COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO DA PÁSCOA – O ESPÍRITO DA UNIDADE – 25.05.2014
Caros Confrades,
Neste 6º domingo da Páscoa, o evangelho de João (14, 15-21) relata a promessa de Cristo aos apóstolos: não vos deixarei órfãos, mandarei sobre vós o Paráclito, o Espírito da verdade. O Espírito é também o sinal da unidade da Igreja. E neste domingo, 25 de maio, um fato histórico e religioso de grande significado mostra, na prática, a ação deste Espírito, manifestado na visita do Papa Francisco à Terra Santa e no seu encontro com o Patriarca de Constantinopla, sua Santidade Bartolomeu, repetindo o mesmo gesto de Paulo VI, cinquenta anos atrás. Associando esse fato às visitas às principais autoridades de judeus, islâmicos e palestinos, a viagem do Papa é um verdadeiro convite aberto para todos os cristãos e não cristãos, na direção do ecumenismo e da unidade do pastoreio de Cristo.
Temos na primeira leitura, do livro dos Atos (8, 5-17), o testemunho da pregação de Filipe na Samaria, convertendo os samaritanos ao cristianismo. Recordemos que os judeus e os samaritanos eram intrigados e, com o episódio do diálogo entre Jesus e a Samaritana, na beira do poço de Jacó, Ele foi convidado a ir até a cidade e ali passou alguns dias pregando e os samaritanos daquela cidade acreditaram nele. O texto da leitura de hoje diz que Filipe foi a uma cidade da Samaria (não diz qual) e lá anunciou o evangelho e fez milagres, conseguindo a adesão da fé daqueles cidadãos. Certamente, a notícia da presença e da pregação de Jesus, no momento anterior, já havia se espalhado por toda a região da Samaria, de modo que a pregação de Filipe não foi exatamente uma “novidade” para aquelas pessoas, mas uma oportunidade a mais para tomarem conhecimento da mensagem cristã e firmarem sua adesão de fé. Quando a notícia chegou a Jerusalém, Pedro e João se dirigiram para lá e, concluindo o trabalho iniciado por Filipe, impuseram as mãos sobre esses novos crentes, para que recebessem o Espírito Santo. Vemos que a liturgia deste domingo já está introduzindo, aos poucos, a presença do Espírito Santo como continuador, protetor, defensor da missão de Cristo. O domingo de Pentecostes ainda está por vir, mas a liturgia já está preparando o terreno para a festa do Espírito.
Na segunda leitura (1Ped 3, 15-18), o apóstolo Pedro continua exortando os judeus convertidos ao cristianismo, animando-os a prosseguirem na fé e na unidade e a não se deixarem esmorecer pelas adversidades. “Pois será melhor sofrer praticando o bem, se esta for a vontade de Deus, do que praticando o mal”. (3, 17) Nesse domingo em que a visita do Papa ao Oriente Médio abre as portas para o diálogo interreligioso, essa recomendação de Pedro se aplica muito bem aos nossos irmãos cristãos da Síria, que estão sofrendo atrozes perseguições pelo governo muçulmano, que condena judicialmente os seus cidadãos que professam a fé cristã, sobretudo aqueles que se converteram recentemente e antes eram islâmicos. Na semana passada, a imprensa internacional noticiou o caso de uma jovem senhora que foi condenada à morte por causa da apostasia. Ela casou-se com um cristão e então converteu-se ao cristianismo. Perante a lei da Síria, esse é um delito gravíssimo punido com pena de morte. Os grupos internacionais se movimentaram para reverter isso, então o caso passa agora por uma nova análise pelo Supremo Tribunal local. Verifica-se que, naquela época com os judeus e hoje com os muçulmanos, os cristãos daquela região do planeta continuam a padecer agruras por causa da sua fé. O discurso de Pedro, portanto, é bastante oportuno nesse contexto do povo cristão da Síria, onde professar a fé em Cristo é um ato de bravura e de grande coragem. Quando refletimos sobre isso, vemos o quanto nós somos, muitas vezes, frouxos e pusilânimes ao deixamos de demonstrar publicamente a nossa fé onde não sofremos nenhuma represália por causa disso. Que os cristãos da Síria sirvam de exemplo para fortalecer nossa vivência na fé. A todos eles, a nossa mais eloquente homenagem.
No evangelho de João (14, 15-21), Jesus faz a promessa de mandar um outro Defensor. Essas duas palavras merecem uma observação. Vejamos o que dizem os textos originais. No texto grego, consta “allon parakleton”; no texto latino da Vulgata tem-se “alium paraclitum”. Em comentário anterior, já tive oportunidade de explicar que o vocábulo grego parákleton significa defensor, advogado, consolador e deriva do verbo grego parakeleuô, que significa dar instruções, aconselhar, instruir, animar. Portanto, devemos compreender o sentido de “defensor”, emtradução do termo grego parakleton, como aquele que dá instruções, que orienta, que aconselha, que anima. No contexto dessa leitura, o termo defensor guarda mais semelhança com a palavra advogado, aquele que instrui, orienta, dá instruções ao cliente sobre como portar-se perante o juiz. Deixemos em segundo plano o sentido de defensor como o que defende, protege, dá segurança. O Paráclito que Jesus prometeu aos apóstolos é o que vem orientar, dar instruções, animar, vivificar. É importante atentar para o significado da raiz verbal de parakaleuô a fim de entendermos de forma mais plena o sentido do Paráclito. No evangelho (vers. 16), Jesus diz que o Paráclito vai permanecer sempre convosco. Ele (Jesus) irá desaparecer dentro de pouco tempo, mas o Paráclito virá e permanecerá com a sua comunidade de fiéis para sempre. De fato, o Paráclito é o Espírito da Verdade e da Unidade, é Ele quem está constantemente assistindo, animando, instruindo, orientando, defendendo, consolando a Igreja de Cristo através dos tempos. É n'Ele que devemos encontrar a confiança de que a mensagem de Cristo seguirá pelo mundo afora, no decorrer dos tempos e que, apesar de eventuais tropeços de seus pregadores, essa mensagem continuará sempre viva e atraente. É o Espírito quem move a Igreja. É o Espírito quem anima o Papa. É o Espírito quem nos impele a vivenciar a nossa fé na vida cotidiana e nos mostra constantemente a melhor forma de agir, basta que estejamos com os “ouvidos” atentos às suas manifestações.
