfeições, para sermos sempre fiéis à nossa vocação de cristãos. A oração de quem simplesmente pede a Deus que lhe conceda bens materiais não se enquadra no conceito de orar sempre, que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Para conseguir obter bens materiais o que é preciso é ter disposição para trabalhar com afinco e dedicação e, aí sim, vamos pedir a Deus que abençoe o nosso trabalho, para que os seus frutos sejam férteis e se multipliquem.

Uma prática devocional que é também muito corriqueira no nosso povo é “fazer promessas” aos santos para obter isso e aquilo. É uma espécie de “comércio” sagrado: dá-me isso que eu te darei aquilo. Certamente, não é esse o modelo de oração que Jesus ensina na parábola do juiz injusto. Tal como no caso de Moisés com os braços elevados ou no caso da viúva que insistia perante o juiz, o que Deus espera de nós é que façamos a nossa parte. Não se trata de desafiar Deus com uma promessa, pois Deus não precisa de nenhum favor nosso, ao contrário, nós é que precisamos dos favores divinos. Não se trata de fazer o pedido e ficar com os braços cruzados, esperando que um milagre aconteça simplesmente. O milagre vai acontecer se nós fizermos a nossa parte com seriedade, sinceridade e persistência. O milagre vai acontecer na proporção do tamanho da nossa fé, da qual a oração deve ser a fiel expressão.


domingo, 13 de outubro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 28º DOMINGO COMUM - SABER AGRADECER - 13.10.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO COMUM – SABER AGRADECER – 13.10.2013

Caros Confrades,

Neste 28º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão o tema da gratidão. Saber agradecer é tão importante ou até mais do que saber pedir. Muitas vezes, em nossas orações, estamos sempre pedindo a Deus alguma coisa, no entanto, nem sempre nos lembramos de agradecer os favores recebidos. Se pensarmos bem, a vida de cada dia é uma grande dádiva que Deus nos concede a cada amanhecer.

Vemos na primeira leitura, do segundo livro dos Reis (5, 14-17), o episódio da cura de um estrangeiro, o sírio Naaman. O profeta Eliseu demonstra nesse fato que Javeh é Deus não apenas dos hebreus, mas também dos povos estrangeiros. A misericórdia de Deus não alcança apenas aqueles que o louvam e oferecem sacrifícios, mas a todas as pessoas de coração sincero. Naaman representa todas as raças e nações que não nasceram sob a aliança com Javeh, ou seja, ele é um exemplo precoce da nossa situação de cristãos, que não somos descendentes dos povos da aliança. Duas particularidades chamam a nossa atenção na cura de Naaman. Primeiro, o fato de ele não ter acreditado de início. Na leitura de hoje, não há esse trecho, mas nos versículos anteriores, o autor sagrado narra que Naaman teria se aborrecido quando o profeta Eliseu mandou que ele fosse tomar banho sete vezes no rio Jordão. Ora, disse ele, na minha terra há rios de águas mais límpidas e cristalinas, porque tenho eu de tomar banho nesse rio sujo daqui? Foi quando um servo ponderado o repreendeu: se o profeta tivesse mandado fazer algo difícil, tu irias, então por que não fazes essa que é tão fácil? Naaman, que era uma pessoa sensata, compreendeu e obedeceu. E por que sete banhos? Porque Deus, quando faz as coisas para nós, quer a nossa participação, não entrega o objeto já pronto. Naaman precisou cumprir os sete banhos para, no final, ficar sarado. Se ele não tivesse colaborado com a sua parte integralmente, banhando-se as sete vezes, a cura não teria ocorrido. Nós também precisamos fazer a nossa parte completamente, para ficarmos em condições de receber a misericórdia divina.

