COMENTÁRIO LITÚRGICO – 7º DOMINGO COMUM – SANTUÁRIOS VIVOS – 23.02.2014
Caros Confrades,
Neste 7º domingo comum, a liturgia nos recorda que somos santuários vivos de Cristo, que habita em nós. O apóstolo Paulo esclarece isso na primeira carta aos Coríntios: vós todos sois de Cristo e Cristo é de Deus. Portanto, nós todos somos templos vivos do Espírito Santo, este é o fundamento do amor ao próximo pregado pelo cristianismo, pois todos temos e somos essa mesma prerrogativa.
Na primeira leitura, do livro do Levítico (19, 1-18), Moisés transmite ao povo o recado dado por Javé: sede santos assim como eu sou santo e, recordando o primeiro mandamento, repete o refrão da santidade: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Anos depois, Cristo irá dizer aos discípulos que este é o primeiro e o maior mandamento. Mas a lei de Moisés ainda era muito restritiva em relação a este amor ao próximo, pois considerava o próximo apenas os compatriotas, os amigos, permitindo o ódio aos inimigos. Como sabemos, Cristo veio ampliar o conceito do próximo, estendendo-o inclusive aos “inimigos”, como é o caso famoso da parábola do Bom Samaritano. Aqui está a grande e essencial diferença entre a lei antiga e a nova lei, entre o cumprimento restrito da lei e o cumprimento desta com sabedoria, conforme tema abordado no comentário do domingo passado e que terá continuidade na leitura do evangelho deste domingo, nas próximas linhas.
Paulo diz novamente, na primeira carta aos Coríntios (1Cor 3, 16-23), continuando o ensinamento já abordado no comentário do domingo anterior, que os cristãos não se devem deixar levar pela sabedoria das coisas do mundo, mas pela sabedoria que provém de Deus. E como isso será possível? Porque nós somos santuários de Deus e o Espírito de Deus habita em nós. Aquele que se inebria com a sabedoria mundana é um insensato e destrói em si próprio esse templo onde Deus habita, tornando-se habitação do mal. Assim ele diz no versículo 18: “Ninguém se iluda: Se algum de vós pensa que é sábio nas coisas deste mundo, reconheça sua insensatez, para se tornar sábio de verdade.” Quem não abomina essa sabedoria insensata e fugaz, fundada apenas em conceitos e experiências materiais, ao contrário, a cultua, fecha a porta ao Espírito de Deus e não será capaz de compreender a sabedoria verdadeira. Portanto, nós somente seremos templos vivos do Espírito Santo quando tivermos a mente aberta para aceitar e colocar em prática aquilo que Cristo ensinou, isto é, o verdadeiro cumprimento da lei, o cumprimento desta com sabedoria.
Prosseguindo na mesma temática do domingo passado, temos no dia de hoje a sequência do evangelho de Mateus (5, 38-48), na parte onde Cristo está ensinando com todo o seu engenho pedagógico, o verdadeiro cumprimento da lei, que Ele não veio abolir, mas aperfeiçoar. Neste domingo, Ele nos traz dois novos exemplos, que se somam aos que já comentamos antes.
No primeiro exemplo de hoje, diz Ele: “ouviste o que foi dito aos antigos: olho por olho e dente por dente” (Mt 5, 38). Esse preceito multimilenar está presente em todas as culturas antigas e simboliza o conceito mais antigo de justiça que os seres humanos formularam, isto é, a justiça proporcional ou vingança controlada. Os estudiosos apontam que essa regra do “olho por olho, dente por dente” veio do Código de Hamirábi, um rei que governou a Babilônia cerca de dois mil anos antes de Cristo. Esse preceito foi incorporado nas culturas da época, observando-se referências a ele entre os hebreus, gregos e romanos. Na primeira lei romana, conhecida como Lei das XII Tábuas, essa regra já fora inserida, determinando que uma pessoa não podia “cobrar” da outra mais do que o prejuízo causado, dando início assim ao conceito de equidade, que foi reconhecido posteriormente como sendo o cerne de todos os direitos. Jesus faz referência, portanto, a um preceito bastante conhecido e certamente praticado pelos judeus.
Pois bem, diz Jesus: os antigos ensinaram isso – olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: “não tomem como modelo as pessoas más”. É dessa forma que eu traduzo a frase que está em Mt 5, 39. O original grego transliterado é: “mê antistenai tô ponero”, frase que São Jerônimo traduziu em latim como “non resistere malo”. A tradução da CNBB para esse texto não me parece bem apropriada: “não enfrenteis quem é malvado”. Aqui entre nós, parece-me que São Jerônimo teve um entendimento inadequado do verbo grego “antistenai” e traduziu por “resistire”, que em português seria “resistir”. Mas, pelo meu entendimento, o verbo grego tem o sentido de “não vos compareis” com os maus, isto é, não façais igualmente aos maus, não imitem o comportamento deles. Da forma como está traduzido (não façais resistência aos maus) dá uma idéia de fraqueza, de acovardamento, como se o cristão devesse ter medo dos maus, não reagir aos maus, não enfrentar o malvado. Então, o conselho de “oferecer a outra face” para quem te bate no rosto transmite uma idéia de fraqueza, de não reação. Parece-me que Cristo quis dizer outra coisa: os maus agem assim, vocês, porém, não devem tomar esse comportamento como exemplo, façam diferente deles, não por medo, mas por convicção. Em resumo, não se equiparem aos maus, não repitam suas ações, não se comportem como eles. Esse deve ser, segundo penso, o verdadeiro significado da recomendação de “oferecer a outra face”. Se você revidar um bofete, você estará repetindo o mau exemplo dado por quem lhe ofendeu. Então, não retribua a violência com violência, mas com o amor.
Esta mesma lição nós encontramos em Paulo aos Romanos (12, 20), quando ele diz: “se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, assim amontoarás brasas sobre a sua cabeça”. Fora do contexto bíblico, Pelé ensinava aos jogadores mais jovens: quando algum adversário te empurrar, não faça resistência, caia e ele cairá junto contigo. Porque ele espera que você resista, então ele será surpreendido. Em todas essas situações, o ensinamento é o mesmo, ou seja, não tomem como exemplo o adversário, façam o oposto, faça o que ele não espera, surpreenda-o e assim você terá uma atitude superior, uma atitude de bem, um testemunho de ser verdadeiro seguidor do ensinamento de Cristo.
Complementa esta lição o outro exemplo dado por Cristo, na sequência do evangelho de Mateus (5, 43): os antigos diziam – ama teu próximo e odeia teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, orai pelos que vossos perseguidores. Meus amigos, com essa, Cristo pegou pesado e nos colocou o maior desafio do evangelho. Amar os amigos e odiar os inimigos é fácil. Mas assim, que diferença haverá entre o cristão e o não cristão? Os pagãos também fazem assim, os pecadores, idem. O cristão tem que ser diferente: amar os amigos e os inimigos, fazer o bem a quem faz o mal. O escritor James C. Hunter, no conhecido livro “O monge e o executivo”, faz uma interpretação interessante desse ensinamento de Cristo. Diz ele que na frase “amar os inimigos”, o significado do verbo “amar” é diferente da frase “amar os amigos”. Explicando melhor, seria assim: quanto aos amigos, amar tem o sentido sentimental, afetivo; quanto aos inimigos, tem o sentido puramente comportamental, ético. Então, a frase “amar os inimigos” quer dizer comportar-se de um modo ético mesmo com aquelas pessoas que fizeram algum mal a você, portanto, não exercitar a vingança, não se aproveitar de uma ocasião futura para ir à desforra. Amar os inimigos significaria, dessarte, ser ético com todos, tratar as pessoas más da mesma forma como se deve tratar qualquer pessoa, com ética e dignidade, mesmo que sentimentalmente a sua vontade seja de esganar o adversário.