Mas antes de mencionar o Paráclito, o texto do evangelho de João usa o vocábulo “outro” (allon em grego, alium em latim, no mesmo sentido). Por que Jesus fala em “outro” Paráclito? A resposta é fácil. Porque Jesus é também o Paráclito. Diz o versículo 18: “Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós.” Ora, meus amigos, vejam bem: eu virei a vós, naquele dia, sabereis que eu estou no Pai, vós em mim e eu em vós. Que lição interessante o evangelista João está nos dando sobre a Santíssima Trindade: eu virei a vós, eu estou no Pai, vós estais em mim, ele estará dentro de vós. Juntando as frases, temos aí a afirmação de que a Santíssima Trindade habita em nós e que a presença do Espírito é permanente em nós. Jesus diz bem claramente: eu pedirei e o Pai mandará outro paráclito, que permanecerá sempre convosco. O primeiro paráclito que o Pai enviou foi Jesus Cristo, que veio cumprir a sua missão redentora. Cumprida esta, ele retorna ao encontro do Pai e este mandará o outro Paráclito, que permanecerá conosco para sempre. Ou seja, o Pai, o Cristo, o Paráclito são um só, a Trindade Santa e eles habitam em nós. O evangelista João era um exímio teólogo e sabia expressar as verdades da fé em palavras simples, diferentes dos teólogos posteriores que transformaram a teologia num tratado científico, nos moldes da ciência aristotélica. Nem precisava. Basta ler com atenção e meditar sobre as palavras colocadas por João, de forma simples e direta, para compreendermos o significado do Paráclito e da Trindade. E para sabermos que nós somos o templo onde essa Trindade habita.
Na sua chegada ao Oriente Médio, hoje, o Papa fez um discurso inspirado pelo Espírito, aninando os diversos crentes a se unirem por um motivo comum. Vejamos esse pequeno trecho do seu discurso: “Seguindo os passos dos meus Antecessores, vim como peregrino à Terra Santa, onde se desenrolou uma história plurimilenar e tiveram lugar os principais eventos relacionados com o nascimento e o desenvolvimento das três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo; por isso, ela é ponto de referência espiritual para grande parte da humanidade. Espero, pois, que esta Terra bendita seja um lugar onde não haja espaço algum para quem, instrumentalizando e exacerbando o valor da sua filiação religiosa, se torne intolerante e violento para com a religião alheia.” Vejam, meus amigos, como essas palavras do Papa estão em sintonia com o tema que abordei no comentário do domingo passado, acerca das “muitas moradas”, afirmadas por Cristo aos seus apóstolos. Observemos como o Papa se refere às três grandes religiões monoteístas (judaismo, cristianismo e islamisno) sob uma perspectiva histórica. Mesmo sendo cristão, ele não mencionou em primeiro lugar o cristianismo, o que seria de esperar. Não, ele colocou na primeira posição o judaísmo, porque foi este que primeiro ocorreu. De dentro deste, originou-se o cristianismo e só posteriormente exsurgiu o islamismo. Mas além dessa notável consciência histórica do fenômeno religioso, o discurso do Papa enfatiza o que está presente na essência do ecumenismo: valorizar o que nos une, não o que nos distingue. Foi aquela Terra Santa o berço do nascimento das três maiores crenças religiosas existentes hoje do planeta. Muitas particularidades dessas vertentes religiosas são divergentes, mas importa mais do que isso a motivação da sua unidade, os elementos de sua convergência. Digam se é ou não o Espírito da Unidade falando através das inspiradas palavras do Papa?
Que este mesmo Espírito, que habita em nós e permanece conosco, estimule em nosso íntimo o sentimento da fraternidade, que é a característica fundamental também do franciscanismo.
domingo, 25 de maio de 2014
domingo, 18 de maio de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA PÁSCOA - DIACONIA - 18.05.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – DIACONIA – 18.05.2014
Caros Confrades,
Neste 5º domingo da Páscoa, a liturgia nos traz um texto interessante dos Atos dos Apóstolos, quando eles decidiram pela criação dos Diáconos. A função destes seria cuidar dos trabalhos assistenciais e sociais, enquanto os Apóstolos se dedicavam à pregação e às funções sagradas. Por muitos anos, a figura do Diácono ficou esquecida no ambiente eclesial, sendo reativada pelo Concílio Vaticano II e tornava efetiva nas últimas décadas. O nosso confrade Ribamar faz parte desse grupo dos novos diáconos do nosso tempo.