A segunda particularidade que destacarei no episódio de Naaman foi o seu agradecimento. Tão logo percebeu que estava curado, ele retornou ao profeta Eliseu para agradecer. Na verdade, ele queria pagar pela cura e o profeta recusou-se totalmente a receber qualquer pagamento. Os dons de Deus não estão à venda, não são objeto de comércio. Naaman tinha a mentalidade pagã de que a divindade deve ser agraciada com bens em troca dos favores recebidos. Lamentavelmente, essa mentalidade está subjacente na cultura cristã tradicional, mercê de uma catequese equivocada do passado. O nosso povo tem a ideia de que “paga” pelo sacramento, pela missa, pelo batizado, pelo casamento realizados no templo, pois foi esse o ensinamento tradicional. Mas desde o Antigo Testamento já vemos os profetas ensinando ao povo que não se compram os dons divinos com oferendas. “Eu quero misericórdia, não sacrifícios”, disse Javeh através do profeta Oséias (6, 6). E Jesus repete isso noutro contexto, conforme consta em Mateus (9, 13). Sem esquecer ainda que o banho miraculoso de Naaman no rio Jordão foi uma antecipação do batismo de Jesus, que ocorreria naquele mesmo rio, séculos depois. Foi como se o profeta Eliseu estivesse antecipando o que seria a pregação futura de João Batista, recordando que a cura de Naaman representou também a sua conversão ao Deus dos hebreus. Ele pediu para conduzir consigo uma porção da terra de Israel, a fim de erigir um altar, no qual reverenciaria Javeh, dali em diante.

Na segunda leitura, prosseguindo a carta a Timóteo que vem sendo lida nesses últimos domingos, o apóstolo Paulo, sofrendo as agruras da prisão por causa do evangelho, fala sobre a fidelidade de Deus, mesmo quando nós somos infiéis a ele (2Tim 2, 13). A nossa gratidão está em permanecermos firmes em Cristo. Ele, Paulo, está sofrendo as algemas como se fosse um malfeitor, no entanto, a palavra de Deus não pode ser algemada. E se ele não pode, naquelas circunstâncias, continuar pregando essa palavra, é dever de Timóteo e de todos os fiéis fazê-lo. A recompensa para essa fidelidade será a glória eterna. Por diversas vezes, Paulo deu graças a Deus pelas comunidades que criou com suas pregações e pelas lideranças que ali deixou, continuando o seu trabalho. Era o caso de Timóteo, que Paulo havia deixado como lider da comunidade de Éfeso, por quem ele tinha especial afeição.

Na leitura do evangelho de Lucas (17,11-19), temos aquele conhecido episódio da cura dos dez leprosos, dos quais apenas um retornou para agradecer. E Jesus cobra essa desatenção perante a comunidade que assistiu ao retorno daquele estrangeiro agradecido. Convém recordar que a lepra era, desde tempos remotos e até tempos recentes, uma moléstia segregativa. Os doentes eram obrigados a sairem da cidade e viverem às margens das estradas, única forma que tinham para não morrerem de fome, já que também não podiam trabalhar. Na sua caminhada para Jerusalém, Jesus deve ter encontrado vários grupos deles, assim como todos os viajantes encontravam e, em geral, os socorriam com bens materiais. Mas no caso do episódio narrado pelo evangelista, eles queriam do viajante Jesus algo mais valioso: a cura. As notícias sobre o poder de Jesus corriam de boca em boca, impossível não saber de quem se tratava naquela comitiva passante. Os biblistas comentam que esses grupos de segregados tinham uma liderança, o que era necessário para a auto sustentação do próprio grupo. O evangelista não menciona o nome de nenhum dos enfermos, nem do lider, porque o seu intuito não é destacar essa ou aquela pessoa, mas mostrar novamente, assim como aconteceu com o sírio Naaman, que a misericórdia divina não se destina apenas a um grupo de escolhidos, mas a todos os povos. No caso dos leprosos curados, o único que retornou para agradecer era um samaritano. Para os hebreus, samaritano era mais do que um estrangeiro, era um inimigo. Tal como aconteceu na parábola do “bom samaritano”, Jesus dá um destaque especial para os estrangeiros, ou seja, as pessoas de boa vontade, que mesmo não pertencendo ao “povo da aliança”, no entanto, agem melhor do que estes.