Parece-me que ele tem certa razão. No texto grego, o verbo que está traduzido por “amai” é “agapate”, donde provém a palavra “ágape”. Quando eu estudei antropologia teológica, aprendi que os gregos conheciam três significados para o verbo “amar”: sentido 1 – amor erótico; sentido 2 – amor amizade; sentido 3 – amor fraternidade. Esse terceiro sentido se refere à convivência humana, ao modo respeitoso como as pessoas devem tratar umas às outras, independente de quem seja. Então, seguindo o raciocínio de J. Hunter, podemos concluir que amar os amigos tem o sentido 2, amar os inimigos tem o sentido 3. Eu continuo pensando que a doutrina de Cristo não faz essa distinção, no entanto, pode ser uma forma de atenuar o rigor do desafio que Cristo nos deixou e, assim fazendo, quem sabe, aos poucos chegaremos a encarar o desafio de forma completa. Que o divino Mestre nos socorra com engenho e arte, para conseguirmos colocar em prática os seus ensinamentos.
domingo, 23 de fevereiro de 2014
domingo, 16 de fevereiro de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO COMUM - O CUMPRIMENTO DA LEI - 16.02.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO COMUM – O CUMPRIMENTO DA LEI – 16.2.2014
Caros Confrades,
Na liturgia deste 6º domingo comum, o tema que escolhi para nossa reflexão é o do cumprimento da lei, não de qualquer forma, mas o autêntico cumprimento da lei. Primeiro, Jesus diz que nenhuma palavra e nenhuma vírgula será retirada da lei antes que tudo seja cumprido. Depois, ele explica como se faz para cumprir a lei com sabedoria, sem apego a fundamentalismos ou ao exagero das palavras.
Na primeira leitura, do livro do Eclesiástico (Eclo 15, 16-21), o autor sagrado faz a relação entre a observância da lei e a vida longa do fiel. Se observares os mandamentos, eles te guardarão. Diante de nós, porém, esclarece o hagiógrafo, estão o bem e o mal, a vida e a morte, cabe a cada um escolher. Obviamente, quem escolhe o bem está escolhendo viver; quem escolhe o mal está escolhendo morrer. Nisso o Senhor não irá intervir, pois ele deu a liberdade ao ser humano para que ele próprio determine os rumos de sua ação. No entanto, o resultado das nossas escolhas já é previamente conhecido. Os olhos do Senhor só se voltam para os que o temem, a ninguém Ele deu licença para pecar. Pecar é fazer a opção pelo mal, pela natureza humana perversa e enganosa, pelo egoísmo e pela falta da caridade. Quem pensa estar se resguardando para si mesmo e não tem abertura para os irmãos se engana, porque quem escolhe fazer o mal não terá a garantia da vida, que é dada somente para os que observam os mandamentos.
Na segunda leitura, o apóstolo Paulo explica à comunidade de Corinto (1Cor 2, 6-10) a diferença entre a sabedoria dos homens e a sabedoria divina. Esta é misteriosa e Deus só a revela para os que lhe são caros. O poder mundano e o prestígio que lhe está associado nunca alcançarão sabedoria misteriosa. A nós, porém, Deus revelou esse mistério pelo Espírito, através dos ensinamentos de Cristo. Agir com sabedoria, portanto, é agir de acordo com os ideais cristãos, é ser um verdadeiro seguidor de Cristo. Essa sabedoria misteriosa é algo que nenhum olho jamais viu, nenhum ouvido jamais ouviu, nenhum coração jamais pressentiu. Por que é assim? Porque ela só é alcançada por intermédio da fé. Somente os olhos e os ouvidos da fé alcançarão o elevado patamar onde essa sabedoria se encontra. Somente com a iluminação que vem do Espírito poderá a pessoa humana ver e ouvir os ensinamentos dessa sabedoria divina.
No evangelho de Mateus (Mt 5, 17-37), num trecho bastante longo, Cristo explica bem detalhadamente como se pode cumprir a lei com sabedoria. Primeiramente, Ele esclarece que não veio revogar a lei ou os profetas, mas veio cumprir a lei como ela deve ser cumprida. Depois, Ele adverte que a lei deve ser cumprida por inteiro: nem uma só letra ou vírgula será retirada da lei, antes que tudo se cumpra. Logo depois, ele faz uma afirmação surpreendente: quem descumprir algum dos mandamentos, por menor que seja, terá no reino dos céus um lugarzinho insignificante, lá atrás daqueles que cumpriram tudo. É curioso observar que Cristo não disse: quem descumprir a lei irá para o inferno. No entanto, continua Ele, se a vossa justiça não for superior à dos mestres da lei e dos fariseus, aí sim, vocês não entrarão no reino dos céus. Qual a diferença que se observa nessas duas advertências? É porque os fariseus e mestres da lei cumpriam os mandamentos de forma errada, exagerando no rigor das palavras e sem levar em consideração a misericórdia divina. Deus não é um fanático ou um burocrata que se preocupa muito mais com o formalismo do que com a consciência. Deus quer que nós cumpramos a lei usando de sabedoria, não como os fariseus o faziam, preocupando-se com detalhes e exterioridades. Então, Cristo vai tirar três exemplos da lei e mostrar, bem claramente, que a busca do espírito da lei deve estar sempre acima das suas formalidades.
Exemplo 1. “Ouviste o que foi dito aos antigos: não matarás. Quem matar, será condenado pelo tribunal.” (Mt 5, 21). Os fariseus interpretavam essa norma no seu sentido puramente literal de matar ser igual a tirar a vida de outrem. Então, Jesus vai dizer que “matar” não é apenas eliminar uma pessoa, mas intrigar-se com o irmão já equivale a matá-lo. Dizer palavrão com o irmão é o mesmo que matá-lo. Ficar com raiva do irmão é outra forma de matá-lo também. E para explicar ainda mais esse novo sentido de “matar”, ele diz: se você estiver diante do altar para fazer a sua oferenda e se lembrar que tem alguma desavença com alguém, não faça a oferta, vá primeiro resolver esse problema. Não adianta fazer a oferenda exteriormente, enquanto o coração está fechado para o irmão. Isso faz lembrar uma homilia do Papa Francisco, na semana passada. Ele disse assim: não saiam da missa fofocando dos irmãos. Quem vai à igreja e sai fofocando depois, é melhor não ir. Vejam que interessante, o Papa está repetindo o mesmo ensinamento de Cristo, atualizando para a linguagem do nosso tempo. Fofocar é uma nova forma de “matar” o irmão. Essa atitude destrói a oração que você fez, ou melhor dizendo, invalida tudo. Quem não vai à igreja disposto a entrar no clima da oração, a encontrar-se com Deus e com irmãos, então é melhor que não vá. Eu nunca tinha sabido de um Papa que tivesse dado um conselho desses. Obviamente, ele não está dizendo que as pessoas não devem ir à igreja, ao contrário, que as pessoas não devem fofocar. Além de ser falta de caridade, produz um mau exemplo para a comunidade. Está descumprindo a lei e ainda levando outras pessoas a descumprirem também.
No outro exemplo, Jesus diz: também foi dito que não se deve cometer adultério. Os fariseus pensavam que adulterar era apenas ter um intercurso sexual com uma mulher. Jesus vem então explicar que não é só isso, mas se tiver apenas o desejo, já cometeu adultério. E esse desejo não significa apenas o instinto sexual, mas qualquer forma de demonstrar inveja por algo que o irmão possui e a pessoa invejosa fica desejando. Não esqueçamos que, na época de Cristo, a mulher era um dos pertences do marido, assim como os rebanhos, as propriedades, os escravos, os bens materiais em geral. Portanto, devemos entender a ordem de “não cometer adultério” como toda forma de desejar os bens do irmão, de invejar-lhe a posição que tem, o prestígio de que desfruta, as amizades que o rodeiam, a personalidade que a pessoa tem. Cometer adultério vai muito além da esfera da sexualidade para alcançar todos os desejos que sejam frutos da cobiça, da inveja, da maldade, do egoísmo, da vontade de dominar, da busca incontrolada pela posse de bens materiais.