No texto dos Atos, lido hoje, consta o nome dos primeiros sete diáconos (At 6,5): Estêvão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas e Nicolau de Antioquia. De acordo com o texto lucano, a tarefa deles será “servir às mesas”, o que eu entendo como obras de caridade material e assistencial. Todos homens. No entanto, Paulo, na carta a Romanos (16,1), refere-se a “Phoebe, nossa irmã, diaconisa da igreja de Cencréia”, o que implica entender que havia mulheres também exercendo a diaconia. O site “prebiteros.com.br” explica que “eram mulheres de conduta irrepreensível chamadas a participar dos serviços que a Igreja prestava a pessoas do sexo feminino, principalmente por ocasião do Batismo (ministrado por imersão). Recebiam o seu ministério pela imposição das mãos do Bispo, que não conferia caráter sacramental. – Com a rarefação do Batismo de adultos, foi-se extinguindo a figura da diaconisa na Igreja a partir do século VI. ” Deve ter sido também a época em que os diáconos homens foram perdendo seu prestígio, provavelmente pelo acentuado número de padres já então. Com a restauração da função do Diácono, a partir do Concilio Vaticano II, deixou-se de lado a figura feminina, evidenciando um injustificável preconceito por parte dos padres conciliares. Aqui em Fortaleza, lembro que nos anos 90, Dom Aloísio nomeou uma freira (Irmã Elizabeth) para oficiar casamentos, batizados e celebrações da palavra na Paróquia do Conjunto Ceará, por causa da escassez de ministros ordenados, e ela oficiou nessa função por bastante tempo, para admiração de uns e inveja de outros e outras. Uma pessoa admirável a Irmã Elizabeth Stumpfler, uma alemã que fugiu da Alemanha Oriental na época da segunda guerra mundial e veio trabalhar até o fim dos seus dias entre as comunidades carentes do Ceará. Ainda hoje, eu louvo a coragem e a ousadia de Dom Aloísio, ao par da sua visão teológica afinada com o evangelho na teoria e na prática. Quem sabe, o Seráfico Papa venha a se inspirar nas atitudes de Dom Aloísio e imitá-lo, algum dia.
Na segunda leitura, temos novamente um trecho das cartas de Pedro (1Ped 2, 4-9), o que está sendo a novidade deste ano litúrgico. Conforme já comentei antes, as cartas de Pedro eram dirigidas aos novéis convertidos judeus, da região da Ásia Menor, que eram ofendidos e perseguidos pelos judeus legalistas, por causa da sua conversão ao cristianismo. Pedro procura levantar-lhes o moral, dizendo que eles são as pedras com as quais Cristo constrói o seu edifício, que é a Igreja, e que essas mesmas pedras, para os que não creem, são tropeço e ignomínia. “ Vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo.” (2, 5) Enquanto Paulo dirigia suas cartas às comunidades do território grego, Pedro atendia aos fiéis convertidos da região habitada pelos judeus.
Na leitura do Evangelho de João (Jo 14, 1-12), continuamos a observar as dificuldades pedagógicas de Jesus com os seus rudes discípulos. Depois de passar três anos, convivendo diuturnamente com eles e ensinando-lhes a sua Boa Nova, para que eles a espalhassem pelo mundo, Jesus ainda passou cinquenta dias após a sua ressurreição, dando aulas de reforço. Quem já atuou professor, sobretudo em classes de reforço, já deve ter sentido na pele aquela desanimadora atitude do(a) aluno(a) que, depois de você explicar um assunto já em repescagem, faz uma pergunta pela qual você percebe que ele não entendeu nada e você tem de começar a explicar tudo do começo. Dá vontade de sair correndo da sala. Pois é, Jesus passou por isso também. Estando a se aproximar o dia em que Ele, definitivamente, iria deixar o grupo e encerrar a sua missão, Ele está passando as últimas informações, recordando as lições antigas e fazendo a reciclagem. O apóstolo João faz questão de mostrar a cabeça dura daqueles antigos pescadores de peixes, que Jesus pretendia transformar em pescadores de homens e não economiza as palavras: “Vou preparar um lugar para vós e, quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós. E, para onde eu vou, vós conheceis o caminho”. (14, 3-4) Então, vem Tomé com aquela desconcertante pergunta: “Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” Parece que a gente escuta Jesus responder: “pelamordedeus”, Tomé, Eu sou o caminho, ninguém vai ao Pai senão por mim. Aí chega o Felipe com uma ainda mais desanimadora complementação: “Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta!” E Jesus, em vez de sair correndo de desespero com tamanho despreparo, vai pacientemente explicar de novo. Como é que tu dizes: mostra-nos o Pai... Felipe, quanto tempo eu estou com vocês e ainda não me conhecem? Quem Me vê, vê o Pai, porque Eu estou no Pai e o Pai está em Mim. Se não acreditam no que digo, acreditem ao menos nas obras que fiz. Meus amigos, ao refletir sobre essas situações, temos a certeza da origem divina da Igreja. Só mesmo o poder divino pôde conseguir que uma dezena de pessoas incultas e de limitado entendimento construíssem todo esse arcabouço de fé e doutrina, que nos legaram através dos tempos. Alguém poderia até argumentar: mas depois eles receberam o Espírito Santo e ficaram inteligentes... não é bem assim. O Espírito ilumina e vivifica, mas não acrescenta recursos intelectuais a quem não os possui pela natureza. A difusão da Igreja de Cristo só se explica mesmo pela promessa que Ele fez: ide pelo mundo e Eu estarei convosco até o fim do mundo.