O agradecimento demonstrado pelo leproso curado samaritano e posto em evidência por Jesus nos proporciona diversas lições. Primeiro, que sempre devemos nos lembrar de agradecer. Não é que Jesus precisasse daquele agradecimento, porque ele sempre fez tudo de forma absolutamente gratuita e às vezes até proibia que as pessoas saíssem falando a respeito dele. Portanto, o elogio pelo agradecimento daquele que retornou, e ao mesmo tempo a crítica pelos que não retornaram, não significa que Jesus quisesse isso, esperasse por isso, mas para nos ensinar que devemos também saber agradecer, da mesma forma que sabemos pedir. Segundo, tal como no caso de Naaman, Jesus também não curou os dez leprosos imediatamente, mas mandou que antes eles fizessem alguma coisa, no caso, mandou que eles fossem se apresentar ao sacerdote. E, enquanto caminhavam, eles observaram que estavam curados. Novamente aqui está presente a mesma lição de que, para recebermos as graças divinas, nós precisamos fazer a nossa parte e não ficarmos de braços cruzados esperando que as coisas aconteçam simplesmente. Terceiro, Jesus chamou a atenção para os outros nove curados, que eram do povo da aliança, os quais, tal como os fariseus, tinham o coração duro e fechado, incapazes de reconhecer o poder de Jesus, de aceitarem a sua palavra. Já os estrangeiros eram bem mais receptivos aos seus ensinamentos de Jesus e bem mais dignos dos favores divinos. E Jesus louva a fé daquele estrangeiro, pois for por ela que ficou curado. Não só neste caso, mas em diversos outros momentos, Jesus sempre repetiu o mesmo bordão: vai em paz, a tua fé te salvou.

A nossa oração de agradecimento deve ser assim uma consequência da nossa fé. Se nós nos acostumarmos a observar os acontecimentos, iremos enxergar que Deus nos cumula de favores a todo momento, até mesmo sem que nós peçamos. Saber detectar isso é o primeiro passo para saber agradecer. Podemos observar no “modelo” de oração que Jesus deixou, o Pai Nosso, que o seu principal conteúdo é de agradecimentos e expressão de fé no poder e na vontade divinos. Santificado seja o teu nome, venha o teu reino, faça-se a tua vontade. Depois é que vêm os pedidos: propicia o nosso sustento, perdoa nossas faltas, livra-nos do mal. Jesus não estava ensinando as palavras de uma oração, mas sim a estrutura desta, como ela deve ser composta, como é que nós devemos nos dirigir ao Pai nas nossas atividades de cada dia. E podemos ver que a estrutura da oração perfeita é aquela em que nós agradecemos mais do que pedimos. E os pedidos não devem ser coisas individuais, egoístas, interesseiras, mas direcionados para o bem de todos os nossos semelhantes. Lá no Noviciado, nos foi ensinado que o trabalho é, por si, uma oração, um trabalho orante, como deve ser, aliás, toda a nossa vida. Nós oramos melhor não é quando nos ajoelhamos e dizemos fórmulas memorizadas, mas quando empenhamos todas as nossas forças no trabalho e nas rotinas diárias para construir um mundo mais fraterno para todos.


domingo, 6 de outubro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - A VIDA NA FÉ - 06.10.2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – A VIDA NA FÉ – 06.10.2013

Caros Confrades,

Neste 27º domingo comum, as leituras litúrgicas abordam o tema da fé e a sua inserção na nossa vida cotidiana. A vivência na fé é um exercício reflexivo permanente, para perceber e compreender a ação de Deus na nossa vida. O produto da fé é a justiça. O justo vive pela fé.