Num terceiro exemplo, Jesus diz: também vocês ouviram dizer para não fazerem juramentos falsos. Os fariseus achavam que isso se referia apenas às manifestações exteriores de afirmações ou negações. Eram tão exagerados nesse entendimento que nunca pronunciavam o nome de Javé, por receio de pronunciá-lo em vão. Tanto assim que, atualmente, não se sabe mais como era a pronúncia original dessa palavra, que ficou perdida pelo continuado desuso. Pois bem, diz Jesus, eu digo que vocês não devem jurar de jeito nenhum. Por que havia o costume de fazer juramentos? Porque não se podia acreditar na palavra das pessoas. Então, se alguém jurasse invocando os céus ou os altares ou um lugar sagrado, então as outras pessoas acreditariam, porque a pessoa estaria se expondo a um castigo, caso mentisse. Visto que nada de mau havia recaído sobre o jurador, então isso confirmaria a veracidade das afirmações. Ora, é claro que esse apelo a algo sagrado não dava nenhuma garantia da verdade das afirmações, porque as pessoas podiam continuar a mentir e ninguém mais contestava, ou seja, o juramento não passava de mais uma formalidade exterior. Então, Jesus ensinou: não precisa vocês jurarem, basta falarem a verdade sempre. Se o seu “sim” ou “não” forem sempre verdadeiros, as pessoas acreditarão pela credibilidade da sua pessoa, não pelos santos ou lugares sagrados que acaso forem invocados.
Vemos, nesses exemplos que o próprio Cristo escolheu, o que significa cumprir fielmente a lei, cumprir a lei com sabedoria. É curioso observarmos que, apesar do ensinamento de Cristo, apesar da sua rejeição ao formalismo das normas, nós ainda constatamos, nos dias de hoje, pessoas que se dizem cristãs apegadas aos formalismos, às regras canônicas, aos fundamentalismos exegéticos, à escravidão das palavras, esquecendo a lição que Cristo nos deixou, de forma tão clara e com perfeição didática. Quando Ele disse que nenhuma letra ou vírgula seria retirada da lei, antes que tudo fosse cumprido, ele se referia a Si próprio, ao que as escrituras predisseram acerca d'Ele. Ele se referia à lei de Moisés, à lei antiga, os evangelhos não existiam ainda. Naturalmente, a mesma sabedoria que Ele demonstrou que deve ser adotada na interpretação da lei antiga também será adotada para a compreensão da nova lei. Ele não nos deixou escravos das palavras, mas nos ensinou a buscarmos constantemente o espírito delas. Que nós saibamos sempre ler e compreender com sabedoria os seus mandamentos.
Caros Confrades,
Na liturgia deste 6º domingo comum, o tema que escolhi para nossa reflexão é o do cumprimento da lei, não de qualquer forma, mas o autêntico cumprimento da lei. Primeiro, Jesus diz que nenhuma palavra e nenhuma vírgula será retirada da lei antes que tudo seja cumprido. Depois, ele explica como se faz para cumprir a lei com sabedoria, sem apego a fundamentalismos ou ao exagero das palavras.
Na primeira leitura, do livro do Eclesiástico (Eclo 15, 16-21), o autor sagrado faz a relação entre a observância da lei e a vida longa do fiel. Se observares os mandamentos, eles te guardarão. Diante de nós, porém, esclarece o hagiógrafo, estão o bem e o mal, a vida e a morte, cabe a cada um escolher. Obviamente, quem escolhe o bem está escolhendo viver; quem escolhe o mal está escolhendo morrer. Nisso o Senhor não irá intervir, pois ele deu a liberdade ao ser humano para que ele próprio determine os rumos de sua ação. No entanto, o resultado das nossas escolhas já é previamente conhecido. Os olhos do Senhor só se voltam para os que o temem, a ninguém Ele deu licença para pecar. Pecar é fazer a opção pelo mal, pela natureza humana perversa e enganosa, pelo egoísmo e pela falta da caridade. Quem pensa estar se resguardando para si mesmo e não tem abertura para os irmãos se engana, porque quem escolhe fazer o mal não terá a garantia da vida, que é dada somente para os que observam os mandamentos.
Na segunda leitura, o apóstolo Paulo explica à comunidade de Corinto (1Cor 2, 6-10) a diferença entre a sabedoria dos homens e a sabedoria divina. Esta é misteriosa e Deus só a revela para os que lhe são caros. O poder mundano e o prestígio que lhe está associado nunca alcançarão sabedoria misteriosa. A nós, porém, Deus revelou esse mistério pelo Espírito, através dos ensinamentos de Cristo. Agir com sabedoria, portanto, é agir de acordo com os ideais cristãos, é ser um verdadeiro seguidor de Cristo. Essa sabedoria misteriosa é algo que nenhum olho jamais viu, nenhum ouvido jamais ouviu, nenhum coração jamais pressentiu. Por que é assim? Porque ela só é alcançada por intermédio da fé. Somente os olhos e os ouvidos da fé alcançarão o elevado patamar onde essa sabedoria se encontra. Somente com a iluminação que vem do Espírito poderá a pessoa humana ver e ouvir os ensinamentos dessa sabedoria divina.
No evangelho de Mateus (Mt 5, 17-37), num trecho bastante longo, Cristo explica bem detalhadamente como se pode cumprir a lei com sabedoria. Primeiramente, Ele esclarece que não veio revogar a lei ou os profetas, mas veio cumprir a lei como ela deve ser cumprida. Depois, Ele adverte que a lei deve ser cumprida por inteiro: nem uma só letra ou vírgula será retirada da lei, antes que tudo se cumpra. Logo depois, ele faz uma afirmação surpreendente: quem descumprir algum dos mandamentos, por menor que seja, terá no reino dos céus um lugarzinho insignificante, lá atrás daqueles que cumpriram tudo. É curioso observar que Cristo não disse: quem descumprir a lei irá para o inferno. No entanto, continua Ele, se a vossa justiça não for superior à dos mestres da lei e dos fariseus, aí sim, vocês não entrarão no reino dos céus. Qual a diferença que se observa nessas duas advertências? É porque os fariseus e mestres da lei cumpriam os mandamentos de forma errada, exagerando no rigor das palavras e sem levar em consideração a misericórdia divina. Deus não é um fanático ou um burocrata que se preocupa muito mais com o formalismo do que com a consciência. Deus quer que nós cumpramos a lei usando de sabedoria, não como os fariseus o faziam, preocupando-se com detalhes e exterioridades. Então, Cristo vai tirar três exemplos da lei e mostrar, bem claramente, que a busca do espírito da lei deve estar sempre acima das suas formalidades.
Exemplo 1. “Ouviste o que foi dito aos antigos: não matarás. Quem matar, será condenado pelo tribunal.” (Mt 5, 21). Os fariseus interpretavam essa norma no seu sentido puramente literal de matar ser igual a tirar a vida de outrem. Então, Jesus vai dizer que “matar” não é apenas eliminar uma pessoa, mas intrigar-se com o irmão já equivale a matá-lo. Dizer palavrão com o irmão é o mesmo que matá-lo. Ficar com raiva do irmão é outra forma de matá-lo também. E para explicar ainda mais esse novo sentido de “matar”, ele diz: se você estiver diante do altar para fazer a sua oferenda e se lembrar que tem alguma desavença com alguém, não faça a oferta, vá primeiro resolver esse problema. Não adianta fazer a oferenda exteriormente, enquanto o coração está fechado para o irmão. Isso faz lembrar uma homilia do Papa Francisco, na semana passada. Ele disse assim: não saiam da missa fofocando dos irmãos. Quem vai à igreja e sai fofocando depois, é melhor não ir. Vejam que interessante, o Papa está repetindo o mesmo ensinamento de Cristo, atualizando para a linguagem do nosso tempo. Fofocar é uma nova forma de “matar” o irmão. Essa atitude destrói a oração que você fez, ou melhor dizendo, invalida tudo. Quem não vai à igreja disposto a entrar no clima da oração, a encontrar-se com Deus e com irmãos, então é melhor que não vá. Eu nunca tinha sabido de um Papa que tivesse dado um conselho desses. Obviamente, ele não está dizendo que as pessoas não devem ir à igreja, ao contrário, que as pessoas não devem fofocar. Além de ser falta de caridade, produz um mau exemplo para a comunidade. Está descumprindo a lei e ainda levando outras pessoas a descumprirem também.