Nesse trecho do evangelho, João também coloca na boca de Jesus uma frase que é muito conhecida e interpretada das mais diversas maneiras: Na casa do meu Pai há muitas moradas. (Jo 14, 2) Eu prefiro enxergar nessa afirmação a raiz do ecumenismo. Não me parece legítimo interpretar as “muitas moradas” no sentido quantitativo, como se fosse uma “casinha para cada um”. Do ponto de vista do ecumenismo, as muitas moradas seriam as múltiplas crenças religiosas, sendo que todas elas, quando exercidas com consciência e fidelidade, são caminhos válidos para o encontro com Deus. Durante séculos, os teólogos ensinaram (e os Papas tornaram isso quase um dogma) que fora da Igreja Católica não há salvação, porque esta é a única e verdadeira Igreja de Cristo. Muitos católicos ainda defendem esse ponto de vista, sobretudo os grupos mais tradicionalistas, fundamentalistas e carismáticos. Noutro dia, eu ouvi um rapaz dizendo que quem faz afirmações contrárias ao que diz o Papa é um herege. Bem, era assim mesmo durante a Idade Média, mas nos dias de hoje, somente as pessoas que vivem mentalmente em época anterior ao Concílio Vaticano II acreditam nisso. Faz poucos meses, o Papa Francisco fez uma afirmação desse gênero, que teve grande divulgação na imprensa, e no dia seguinte o “porta voz” do Vaticano deu entrevista dizendo que “não é bem assim” do jeito que o Papa falou. Ele disse algo no sentido de que também as pessoas de outras crenças, que têm atitudes compatíveis com o evangelho, mesmo sem serem cristãs, merecem a salvação. Pois é. Jesus já sabia que, no decorrer dos tempos, haveria grandes dissensões de idéias e graves divergências doutrinárias dentro da sua Igreja e, nem por isso, deixaria de haver um só rebanho. Nas próximas semanas, o Papa Francisco deverá fazer uma viagem apostólica à Terra Santa e essa visita está sendo esperada com grande expectativa por toda a comunidade dos crentes orientais, cristãos e não cristãos, porque o Papa tem uma credibilidade dentre eles que, há muito tempo, um Papa não tinha. Patriarcas orientais, rabinos judaicos, autoridades árabes, todos estão ansiosos com essa aproximação que o Papa irá fazer, porque isso demonstra uma brutal quebra de preconceitos e tabus seculares, coisa que os Papas anteriores não ousaram enfrentar. E assim estamos caminhando verdadeiramente, pela via do diálogo e da mútua compreensão, para realizar o desejo de Cristo: que haja um só rebanho e um só Pastor, que é Ele próprio.
Caros Confrades,
Neste 5º domingo da Páscoa, a liturgia nos traz um texto interessante dos Atos dos Apóstolos, quando eles decidiram pela criação dos Diáconos. A função destes seria cuidar dos trabalhos assistenciais e sociais, enquanto os Apóstolos se dedicavam à pregação e às funções sagradas. Por muitos anos, a figura do Diácono ficou esquecida no ambiente eclesial, sendo reativada pelo Concílio Vaticano II e tornava efetiva nas últimas décadas. O nosso confrade Ribamar faz parte desse grupo dos novos diáconos do nosso tempo.
No texto dos Atos, lido hoje, consta o nome dos primeiros sete diáconos (At 6,5): Estêvão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas e Nicolau de Antioquia. De acordo com o texto lucano, a tarefa deles será “servir às mesas”, o que eu entendo como obras de caridade material e assistencial. Todos homens. No entanto, Paulo, na carta a Romanos (16,1), refere-se a “Phoebe, nossa irmã, diaconisa da igreja de Cencréia”, o que implica entender que havia mulheres também exercendo a diaconia. O site “prebiteros.com.br” explica que “eram mulheres de conduta irrepreensível chamadas a participar dos serviços que a Igreja prestava a pessoas do sexo feminino, principalmente por ocasião do Batismo (ministrado por imersão). Recebiam o seu ministério pela imposição das mãos do Bispo, que não conferia caráter sacramental. – Com a rarefação do Batismo de adultos, foi-se extinguindo a figura da diaconisa na Igreja a partir do século VI. ” Deve ter sido também a época em que os diáconos homens foram perdendo seu prestígio, provavelmente pelo acentuado número de padres já então. Com a restauração da função do Diácono, a partir do Concilio Vaticano II, deixou-se de lado a figura feminina, evidenciando um injustificável preconceito por parte dos padres conciliares. Aqui em Fortaleza, lembro que nos anos 90, Dom Aloísio nomeou uma freira (Irmã Elizabeth) para oficiar casamentos, batizados e celebrações da palavra na Paróquia do Conjunto Ceará, por causa da escassez de ministros ordenados, e ela oficiou nessa função por bastante tempo, para admiração de uns e inveja de outros e outras. Uma pessoa admirável a Irmã Elizabeth Stumpfler, uma alemã que fugiu da Alemanha Oriental na época da segunda guerra mundial e veio trabalhar até o fim dos seus dias entre as comunidades carentes do Ceará. Ainda hoje, eu louvo a coragem e a ousadia de Dom Aloísio, ao par da sua visão teológica afinada com o evangelho na teoria e na prática. Quem sabe, o Seráfico Papa venha a se inspirar nas atitudes de Dom Aloísio e imitá-lo, algum dia.