Na primeira leitura, retirada do profeta Habacuc (trechos dos cap. 1 e 2), vemos o profeta reclamando de Javeh porque clama e não é atendido. Habacuc tem a ousadia de questionar Javeh: “até quando clamarei sem que me atendas?”, o que é uma atitude incomum no Antigo Testamento, onde a figura de Javeh é mostrada como um Deus irado e vingativo, quase intolerante. O profeta não tinha dúvidas de que fazia a súplica do modo correto, no entanto, nada acontecia. Javeh, então, mostrou a Habacuc uma visão desoladora, da qual ele ficou com muito medo, e Javeh disse: escreve isso em tábuas, para que fique fácil para o povo ler. E espera, porque ainda nesta geração, essas coisas acontecerão. Os infiéis morrerão, mas os justos viverão pela sua fé. A grande catástrofe que estava por vir era a invasão dos exércitos da Babilônia, a destruição de Jerusalém e a captura do povo como escravos daquele país. O profeta ficou deveras preocupado, porque pedia um castigo de Deus para o povo infiel, mas não imaginava que Ele fosse tão impiedoso. O próprio Habacuc foi levado como escravo para a Babilônia, algum tempo depois, de acordo com a promessa de Javeh. No entanto, sendo justo, ele sobreviveu e foi libertado, também de acordo com a promessa de Javeh.

Falando em cativeiro da Babilônia, vem logo à mente aquela conhecida ária de Giuseppe Verdi “Va Pensiero”, na qual o compositor retrata a situação dos hebreus cativos a chorar e a lamentar-se, lembrando de Sião. O castigo de Javeh foi realmente muito severo e o povo compreendeu o tamanho da sua infidelidade. “Oh mia patria, si bella e perduta... oh membranza si cara e fatal”. Esta bela página musical evoca muitas lembranças e emoções dos Colegas, que embora não estivessem cativos e nem na Babilônia geográfica, de todo modo encontravam-se em auto exílio nas paragens messejanenses, décadas atrás. Va, pensiero, sull'alli dorate, va, ti posa su Seminario Serafico...

Na segunda leitura, continuando a carta de Paulo a Timóteo, que vem sendo lida nos domingos anteriores, o Apóstolo exorta o discípulo a permanecer firme na fé, “pois Deus não nos deu um espírito de timidez mas de fortaleza, de amor e sobriedade.” (2Tim 1,7). Paulo escreveu esta carta enquanto estava preso, aguardando julgamento pelo tribunal romano, por causa da sua fé em Jesus Cristo. Nesse contexto, ele convida Timóteo a sofrer com ele, Paulo, prisioneiro, fortificado pelo poder de Deus. Na carta a Filipenses (1, 21), Paulo também escreveu que “para mim, viver é Cristo e morrer é lucro”, porque ele sabia muito bem que a morte não tiraria a sua vida na fé em Cristo, pelo contrário, morrer pela fé apenas abrevia os sofrimentos e introduz o fiel na vida plena. Paulo escreveu diversas cartas enquanto estava preso e, em todas elas, dá o testemunho de sua fé irrestrita, mesmo antevendo as provações que o aguardavam. Ele compreendia muito bem a palavra de Javeh ao profeta Habacuc: o justo vive pela fé.

Temos na leitura do evangelho de hoje (Lc 17, 5-10) exemplos práticos dados pelo próprio Cristo sobre a avaliação que cada um pode fazer da medida da sua fé. É a conhecida passagem: “'Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: `Arranca-te daqui e planta-te no mar', e ela vos obedeceria. ” (Lc 17, 6) Meus amigos, é hora de cada um baixar sua cabeça e refletir sobre o “tamanho” da sua fé. Talvez seja necessário usar uma grande lente para podermos observá-la. Um grão de mostarda é menor do que um caroço de arroz cru, do que uma semente de gergelim. É óbvio que se trata de um raciocínio metafórico, porque a fé não pode ser comparada a um objeto físico. Mas se alguém fizer uma comparação entre a sua altura e o tamanho de uma semente dessas, verá uma enorme desproporção. Assim também deverá acontecer quando compararmos a altura do nosso orgulho com o tamanho da nossa fé. E imaginemos que essa fé, ainda que minúscula, seria capaz de transportar uma montanha. Nem vamos continuar essa linha de raciocínio...