No outro exemplo, Jesus diz: também foi dito que não se deve cometer adultério. Os fariseus pensavam que adulterar era apenas ter um intercurso sexual com uma mulher. Jesus vem então explicar que não é só isso, mas se tiver apenas o desejo, já cometeu adultério. E esse desejo não significa apenas o instinto sexual, mas qualquer forma de demonstrar inveja por algo que o irmão possui e a pessoa invejosa fica desejando. Não esqueçamos que, na época de Cristo, a mulher era um dos pertences do marido, assim como os rebanhos, as propriedades, os escravos, os bens materiais em geral. Portanto, devemos entender a ordem de “não cometer adultério” como toda forma de desejar os bens do irmão, de invejar-lhe a posição que tem, o prestígio de que desfruta, as amizades que o rodeiam, a personalidade que a pessoa tem. Cometer adultério vai muito além da esfera da sexualidade para alcançar todos os desejos que sejam frutos da cobiça, da inveja, da maldade, do egoísmo, da vontade de dominar, da busca incontrolada pela posse de bens materiais.
Num terceiro exemplo, Jesus diz: também vocês ouviram dizer para não fazerem juramentos falsos. Os fariseus achavam que isso se referia apenas às manifestações exteriores de afirmações ou negações. Eram tão exagerados nesse entendimento que nunca pronunciavam o nome de Javé, por receio de pronunciá-lo em vão. Tanto assim que, atualmente, não se sabe mais como era a pronúncia original dessa palavra, que ficou perdida pelo continuado desuso. Pois bem, diz Jesus, eu digo que vocês não devem jurar de jeito nenhum. Por que havia o costume de fazer juramentos? Porque não se podia acreditar na palavra das pessoas. Então, se alguém jurasse invocando os céus ou os altares ou um lugar sagrado, então as outras pessoas acreditariam, porque a pessoa estaria se expondo a um castigo, caso mentisse. Visto que nada de mau havia recaído sobre o jurador, então isso confirmaria a veracidade das afirmações. Ora, é claro que esse apelo a algo sagrado não dava nenhuma garantia da verdade das afirmações, porque as pessoas podiam continuar a mentir e ninguém mais contestava, ou seja, o juramento não passava de mais uma formalidade exterior. Então, Jesus ensinou: não precisa vocês jurarem, basta falarem a verdade sempre. Se o seu “sim” ou “não” forem sempre verdadeiros, as pessoas acreditarão pela credibilidade da sua pessoa, não pelos santos ou lugares sagrados que acaso forem invocados.
Vemos, nesses exemplos que o próprio Cristo escolheu, o que significa cumprir fielmente a lei, cumprir a lei com sabedoria. É curioso observarmos que, apesar do ensinamento de Cristo, apesar da sua rejeição ao formalismo das normas, nós ainda constatamos, nos dias de hoje, pessoas que se dizem cristãs apegadas aos formalismos, às regras canônicas, aos fundamentalismos exegéticos, à escravidão das palavras, esquecendo a lição que Cristo nos deixou, de forma tão clara e com perfeição didática. Quando Ele disse que nenhuma letra ou vírgula seria retirada da lei, antes que tudo fosse cumprido, ele se referia a Si próprio, ao que as escrituras predisseram acerca d'Ele. Ele se referia à lei de Moisés, à lei antiga, os evangelhos não existiam ainda. Naturalmente, a mesma sabedoria que Ele demonstrou que deve ser adotada na interpretação da lei antiga também será adotada para a compreensão da nova lei. Ele não nos deixou escravos das palavras, mas nos ensinou a buscarmos constantemente o espírito delas. Que nós saibamos sempre ler e compreender com sabedoria os seus mandamentos.
domingo, 9 de fevereiro de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - A LUZ DA GRAÇA - 09.02.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A LUZ DA GRAÇA – 09.02.2014
Caros Confrades,
Neste 5º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão a figura da luz que brilha e ilumina a todos. A luz que brilha em cada um de nós é exatamente a luz da graça divina, que recebemos de Deus no nosso batismo e que deve permanecer viva e brilhante, de modo a iluminar a nossa vida e, ao mesmo tempo, funcionar como guia para os irmãos, especialmente aqueles mais fracos na fé. Assim seremos fiéis aos nossos compromissos de batizados, como autênticos discípulos de Cristo.
A teologia da revelação ensina que nós nascemos com a mácula do pecado original e essa falha, que não devemos creditar ao Criador, que é perfeito, mas à nossa própria condição de humanidade, herdeiros de Adão e Eva, está presente em toda a nossa vida, no entanto, nós temos o instrumento eficaz para superá-la, que é a graça divina. Através da ablução com a água batismal, nós somos purificados dessa mácula, todavia, essa purificação não funciona de modo automático, mas precisa ser renovada e reforçada com as nossas boas ações, o que só é possível quando nós abrimos nosso coração para receber esta graça e, em consequência, orientamos nossa vontade para que a graça atue em nós e produza seus divinos efeitos. A referência a Adão e Eva é a linguagem simbólica pela qual o escritor sagrado personifica de um modo genérico as duas formas humanas de homem e mulher, imperfeitos pela natureza, mas aperfeiçoados pela graça recebida do Criador. E o pecado original não deve ser identificado com aquela história tradicional da maçã, mas com a vulnerabilidade inerente à natureza humana, que nos impede de conseguirmos alcançar, sozinhos, a salvação. Para isso, todos nós dependemos essencialmente da graça e da misericórdia de Deus.
Na primeira leitura, o profeta Isaías exemplifica, de um modo bem didático, algumas ações humanas que tipificam aquilo que a teologia chama de “pecado original”: “Se destruíres teus instrumentos de opressão e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa;” (Is 58, 9) Esses exemplos demonstram o quanto os seres humanos têm uma tendência para o egoísmo, o autoritarismo e a inveja, ou seja, uma tendência para agir de forma injusta com os irmãos. Se observarmos bem, essas ações estão relacionadas com a prática da caridade cristã, isto é, não oprimir os irmãos, não ser arrogante, não zombar ou falar mal dos irmãos. Aquele que consegue superar essas imperfeições decorrentes da nossa natureza desviada, esse andará na luz. É o que diz Isaías em 58, 7: “Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos, quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne [teu semelhante]. Então, brilhará tua luz como a aurora.” Lembremo-nos de que, na época do profeta, ainda não havia sido instituído o batismo da conversão, que somente surgiu com a pregação de João Batista. No entanto, Isaías já preconizava aquelas ações que seriam propostas pelo Batista para os que se preparavam para esperar o Messias, aplainando os caminhos e capinando as veredas. E quando, tempos depois, Cristo instituiu o batismo sacramental, o batismo da salvação, os benefícios da graça batismal atuaram de modo pleno no tempo, incluindo presente, passado e futuro, de modo que os que viveram segundo a orientação do Profeta foram também alcançados pela graça da salvação. O sacrifício redentor de Cristo foi realizado num tempo histórico determinado, no entanto, os seus efeitos se estendem em plenitude para um tempo indeterminado, referendando todas as práticas de justiça que as pessoas efetivaram, como consequência de sua fé. Com sua morte e sua ressurreição, Cristo aspergiu seu sangue sobre todos os seres humanos, independentemente da época em que viverem ou viverão, alcançando a todos estes os benefícios decorrentes da consumação da antiga aliança de Javeh com o povo hebreu. A única condição para isso é a adesão que cada um deve fazer a esse “contrato” patriarcal, renovado e consolidado pela intervenção do Messias, cuja “assinatura” é o compromisso batismal, que se concretiza no cumprimento dos nossos deveres de cristãos.