Na segunda leitura, temos novamente um trecho das cartas de Pedro (1Ped 2, 4-9), o que está sendo a novidade deste ano litúrgico. Conforme já comentei antes, as cartas de Pedro eram dirigidas aos novéis convertidos judeus, da região da Ásia Menor, que eram ofendidos e perseguidos pelos judeus legalistas, por causa da sua conversão ao cristianismo. Pedro procura levantar-lhes o moral, dizendo que eles são as pedras com as quais Cristo constrói o seu edifício, que é a Igreja, e que essas mesmas pedras, para os que não creem, são tropeço e ignomínia. “ Vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo.” (2, 5) Enquanto Paulo dirigia suas cartas às comunidades do território grego, Pedro atendia aos fiéis convertidos da região habitada pelos judeus.
Na leitura do Evangelho de João (Jo 14, 1-12), continuamos a observar as dificuldades pedagógicas de Jesus com os seus rudes discípulos. Depois de passar três anos, convivendo diuturnamente com eles e ensinando-lhes a sua Boa Nova, para que eles a espalhassem pelo mundo, Jesus ainda passou cinquenta dias após a sua ressurreição, dando aulas de reforço. Quem já atuou professor, sobretudo em classes de reforço, já deve ter sentido na pele aquela desanimadora atitude do(a) aluno(a) que, depois de você explicar um assunto já em repescagem, faz uma pergunta pela qual você percebe que ele não entendeu nada e você tem de começar a explicar tudo do começo. Dá vontade de sair correndo da sala. Pois é, Jesus passou por isso também. Estando a se aproximar o dia em que Ele, definitivamente, iria deixar o grupo e encerrar a sua missão, Ele está passando as últimas informações, recordando as lições antigas e fazendo a reciclagem. O apóstolo João faz questão de mostrar a cabeça dura daqueles antigos pescadores de peixes, que Jesus pretendia transformar em pescadores de homens e não economiza as palavras: “Vou preparar um lugar para vós e, quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós. E, para onde eu vou, vós conheceis o caminho”. (14, 3-4) Então, vem Tomé com aquela desconcertante pergunta: “Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” Parece que a gente escuta Jesus responder: “pelamordedeus”, Tomé, Eu sou o caminho, ninguém vai ao Pai senão por mim. Aí chega o Felipe com uma ainda mais desanimadora complementação: “Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta!” E Jesus, em vez de sair correndo de desespero com tamanho despreparo, vai pacientemente explicar de novo. Como é que tu dizes: mostra-nos o Pai... Felipe, quanto tempo eu estou com vocês e ainda não me conhecem? Quem Me vê, vê o Pai, porque Eu estou no Pai e o Pai está em Mim. Se não acreditam no que digo, acreditem ao menos nas obras que fiz. Meus amigos, ao refletir sobre essas situações, temos a certeza da origem divina da Igreja. Só mesmo o poder divino pôde conseguir que uma dezena de pessoas incultas e de limitado entendimento construíssem todo esse arcabouço de fé e doutrina, que nos legaram através dos tempos. Alguém poderia até argumentar: mas depois eles receberam o Espírito Santo e ficaram inteligentes... não é bem assim. O Espírito ilumina e vivifica, mas não acrescenta recursos intelectuais a quem não os possui pela natureza. A difusão da Igreja de Cristo só se explica mesmo pela promessa que Ele fez: ide pelo mundo e Eu estarei convosco até o fim do mundo.
Nesse trecho do evangelho, João também coloca na boca de Jesus uma frase que é muito conhecida e interpretada das mais diversas maneiras: Na casa do meu Pai há muitas moradas. (Jo 14, 2) Eu prefiro enxergar nessa afirmação a raiz do ecumenismo. Não me parece legítimo interpretar as “muitas moradas” no sentido quantitativo, como se fosse uma “casinha para cada um”. Do ponto de vista do ecumenismo, as muitas moradas seriam as múltiplas crenças religiosas, sendo que todas elas, quando exercidas com consciência e fidelidade, são caminhos válidos para o encontro com Deus. Durante séculos, os teólogos ensinaram (e os Papas tornaram isso quase um dogma) que fora da Igreja Católica não há salvação, porque esta é a única e verdadeira Igreja de Cristo. Muitos católicos ainda defendem esse ponto de vista, sobretudo os grupos mais tradicionalistas, fundamentalistas e carismáticos. Noutro dia, eu ouvi um rapaz dizendo que quem faz afirmações contrárias ao que diz o Papa é um herege. Bem, era assim mesmo durante a Idade Média, mas nos dias de hoje, somente as pessoas que vivem mentalmente em época anterior ao Concílio Vaticano II acreditam nisso. Faz poucos meses, o Papa Francisco fez uma afirmação desse gênero, que teve grande divulgação na imprensa, e no dia seguinte o “porta voz” do Vaticano deu entrevista dizendo que “não é bem assim” do jeito que o Papa falou. Ele disse algo no sentido de que também as pessoas de outras crenças, que têm atitudes compatíveis com o evangelho, mesmo sem serem cristãs, merecem a salvação. Pois é. Jesus já sabia que, no decorrer dos tempos, haveria grandes dissensões de idéias e graves divergências doutrinárias dentro da sua Igreja e, nem por isso, deixaria de haver um só rebanho. Nas próximas semanas, o Papa Francisco deverá fazer uma viagem apostólica à Terra Santa e essa visita está sendo esperada com grande expectativa por toda a comunidade dos crentes orientais, cristãos e não cristãos, porque o Papa tem uma credibilidade dentre eles que, há muito tempo, um Papa não tinha. Patriarcas orientais, rabinos judaicos, autoridades árabes, todos estão ansiosos com essa aproximação que o Papa irá fazer, porque isso demonstra uma brutal quebra de preconceitos e tabus seculares, coisa que os Papas anteriores não ousaram enfrentar. E assim estamos caminhando verdadeiramente, pela via do diálogo e da mútua compreensão, para realizar o desejo de Cristo: que haja um só rebanho e um só Pastor, que é Ele próprio.