Ainda sobre o tema da fé, vale recordar o evangelho de Mateus, cap. 14, onde lemos aquele conhecido episódio em que os discípulos estavam pescando à noite, com um mar agitado, e viram Jesus caminhando sobre as águas. Pedro, como sempre, impetuoso, disse logo: posso ir também? E foi bem no início, mas logo começou a afundar. “E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?” (Mt 14, 31). Homens de pouca fé é o que nós todos somos. A atitude de Pedro simboliza um comportamento comum em todos nós, seres humanos inseguros, perpassados pela dúvida. Quantas vezes, nos lamentamos diante de certas ocorrências e até pensamos que Deus se esqueceu de nós. Homem de pouca fé, por que duvidaste? Continua Jesus a dizer para nós. O justo viverá pela sua fé, ecoa do outro lado a visão do profeta Habacuc.

O autor da carta aos Hebreus (foi comprovado pelos biblistas que não é da autoria de Paulo) faz a definição talvez mais perfeita da fé em linguagem humana: “A é uma posse antecipada do que espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem.” (Hb 11,1) Para a teologia cristã, a fé é um estado de espírito no qual a pessoa se envolve irresistivelmente com o objeto de sua crença, convencendo-se da realidade invisível por meio de uma experiência existencial profunda. Em vista de uma melhor compreensão deste fenômeno, ao longo do tempo, os teólogos têm buscado na filosofia um auxílio racional para esclarecer o sentido do enigma que envolve a fé. Os grandes expoentes da filosofia e teologia medievais foram unânimes em afirmar que não existe oposição, mas uma relação de complementaridade entre a fé e a razão. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno, sempre defenderam esse ponto de vista, o que vem servindo de apoio logístico para a doutrina teológica até os dias de hoje.

Faz pouco tempo, o Papa Francisco veio a publicar uma encíclica, que na verdade foi escrita pelo Papa Bento XVI, mas que o Seráfico Papa burilou segundo seu estilo e publicou em seu nome. Trata-se da encíclica “Lumen Fidei” (Luz da Fé). No n.º 7desse documento, o Papa escreveu: «Estas considerações sobre a fé - em continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal - pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição». Quanta humildade e sabedoria ao Papa Francisco. No número 32, ele continua: “O encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no decurso dos séculos até aos nossos dias.”

Nem todos os Colegas que me leem tiveram a oportunidade de estudar o curso de filosofia no Seminário, no qual se estudava basicamente a filosofia tomista. Por um privilégio com que Deus me favoreceu, eu não apenas tive a oportunidade de estudar filosofia em Guaramiranga, de acordo com o modelo do pensamento tomista, como depois vim a cursar filosofia em faculdade convencional, donde me vem a possibilidade de comparar os dois estilos. Enquanto alguns colegas simplesmente procuraram validar seus estudos seminarísticos, eu tomei a iniciativa de fazer o curso completo de filosofia, desde o semestre inicial, o que foi bastante enriquecedor para a minha formação. Nestas linhas, procuro repartir com vocês um pouco do que aprendi.

Voltando ao tema inicial, observamos que na sociedade contemporânea, a tecnologia e o cientificismo tendem a anular a fé ou mostrá-la como atitude de pessoas fracas e sem argumentos. Nos tempos modernos, a fé ficou associada à escuridão, adverte o Papa. Mister se faz encontrar o seu verdadeiro sentido. É quando podemos nos lembrar do profeta Habacuc: o justo viverá por sua fé. Os motivos da fé não devem ser buscados no mundo exterior, mas no íntimo de cada um de nós. Assim, encontraremos a fé que vivifica. E junto com os apóstolos, digamos: Aumenta-nos a fé.