Na segunda leitura, de Paulo aos Coríntios (1Cor 2, 1-5), o Apóstolo diz que foi àquela cidade para anunciar ao povo o “mistério de Deus”. Que mistério seria esse? Ele próprio responde: Jesus Cristo crucificado. E para esse anúncio, Paulo não usou discursos bonitos nem oratória erudita, mas apenas a linguagem comum, para que o conteúdo de sua pregação se destacasse, e não e apelo exterior das suas palavras. Meus amigos, o “mistério” é aquilo que estava escondido e foi revelado por Cristo, portanto, a partir de então, aquilo que antes era obscuro e incompreensível aos homens, tornou-se claro e iluminado, pela força da luz de Cristo. Ele é a própria luz e é através dele que nós, seus discípulos, podemos iluminar o mundo. Pelos sacramentos, que Ele instituiu e nos deixou, sob a coordenação da comunidade eclesial, nós participamos da claridade que essa luz transmite. A partir do recebimento do batismo, abre-se para nós a porta de acesso aos demais sacramentos, isto é, aos diversos canais pelos quais Ele distribui a sua graça. Paulo fez isso na comunidade de Corinto e noutras daquela região. Nos dias de hoje, a Igreja dá continuidade a essa tarefa de acolher os fiéis e conduzi-los ao ambiente onde essa graça continua a ser distribuída. Dentro da comunidade eclesial, a graça que recebemos deve ser potencializada para que, em nossa vida cotidiana fora do ambiente típico da sacralidade, as demais pessoas possam perceber a luminosidade do nosso ser através do nosso comportamento, do nosso modo de agir.
O evangelho de Mateus (Mt 5, 13-16) associa a metáfora da luz a outra imagem também muito poderosa, que é a figura do sal. Desde os tempos mais remotos, as pessoas compreenderam a importância do sal para a vida humana. Chegou ao ponto de que, em eras primitivas, o pagamento de trabalhos realizados pelos operários era feito não com moeda, mas com sal (o salarium). Os minerais trazidos pelo sal são essenciais para o nosso organismo, de modo que a vida humana se tornaria inviável sem o consumo de porções (moderadas) de sal. Do mesmo modo como a vida humana seria inviável sem a luz, assim também seria sem o sal. Atuando de modo diferente, mas sempre em caráter indispensável, a luz e o sal são insumos que tornam possível a vida humana, seja individual, seja social. Daí porque Cristo utilizou essas figuras como recursos pedagógicos para a sua catequese.
Ora, diz Jesus, imaginem se o sal viesse a perder a sua qualidade funcional básica, com o que iríamos salgar os alimentos? Nos dias de hoje, a indústria química já consegue produzir materiais alternativos que geram efeito similar ao sal para o preparo dos alimentos de pessoas que possuem certas doenças agravadas com a ingestão do sódio, componente fundamental do sal. Mas na época de Cristo, isso não existia e ele falava para o povo daquela época, do modo que fosse mais compreensível para eles. Um sal que não produzisse mais seus efeitos não serviria para mais nada. Quando muito, seria usado como pedrisco para pavimentar os caminhos. Com isso Jesus vem nos dizer que um cristão que não fizer prevalecer a graça que recebeu com o batismo, é como se a graça recebida não produzisse os efeitos que deveria gerar, portanto, haverá um desperdício da graça, pois um tal cristão não seria capaz de “salgar” a sociedade com o seu exemplo e o seu testemunho. Meus amigos, essa é uma séria advertência para que cada um de nós avalie de que modo a graça que recebemos está ou não produzindo seus frutos na nossa vida, para que não estejamos nos arriscando a sermos esbanjadores da graça divina. No caso, essa graça inócua em nós, além de não contribuir para que superemos as vicissitudes próprias da nossa natureza imperfeita, ainda nos tornará réus de uma acusação muito grave, qual seja, de sermos desperdiçadores desse valioso dom.
Numa consideração analógica com a luz, a graça divina deverá nos tornar iguais a grandes lamparinas em noite de apagão. Ninguém acende uma lucerna e a coloca debaixo de uma vasilha, pois assim ela não cumprirá a sua finalidade. A graça divina que recebemos não deve ficar restrita ao nosso ser, à nossa subjetividade, mas deve ser compartilhada com os irmãos. Colocar a luz escondida significa agir egoisticamente, usar a lamparina para clarear apenas o nosso próprio caminho. Não foi para isso que Jesus veio abrir para nós a porta da salvação. Ninguém se salva sozinho, a salvação se realiza na comunidade. Houve uma época em que a catequese pregava: “salva a tua alma”... hoje em dia esse discurso mudou completamente para “salva o teu irmão e assim tu também serás salvo”. Por isso é que a luz deve ser colocada num local elevado, a fim de clarear o caminho para muitos, a fim de chamar a atenção dos incautos, daqueles que se encontram envolvidos com as coisas mundanas, daqueles onde a graça está dormitando, para incentivá-los a também se tornarem luminares eficazes e generosos. Manter a luz escondida é uma contradição com ela própria, cuja existência só se justifica se for um ponto de orientação para todos, assim como o farol orienta os que viajam pelo mar.
Caros Confrades,
Neste 5º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão a figura da luz que brilha e ilumina a todos. A luz que brilha em cada um de nós é exatamente a luz da graça divina, que recebemos de Deus no nosso batismo e que deve permanecer viva e brilhante, de modo a iluminar a nossa vida e, ao mesmo tempo, funcionar como guia para os irmãos, especialmente aqueles mais fracos na fé. Assim seremos fiéis aos nossos compromissos de batizados, como autênticos discípulos de Cristo.
A teologia da revelação ensina que nós nascemos com a mácula do pecado original e essa falha, que não devemos creditar ao Criador, que é perfeito, mas à nossa própria condição de humanidade, herdeiros de Adão e Eva, está presente em toda a nossa vida, no entanto, nós temos o instrumento eficaz para superá-la, que é a graça divina. Através da ablução com a água batismal, nós somos purificados dessa mácula, todavia, essa purificação não funciona de modo automático, mas precisa ser renovada e reforçada com as nossas boas ações, o que só é possível quando nós abrimos nosso coração para receber esta graça e, em consequência, orientamos nossa vontade para que a graça atue em nós e produza seus divinos efeitos. A referência a Adão e Eva é a linguagem simbólica pela qual o escritor sagrado personifica de um modo genérico as duas formas humanas de homem e mulher, imperfeitos pela natureza, mas aperfeiçoados pela graça recebida do Criador. E o pecado original não deve ser identificado com aquela história tradicional da maçã, mas com a vulnerabilidade inerente à natureza humana, que nos impede de conseguirmos alcançar, sozinhos, a salvação. Para isso, todos nós dependemos essencialmente da graça e da misericórdia de Deus.
Na primeira leitura, o profeta Isaías exemplifica, de um modo bem didático, algumas ações humanas que tipificam aquilo que a teologia chama de “pecado original”: “Se destruíres teus instrumentos de opressão e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa;” (Is 58, 9) Esses exemplos demonstram o quanto os seres humanos têm uma tendência para o egoísmo, o autoritarismo e a inveja, ou seja, uma tendência para agir de forma injusta com os irmãos. Se observarmos bem, essas ações estão relacionadas com a prática da caridade cristã, isto é, não oprimir os irmãos, não ser arrogante, não zombar ou falar mal dos irmãos. Aquele que consegue superar essas imperfeições decorrentes da nossa natureza desviada, esse andará na luz. É o que diz Isaías em 58, 7: “Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos, quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne [teu semelhante]. Então, brilhará tua luz como a aurora.” Lembremo-nos de que, na época do profeta, ainda não havia sido instituído o batismo da conversão, que somente surgiu com a pregação de João Batista. No entanto, Isaías já preconizava aquelas ações que seriam propostas pelo Batista para os que se preparavam para esperar o Messias, aplainando os caminhos e capinando as veredas. E quando, tempos depois, Cristo instituiu o batismo sacramental, o batismo da salvação, os benefícios da graça batismal atuaram de modo pleno no tempo, incluindo presente, passado e futuro, de modo que os que viveram segundo a orientação do Profeta foram também alcançados pela graça da salvação. O sacrifício redentor de Cristo foi realizado num tempo histórico determinado, no entanto, os seus efeitos se estendem em plenitude para um tempo indeterminado, referendando todas as práticas de justiça que as pessoas efetivaram, como consequência de sua fé. Com sua morte e sua ressurreição, Cristo aspergiu seu sangue sobre todos os seres humanos, independentemente da época em que viverem ou viverão, alcançando a todos estes os benefícios decorrentes da consumação da antiga aliança de Javeh com o povo hebreu. A única condição para isso é a adesão que cada um deve fazer a esse “contrato” patriarcal, renovado e consolidado pela intervenção do Messias, cuja “assinatura” é o compromisso batismal, que se concretiza no cumprimento dos nossos deveres de cristãos.