domingo, 11 de maio de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA PÁSCOA - A PORTA DO APRISCO -11.05.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – A PORTA DO APRISCO – 11.05.2014
Caros Confrades,
O tema recorrente da liturgia do 4º domingo da Páscoa é a clássica imagem do Bom Pastor, que se apresenta como a porta por onde passam as suas ovelhas (Jo 10, 7). Repete-se o mesmo tema dos anos anteriores, porém tendo como referências outras leituras bíblicas. Neste domingo, tanto quanto no domingo anterior, predomina a figura de Pedro, na leitura de Atos e também na leitura da sua primeira carta. O oposto do bom pastor será o meliante, o que entra furtivamente, e o que rouba ostensivamente. Olhando para a nossa sociedade contemporânea, parece que estamos em tempos de falta de bons pastores. A todo momento, só temos notícias somente dessas figuras opostas.
A primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (2, 14ss), relata outro trecho do discurso de Pedro feito no dia de Pentecostes para a multidão que acorreu com o barulho do vendaval. O mesmo povo que, dias antes, havia pedido a morte de Jesus e a soltura de Barrabás, diante do discurso inspirado de Pedro, pergunta: o que devemos fazer? E Pedro responde: convertei-vos e recebei o batismo para o perdão dos pecados. (At 2, 38) Diz o texto que, naquele dia, cerca de três mil pessoas foram batizadas. Esta leitura, embora sem mencionar diretamente, retrata a figura do Bom Pastor enquanto porta da salvação para as “ovelhas” arrependidas. Esses fenômenos de conversões em massa, que se sucederam logo após o dia de Pentecostes, causavam grande furor aos fariseus, porque foram os seus chefes religiosos que manobraram o povo contra Jesus e agora viam o povo mudando de lado. Nessa ocasião, ainda não surgira a figura singular de Paulo, com sua eloquência e sua sabedoria, no entanto, a população de Jerusalém, que havia acompanhado os acontecimentos da paixão de Jesus e também souberam dos eventos miraculosos que acompanharam a sua morte, ouvindo a pregação simples dos apóstolos, passaram a acreditar em Jesus e entraram a fazer parte do rebanho.
Na segunda leitura, extraída da primeira carta de Pedro (1Pd 2, 20ss), lemos a sequência do texto do domingo anterior, conforme já explicado, de uma carta dirigida aos judeus convertidos, que sofriam perseguições por causa de sua opção religiosa pelo cristianismo. Daí que Pedro os exorta a suportarem com paciência o sofrimento, seguindo o exemplo de Jesus que, mesmo sem culpa, não se maldisse nem se vingou dos que o maltrataram. E também sem fazer alusão direta, o texto de Pedro também guarda relação com a figura do Bom Pastor, quando diz: “andáveis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guarda de vossas vidas.” (1Pd 2, 25) O Bom Pastor, portanto, está presente na pregação dos apóstolos desde os primeiros tempos, porque a metáfora do pastor e do rebanho estava bastante ligada à realidade do povo judeu, que tinha na ovinocultura uma importante fonte de renda, sendo uma profissão tradicional e muito integrada na vida de suas comunidades. Ora, se ainda hoje, quando vivemos numa época de maciça produção tecnológica, a idéia de um pastor ainda tem forte apelo emocional e devocional, quanto mais naquele tempo em que essa atividade era costumeira e rendosa. Os nossos Bispos ainda são chamados de pastores e os ministros das igrejas cristãs não católicas adotaram esse nome como referência para a sua liderança religiosa. No Ceará, a figura que corresponderia ao pastor seria a do vaqueiro, tradicional e romântico personagem da nossa zona rural, que antes aparecia montado em brilhosos cavalos e hoje transita montado em cavalos mecânicos, de pés redondos e emborrachados. Nas cidades do interior, com certeza há mais motocicletas do que automóveis e, se duvidar, do que as tradicionais montarias. Tanger rebanhos a cavalo numa moto é a nova imagem do nosso sertão tecnológico.