Na segunda leitura, de Paulo aos Coríntios (1Cor 2, 1-5), o Apóstolo diz que foi àquela cidade para anunciar ao povo o “mistério de Deus”. Que mistério seria esse? Ele próprio responde: Jesus Cristo crucificado. E para esse anúncio, Paulo não usou discursos bonitos nem oratória erudita, mas apenas a linguagem comum, para que o conteúdo de sua pregação se destacasse, e não e apelo exterior das suas palavras. Meus amigos, o “mistério” é aquilo que estava escondido e foi revelado por Cristo, portanto, a partir de então, aquilo que antes era obscuro e incompreensível aos homens, tornou-se claro e iluminado, pela força da luz de Cristo. Ele é a própria luz e é através dele que nós, seus discípulos, podemos iluminar o mundo. Pelos sacramentos, que Ele instituiu e nos deixou, sob a coordenação da comunidade eclesial, nós participamos da claridade que essa luz transmite. A partir do recebimento do batismo, abre-se para nós a porta de acesso aos demais sacramentos, isto é, aos diversos canais pelos quais Ele distribui a sua graça. Paulo fez isso na comunidade de Corinto e noutras daquela região. Nos dias de hoje, a Igreja dá continuidade a essa tarefa de acolher os fiéis e conduzi-los ao ambiente onde essa graça continua a ser distribuída. Dentro da comunidade eclesial, a graça que recebemos deve ser potencializada para que, em nossa vida cotidiana fora do ambiente típico da sacralidade, as demais pessoas possam perceber a luminosidade do nosso ser através do nosso comportamento, do nosso modo de agir.
O evangelho de Mateus (Mt 5, 13-16) associa a metáfora da luz a outra imagem também muito poderosa, que é a figura do sal. Desde os tempos mais remotos, as pessoas compreenderam a importância do sal para a vida humana. Chegou ao ponto de que, em eras primitivas, o pagamento de trabalhos realizados pelos operários era feito não com moeda, mas com sal (o salarium). Os minerais trazidos pelo sal são essenciais para o nosso organismo, de modo que a vida humana se tornaria inviável sem o consumo de porções (moderadas) de sal. Do mesmo modo como a vida humana seria inviável sem a luz, assim também seria sem o sal. Atuando de modo diferente, mas sempre em caráter indispensável, a luz e o sal são insumos que tornam possível a vida humana, seja individual, seja social. Daí porque Cristo utilizou essas figuras como recursos pedagógicos para a sua catequese.
Ora, diz Jesus, imaginem se o sal viesse a perder a sua qualidade funcional básica, com o que iríamos salgar os alimentos? Nos dias de hoje, a indústria química já consegue produzir materiais alternativos que geram efeito similar ao sal para o preparo dos alimentos de pessoas que possuem certas doenças agravadas com a ingestão do sódio, componente fundamental do sal. Mas na época de Cristo, isso não existia e ele falava para o povo daquela época, do modo que fosse mais compreensível para eles. Um sal que não produzisse mais seus efeitos não serviria para mais nada. Quando muito, seria usado como pedrisco para pavimentar os caminhos. Com isso Jesus vem nos dizer que um cristão que não fizer prevalecer a graça que recebeu com o batismo, é como se a graça recebida não produzisse os efeitos que deveria gerar, portanto, haverá um desperdício da graça, pois um tal cristão não seria capaz de “salgar” a sociedade com o seu exemplo e o seu testemunho. Meus amigos, essa é uma séria advertência para que cada um de nós avalie de que modo a graça que recebemos está ou não produzindo seus frutos na nossa vida, para que não estejamos nos arriscando a sermos esbanjadores da graça divina. No caso, essa graça inócua em nós, além de não contribuir para que superemos as vicissitudes próprias da nossa natureza imperfeita, ainda nos tornará réus de uma acusação muito grave, qual seja, de sermos desperdiçadores desse valioso dom.
Numa consideração analógica com a luz, a graça divina deverá nos tornar iguais a grandes lamparinas em noite de apagão. Ninguém acende uma lucerna e a coloca debaixo de uma vasilha, pois assim ela não cumprirá a sua finalidade. A graça divina que recebemos não deve ficar restrita ao nosso ser, à nossa subjetividade, mas deve ser compartilhada com os irmãos. Colocar a luz escondida significa agir egoisticamente, usar a lamparina para clarear apenas o nosso próprio caminho. Não foi para isso que Jesus veio abrir para nós a porta da salvação. Ninguém se salva sozinho, a salvação se realiza na comunidade. Houve uma época em que a catequese pregava: “salva a tua alma”... hoje em dia esse discurso mudou completamente para “salva o teu irmão e assim tu também serás salvo”. Por isso é que a luz deve ser colocada num local elevado, a fim de clarear o caminho para muitos, a fim de chamar a atenção dos incautos, daqueles que se encontram envolvidos com as coisas mundanas, daqueles onde a graça está dormitando, para incentivá-los a também se tornarem luminares eficazes e generosos. Manter a luz escondida é uma contradição com ela própria, cuja existência só se justifica se for um ponto de orientação para todos, assim como o farol orienta os que viajam pelo mar.
domingo, 2 de fevereiro de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR - 02.02.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR – 02.02.2014
Caros amigos,
Neste domingo, a liturgia celebra a festa da apresentação do Senhor no templo, que é também a festa da purificação de Maria. É interessante notar como a Sagrada Família, seguindo rigorosamente o protocolo da lei de Moisés, dava exemplo de elevado devocionismo judaico. Interessante notar como Jesus Cristo, em todas as referências que lemos nos evangelhos, sempre cuidou de cumprir a mesma lei mosaica, apenas desviando-se do excessivo literalismo e fundamentalismo dos fariseus, que o criticavam por isso.
A festa litúrgica desta data se presta a várias observações sobre costumes e legislações do antigo hebraísmo. Primeiramente uma informação: a distância de Nazaré até Jerusalém é de 112 km. Aproximadamente a distância entre Fortaleza e Canindé. Conforme a lei mosaica, a apresentação do filho primogênito deveria ocorrer 40 dias após o seu nascimento. Assim, passado o “resguardo”, Maria e José prepararam-se para a viagem de Nazaré a Jerusalém. As pessoas que fazem romaria para Canindé, saindo de Fortaleza, em geral demoram 3 dias de caminhada. Considerando que José e Maria viajavam com uma criança de colo, essa viagem deve ter durado provavelmente uma semana. O evangelista Lucas não menciona isso, então podemos fazer esse cálculo. Ainda sob o aspecto legislativo, a apresentação do menino no templo corresponde ao que hoje os pais (geralmente, o pai) fazem: o registro do nascimento do filho no cartório. Era também o tempo de conferir a circuncisão do menino (que era feita no oitavo dia após o nascimento) e de cumprir o ritual de purificação da mãe, porque de acordo com a lei, a mulher ficava impura quando engravidava (assim como quando estava menstruada) e precisava fazer o ritual legal para obter a purificação e assim poder voltar a frequentar os locais sagrados. Também sob o aspecto legislativo, os pais deviam levar uma oferenda: os ricos ofereciam novilhos, os menos ricos ofereciam cabritos e os pobres ofereciam um par de pombinhos, foi esta última a oferta da Sagrada Família, o que demonstra a classificação econômica da família de Nazaré. Como se vê, a legislação da época fora cumprida à risca.
Os detalhes minuciosos narrados por Lucas (Lc 2, 22-40) não deixam a menor dúvida de que ele captou essas informações diretamente da fonte, ou seja, Maria revelou isso a ele. Quem mais iria saber o que tinha acontecido no templo de Jerusalém, naquele dia? E Maria deve ter tomado o maio susto quando ela e José chegaram ao templo com o menino, porque eles sabiam da “origem” dele, mas aquilo era segredo dos dois. Ela deve ter ficado imensamente perturbada com a reação do velho Simeão, que reconheceu o menino como o Messias esperado e ainda deu a ela o aviso: uma espada traspassará o teu coração. Se Maria ainda não tinha noção do alcance do seu “sim” ao anjo Gabriel, naquele momento, ela viu bem claramente o que a esperava. E certamente ao narrar esses fatos a Lucas, após a morte e ressurreição de Cristo, ainda tinha aquele diálogo bem vivo na sua mente. E a espada já havia sido fincada no coração dela, dando-lhe maior certeza de que aquele velho judeu que encontrara no templo tinha ido até lá impelido pelo Espírito.
E Maria guardou ainda a imagem de Ana, a profetisa, que também reconheceu o menino e cantou os louvores de Javeh. Lucas diz textualmente que Ana era uma profetisa (2, 36), isso não é apenas uma dedução dos biblistas. Vejam, meus amigos, como havia profetisas em Israel, assim como havia as diaconisas nos primeiros tempos do cristianismo. Paulo (Rm 16, 1) fala em Phoebe, da comunidade de Cencreia, certamente havia outras. Lucas fala de Ana, do templo de Jerusalém, certamente havia também outras. Assim, de um modo bem discreto, observa-se a referência às atividades religiosas das mulheres, tanto no AT quanto no NT, no entanto, hoje em dia, o exagerado clericalismo que se instalou historicamente na hierarquia eclesiástica coloca tantas dificuldades para o reconhecimento das mulheres nas funções de direção da Igreja. Falou-se na imprensa que o Papa Francisco tinha intenção de nomear uma mulher cardeala, mas logo logo o porta-voz do Vaticano se encarregou de desmentir.
Ainda na esfera dos costumes, observa-se na narração de Lucas quanto o cristianismo herdou o tabu hebraico acerca da sexualidade. Chegou ao ponto de Sto Agostinho ter associado o pecado original a uma prática sexual. O preconceito aliado ao desconhecimento do fenômeno natural da menstruação feminina faziam com que a mulher fosse considerada impura, havendo prescrições rigorosas para serem observadas tanto pela mulher quanto pelo homem, durante o período do mênstruo. A mulher menstruada ficará imunda por sete dias (Levítico 12,2) e se um homem praticar sexo com ela durante esse período, ele também ficará imundo por sete dias (Levítico 15, 24). Eu me lembro de quando estudei teologia moral que havia uma teoria, na Idade Média, afirmando que a ejaculação masculina fora do organismo da mulher era um crime pior do que o homicídio. Isso porque, de acordo com os conhecimentos científicos da época, o espermatozóide era um ser humano em miniatura e, no caso, não teria condições de germinar, morrendo em seguida, o que correspondia a um aborto ou um assassinato. Essas noções sobre o processo de reprodução humana, dentro da evolução do saber científico, ficaram superadas. Todavia, o tabu e o preconceito reinante na teologia católica acerca da sexualidade continuam fortes e, aparentemente, insuperáveis. A própria regra da obrigatoriedade do celibato dos padres é, ao mesmo tempo, prova disso e possível causa dessa equivocada compreensão.
Passando agora para a leitura do profeta Malaquias, o último dos profetas, ele fala numa linguagem que faz lembrar Isaías, acerca do futuro Messias: “ quem poderá fazer-lhe frente, no dia de sua chegada? E quem poderá resistir-lhe, quando ele aparecer? Ele é como o fogo da forja e como a barrela dos lavadeiros; e estará a postos, como para fazer derreter e purificar a prata.” (Ml 3, 2-3) Um fato curioso é que a liturgia sempre seleciona trechos bíblicos escritos pelos profetas em que eles se referem ao futuro Messias, deixando aquela impressão de que um profeta é alguém que prevê um fato, como é corriqueiro no linguajar popular. No entanto, quando os profetas se referem ao Messias, assim como o faz Malaquias, antes ele havia se referido à dissolução dos costumes do povo, à corrupção das autoridades, inclusive dos sacerdotes, à prática da idolatria e ao abandono do culto a Javeh. Então, eles sempre dizem: essas pessoas serão devidamente justiçadas quando vier o Messias, enquanto os justos, os cumpridores da lei, estes serão agraciados. É assim que se deve entender as figuras metafóricas utilizadas por Malaquias, no trecho citado. Os maus não irão resistir quando Ele aparecer, Ele será como o fogo da forja (ou seja, o calor que derrete os metais) ou como a barrela dos lavadeiros (ou seja, aquela substância cáustica que se mistura na água, a fim de lavar roupas muito sujas). Na verdade, o profeta Malaquias está denunciando a corrupção do povo e das autoridades e, ao mesmo tempo, anunciando a vinda daquele que vai trazer a justa recompensa para cada um, de acordo com o seu procedimento.
Na segunda leitura, o autor da carta aos Hebreus (que não é o apóstolo Paulo) ensina a doutrina da verdadeira humanidade de Cristo, que se tornou igual a um de nós, a fim de nos purificar e nos dar a salvação, “Pois, afinal, não veio ocupar-se com os anjos, mas com a descendência de Abraão.” (Hb 2, 16) Essa lição teológica da carta aos Hebreus é muito importante para nos confirmar que, desde os primeiros tempos do cristianismo, os fiéis já tinham a convicção de que Jesus era verdadeiramente humano e não um Deus disfarçado de homem, como alguns judeus da época e outros teólogos antigos quiseram afirmar. E vem confirmar também a nova face do Pai, que foi revelada por Cristo, muito diferente do Javeh do Antigo Testamento, que se apresentava como um Deus vingativo e cruel. Cristo vem mostrar a nova feição de Javeh como um pai misericordioso, sempre disposto ao perdão, que se preocupa com os filhos e, longe de querer castigá-los, quer que todos se convertam e se salvem. Cristo não veio ocupar-se com anjos, mas com os descendentes de Abraão, ou seja, com pessoas pecadoras. Por isso, Ele assumiu plenamente a condição humana, para sentir na carne o que os homens sentem, “pois, tendo ele próprio sofrido ao ser tentado, é capaz de socorrer os que agora sofrem a tentação. ” (Hb 2, 18). Mostrando com seu exemplo como se deve enfrentar e vencer o pecado, Cristo, com seu sacrifício, nos dá a certeza de que nós também, servindo-nos dos recursos espirituais que Ele nos deixou, temos condição de alcançar o merecimento da glória que Ele conquistou para nós.
Caros amigos,
Neste domingo, a liturgia celebra a festa da apresentação do Senhor no templo, que é também a festa da purificação de Maria. É interessante notar como a Sagrada Família, seguindo rigorosamente o protocolo da lei de Moisés, dava exemplo de elevado devocionismo judaico. Interessante notar como Jesus Cristo, em todas as referências que lemos nos evangelhos, sempre cuidou de cumprir a mesma lei mosaica, apenas desviando-se do excessivo literalismo e fundamentalismo dos fariseus, que o criticavam por isso.
A festa litúrgica desta data se presta a várias observações sobre costumes e legislações do antigo hebraísmo. Primeiramente uma informação: a distância de Nazaré até Jerusalém é de 112 km. Aproximadamente a distância entre Fortaleza e Canindé. Conforme a lei mosaica, a apresentação do filho primogênito deveria ocorrer 40 dias após o seu nascimento. Assim, passado o “resguardo”, Maria e José prepararam-se para a viagem de Nazaré a Jerusalém. As pessoas que fazem romaria para Canindé, saindo de Fortaleza, em geral demoram 3 dias de caminhada. Considerando que José e Maria viajavam com uma criança de colo, essa viagem deve ter durado provavelmente uma semana. O evangelista Lucas não menciona isso, então podemos fazer esse cálculo. Ainda sob o aspecto legislativo, a apresentação do menino no templo corresponde ao que hoje os pais (geralmente, o pai) fazem: o registro do nascimento do filho no cartório. Era também o tempo de conferir a circuncisão do menino (que era feita no oitavo dia após o nascimento) e de cumprir o ritual de purificação da mãe, porque de acordo com a lei, a mulher ficava impura quando engravidava (assim como quando estava menstruada) e precisava fazer o ritual legal para obter a purificação e assim poder voltar a frequentar os locais sagrados. Também sob o aspecto legislativo, os pais deviam levar uma oferenda: os ricos ofereciam novilhos, os menos ricos ofereciam cabritos e os pobres ofereciam um par de pombinhos, foi esta última a oferta da Sagrada Família, o que demonstra a classificação econômica da família de Nazaré. Como se vê, a legislação da época fora cumprida à risca.
Os detalhes minuciosos narrados por Lucas (Lc 2, 22-40) não deixam a menor dúvida de que ele captou essas informações diretamente da fonte, ou seja, Maria revelou isso a ele. Quem mais iria saber o que tinha acontecido no templo de Jerusalém, naquele dia? E Maria deve ter tomado o maio susto quando ela e José chegaram ao templo com o menino, porque eles sabiam da “origem” dele, mas aquilo era segredo dos dois. Ela deve ter ficado imensamente perturbada com a reação do velho Simeão, que reconheceu o menino como o Messias esperado e ainda deu a ela o aviso: uma espada traspassará o teu coração. Se Maria ainda não tinha noção do alcance do seu “sim” ao anjo Gabriel, naquele momento, ela viu bem claramente o que a esperava. E certamente ao narrar esses fatos a Lucas, após a morte e ressurreição de Cristo, ainda tinha aquele diálogo bem vivo na sua mente. E a espada já havia sido fincada no coração dela, dando-lhe maior certeza de que aquele velho judeu que encontrara no templo tinha ido até lá impelido pelo Espírito.
E Maria guardou ainda a imagem de Ana, a profetisa, que também reconheceu o menino e cantou os louvores de Javeh. Lucas diz textualmente que Ana era uma profetisa (2, 36), isso não é apenas uma dedução dos biblistas. Vejam, meus amigos, como havia profetisas em Israel, assim como havia as diaconisas nos primeiros tempos do cristianismo. Paulo (Rm 16, 1) fala em Phoebe, da comunidade de Cencreia, certamente havia outras. Lucas fala de Ana, do templo de Jerusalém, certamente havia também outras. Assim, de um modo bem discreto, observa-se a referência às atividades religiosas das mulheres, tanto no AT quanto no NT, no entanto, hoje em dia, o exagerado clericalismo que se instalou historicamente na hierarquia eclesiástica coloca tantas dificuldades para o reconhecimento das mulheres nas funções de direção da Igreja. Falou-se na imprensa que o Papa Francisco tinha intenção de nomear uma mulher cardeala, mas logo logo o porta-voz do Vaticano se encarregou de desmentir.
Ainda na esfera dos costumes, observa-se na narração de Lucas quanto o cristianismo herdou o tabu hebraico acerca da sexualidade. Chegou ao ponto de Sto Agostinho ter associado o pecado original a uma prática sexual. O preconceito aliado ao desconhecimento do fenômeno natural da menstruação feminina faziam com que a mulher fosse considerada impura, havendo prescrições rigorosas para serem observadas tanto pela mulher quanto pelo homem, durante o período do mênstruo. A mulher menstruada ficará imunda por sete dias (Levítico 12,2) e se um homem praticar sexo com ela durante esse período, ele também ficará imundo por sete dias (Levítico 15, 24). Eu me lembro de quando estudei teologia moral que havia uma teoria, na Idade Média, afirmando que a ejaculação masculina fora do organismo da mulher era um crime pior do que o homicídio. Isso porque, de acordo com os conhecimentos científicos da época, o espermatozóide era um ser humano em miniatura e, no caso, não teria condições de germinar, morrendo em seguida, o que correspondia a um aborto ou um assassinato. Essas noções sobre o processo de reprodução humana, dentro da evolução do saber científico, ficaram superadas. Todavia, o tabu e o preconceito reinante na teologia católica acerca da sexualidade continuam fortes e, aparentemente, insuperáveis. A própria regra da obrigatoriedade do celibato dos padres é, ao mesmo tempo, prova disso e possível causa dessa equivocada compreensão.
Passando agora para a leitura do profeta Malaquias, o último dos profetas, ele fala numa linguagem que faz lembrar Isaías, acerca do futuro Messias: “ quem poderá fazer-lhe frente, no dia de sua chegada? E quem poderá resistir-lhe, quando ele aparecer? Ele é como o fogo da forja e como a barrela dos lavadeiros; e estará a postos, como para fazer derreter e purificar a prata.” (Ml 3, 2-3) Um fato curioso é que a liturgia sempre seleciona trechos bíblicos escritos pelos profetas em que eles se referem ao futuro Messias, deixando aquela impressão de que um profeta é alguém que prevê um fato, como é corriqueiro no linguajar popular. No entanto, quando os profetas se referem ao Messias, assim como o faz Malaquias, antes ele havia se referido à dissolução dos costumes do povo, à corrupção das autoridades, inclusive dos sacerdotes, à prática da idolatria e ao abandono do culto a Javeh. Então, eles sempre dizem: essas pessoas serão devidamente justiçadas quando vier o Messias, enquanto os justos, os cumpridores da lei, estes serão agraciados. É assim que se deve entender as figuras metafóricas utilizadas por Malaquias, no trecho citado. Os maus não irão resistir quando Ele aparecer, Ele será como o fogo da forja (ou seja, o calor que derrete os metais) ou como a barrela dos lavadeiros (ou seja, aquela substância cáustica que se mistura na água, a fim de lavar roupas muito sujas). Na verdade, o profeta Malaquias está denunciando a corrupção do povo e das autoridades e, ao mesmo tempo, anunciando a vinda daquele que vai trazer a justa recompensa para cada um, de acordo com o seu procedimento.
Na segunda leitura, o autor da carta aos Hebreus (que não é o apóstolo Paulo) ensina a doutrina da verdadeira humanidade de Cristo, que se tornou igual a um de nós, a fim de nos purificar e nos dar a salvação, “Pois, afinal, não veio ocupar-se com os anjos, mas com a descendência de Abraão.” (Hb 2, 16) Essa lição teológica da carta aos Hebreus é muito importante para nos confirmar que, desde os primeiros tempos do cristianismo, os fiéis já tinham a convicção de que Jesus era verdadeiramente humano e não um Deus disfarçado de homem, como alguns judeus da época e outros teólogos antigos quiseram afirmar. E vem confirmar também a nova face do Pai, que foi revelada por Cristo, muito diferente do Javeh do Antigo Testamento, que se apresentava como um Deus vingativo e cruel. Cristo vem mostrar a nova feição de Javeh como um pai misericordioso, sempre disposto ao perdão, que se preocupa com os filhos e, longe de querer castigá-los, quer que todos se convertam e se salvem. Cristo não veio ocupar-se com anjos, mas com os descendentes de Abraão, ou seja, com pessoas pecadoras. Por isso, Ele assumiu plenamente a condição humana, para sentir na carne o que os homens sentem, “pois, tendo ele próprio sofrido ao ser tentado, é capaz de socorrer os que agora sofrem a tentação. ” (Hb 2, 18). Mostrando com seu exemplo como se deve enfrentar e vencer o pecado, Cristo, com seu sacrifício, nos dá a certeza de que nós também, servindo-nos dos recursos espirituais que Ele nos deixou, temos condição de alcançar o merecimento da glória que Ele conquistou para nós.
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