A leitura do evangelho de João (Jo 10, 1-10) narra o início da parábola do Bom Pastor, um dos símbolos muitas vezes repetidos na catequese de Jesus, sendo uma narrativa que consta apenas no evangelho escrito por João. É sempre conveniente lembrar que João escreveu bem depois dos outros evangelistas, portanto, ele devia conhecer os textos dos outros evangelistas. Daí que ele, tendo tido o privilégio de conviver com Jesus e tendo conhecido os escritos anteriores, pôde fazer uma espécie de complementação, relatando fatos e circunstâncias que os demais não haviam escrito. Por isso, é comum encontrarem-se certas passagens que constam apenas no evangelho joanino e é também por isso que este evangelho não leva o título de sinótico, como os três primeiros. Enquanto os outros fizeram uma espécie de sinopse de textos esparsos que circulavam nas comunidades, guardando assim diversas passagens em comum, o evangelho de João é mais reflexivo e específico, legando-nos o entendimento das primeiras comunidades localizadas na região da Ásia Menor, onde ele atuava. Apenas para recordar, João escreveu seu evangelho em Éfeso, onde era bispo daquela comunidade.
Acerca da figura do Bom Pastor, ele começa descrevendo o seu oposto, isto é, o mau pastor, aquele que não entra pela porta, mas furtivamente e às escondidas. A tradução oficial da CNBB usa dois substantivos para exemplificar o mau pastor: ladrão e assaltante. (Jo 10, 1) Mas vejamos os vocábulos originais, para fazermos uma comparação. No texto da vulgata, São Jerônimo chama o mau pastor de “fur et latro”, que em português correspondem à tradução oficial. FUR é o que rouba às escondidas e LATRO é o que rouba com violência. Porém, no texto grego original, os vocábulos são “kléptes” e “lestes”, sendo que “kléptes” significa embusteiro, enganador, o que age com dissimulação. Na língua portuguesa, existe a palavra “cleptomania”, referida às pessoas que têm um desvio de conduta que as leva a se apoderarem de bens alheios furtivamente, até sem ter necessidade, apenas pela emoção de surrupiar. E a palavra “lestes” deriva do verbo “lesteuô”, que significa fazer pirataria, portanto, “lestes” é o pirata, o usurpador. No grego como no latim, ambas as palavras têm a ver com o furto e podem ser traduzidas, genericamente, por ladrão. Mas me parece que essas explicações vocabulares ajudam a compreender um sentido mais profundo por trás do conceito do mau pastor. O ladrão e o assaltante põem as ovelhas para correr e assim não podem ser comparadas com um pastor. Já o enganador, o dissimulado, o usurpador tentam se passar pelo autêntico pastor e podem, estes sim, enganar as ovelhas. São os lobos travestidos de cordeiros, outra figura também emblemática nesse contexto. Por isso, penso que esses estereótipos são mais compatíveis com a figura do mau pastor do que os conceitos comuns de ladrão e assaltante. Mais adiante, no versículo 12 (que não faz parte da leitura de hoje), João compara o mau pastor com o mercenário, que está mais relacionado com a figura do usurpador, do enganador, o que reforça a minha conclusão de que os termos ladrão e assaltante não são os mais adequados para a metáfora.
Então, o bom pastor é o que entra pela porta e as ovelhas conhecem sua voz e o seguem. Logo em seguida, ao fazer uma explicação mais direta, porque pareceu que seus interlocutores não haviam entendido, Jesus diz claramente: digo-lhes uma coisa – eu sou a porta, (Jo 10, 7) quem entrar por mim será salvo (Jo 10, 9). Observemos a transmudação dos conceitos: o bom pastor torna-se a própria porta por onde as ovelhas devem entrar, ele entra pela porta e se transforma na própria porta do aprisco. Mais do que o simples condutor do rebanho, como são todos os pastores convencionais, Jesus se identifica como a porta por onde as ovelhas devem entrar para encontrarem pastagens abundantes. Aí está a grande novidade. Transcendendo o conceito de bom pastor para a porta da verdade, Jesus está se auto afirmando como Deus. Ele não apenas conduz os seus seguidores para Deus, mas quem crê n'Ele e, portanto, passa através d'Ele, já chegou a Deus. Concretamente, no âmbito de nossas vidas, a porta por onde passamos para chegar até Jesus é o nosso batismo, pelo qual passamos a fazer parte do seu “rebanho”. Assim, voltamos ao trecho da leitura de Atos, citado acima, quando Pedro responde aos que o interrogaram sobre o que deviam fazer: convertam-se e aceitem o batismo de Jesus. (At 2, 38) Aceitar o batismo significa escolher a porta certa, a porta da verdade, que conduz à salvação.
Meus amigos, o batismo não é um fato do nosso passado, de quando ainda éramos infantes e nossos pais nos levaram a receber esse divino dom. Esse evento foi apenas o momento da entrada, mas nós continuamos a caminhar na estrada da salvação. Por isso, o batismo deve se renovar a cada dia, na nossa missão junto à família, à sociedade, à profissão, através do nosso testemunho de pertença ao rebanho de Cristo, pelo qual as pessoas com quem convivemos possam perceber em nós a marca que identifica os verdadeiros cristãos.
Caros Confrades,
O tema recorrente da liturgia do 4º domingo da Páscoa é a clássica imagem do Bom Pastor, que se apresenta como a porta por onde passam as suas ovelhas (Jo 10, 7). Repete-se o mesmo tema dos anos anteriores, porém tendo como referências outras leituras bíblicas. Neste domingo, tanto quanto no domingo anterior, predomina a figura de Pedro, na leitura de Atos e também na leitura da sua primeira carta. O oposto do bom pastor será o meliante, o que entra furtivamente, e o que rouba ostensivamente. Olhando para a nossa sociedade contemporânea, parece que estamos em tempos de falta de bons pastores. A todo momento, só temos notícias somente dessas figuras opostas.
A primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (2, 14ss), relata outro trecho do discurso de Pedro feito no dia de Pentecostes para a multidão que acorreu com o barulho do vendaval. O mesmo povo que, dias antes, havia pedido a morte de Jesus e a soltura de Barrabás, diante do discurso inspirado de Pedro, pergunta: o que devemos fazer? E Pedro responde: convertei-vos e recebei o batismo para o perdão dos pecados. (At 2, 38) Diz o texto que, naquele dia, cerca de três mil pessoas foram batizadas. Esta leitura, embora sem mencionar diretamente, retrata a figura do Bom Pastor enquanto porta da salvação para as “ovelhas” arrependidas. Esses fenômenos de conversões em massa, que se sucederam logo após o dia de Pentecostes, causavam grande furor aos fariseus, porque foram os seus chefes religiosos que manobraram o povo contra Jesus e agora viam o povo mudando de lado. Nessa ocasião, ainda não surgira a figura singular de Paulo, com sua eloquência e sua sabedoria, no entanto, a população de Jerusalém, que havia acompanhado os acontecimentos da paixão de Jesus e também souberam dos eventos miraculosos que acompanharam a sua morte, ouvindo a pregação simples dos apóstolos, passaram a acreditar em Jesus e entraram a fazer parte do rebanho.
Na segunda leitura, extraída da primeira carta de Pedro (1Pd 2, 20ss), lemos a sequência do texto do domingo anterior, conforme já explicado, de uma carta dirigida aos judeus convertidos, que sofriam perseguições por causa de sua opção religiosa pelo cristianismo. Daí que Pedro os exorta a suportarem com paciência o sofrimento, seguindo o exemplo de Jesus que, mesmo sem culpa, não se maldisse nem se vingou dos que o maltrataram. E também sem fazer alusão direta, o texto de Pedro também guarda relação com a figura do Bom Pastor, quando diz: “andáveis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guarda de vossas vidas.” (1Pd 2, 25) O Bom Pastor, portanto, está presente na pregação dos apóstolos desde os primeiros tempos, porque a metáfora do pastor e do rebanho estava bastante ligada à realidade do povo judeu, que tinha na ovinocultura uma importante fonte de renda, sendo uma profissão tradicional e muito integrada na vida de suas comunidades. Ora, se ainda hoje, quando vivemos numa época de maciça produção tecnológica, a idéia de um pastor ainda tem forte apelo emocional e devocional, quanto mais naquele tempo em que essa atividade era costumeira e rendosa. Os nossos Bispos ainda são chamados de pastores e os ministros das igrejas cristãs não católicas adotaram esse nome como referência para a sua liderança religiosa. No Ceará, a figura que corresponderia ao pastor seria a do vaqueiro, tradicional e romântico personagem da nossa zona rural, que antes aparecia montado em brilhosos cavalos e hoje transita montado em cavalos mecânicos, de pés redondos e emborrachados. Nas cidades do interior, com certeza há mais motocicletas do que automóveis e, se duvidar, do que as tradicionais montarias. Tanger rebanhos a cavalo numa moto é a nova imagem do nosso sertão tecnológico.
A leitura do evangelho de João (Jo 10, 1-10) narra o início da parábola do Bom Pastor, um dos símbolos muitas vezes repetidos na catequese de Jesus, sendo uma narrativa que consta apenas no evangelho escrito por João. É sempre conveniente lembrar que João escreveu bem depois dos outros evangelistas, portanto, ele devia conhecer os textos dos outros evangelistas. Daí que ele, tendo tido o privilégio de conviver com Jesus e tendo conhecido os escritos anteriores, pôde fazer uma espécie de complementação, relatando fatos e circunstâncias que os demais não haviam escrito. Por isso, é comum encontrarem-se certas passagens que constam apenas no evangelho joanino e é também por isso que este evangelho não leva o título de sinótico, como os três primeiros. Enquanto os outros fizeram uma espécie de sinopse de textos esparsos que circulavam nas comunidades, guardando assim diversas passagens em comum, o evangelho de João é mais reflexivo e específico, legando-nos o entendimento das primeiras comunidades localizadas na região da Ásia Menor, onde ele atuava. Apenas para recordar, João escreveu seu evangelho em Éfeso, onde era bispo daquela comunidade.
Acerca da figura do Bom Pastor, ele começa descrevendo o seu oposto, isto é, o mau pastor, aquele que não entra pela porta, mas furtivamente e às escondidas. A tradução oficial da CNBB usa dois substantivos para exemplificar o mau pastor: ladrão e assaltante. (Jo 10, 1) Mas vejamos os vocábulos originais, para fazermos uma comparação. No texto da vulgata, São Jerônimo chama o mau pastor de “fur et latro”, que em português correspondem à tradução oficial. FUR é o que rouba às escondidas e LATRO é o que rouba com violência. Porém, no texto grego original, os vocábulos são “kléptes” e “lestes”, sendo que “kléptes” significa embusteiro, enganador, o que age com dissimulação. Na língua portuguesa, existe a palavra “cleptomania”, referida às pessoas que têm um desvio de conduta que as leva a se apoderarem de bens alheios furtivamente, até sem ter necessidade, apenas pela emoção de surrupiar. E a palavra “lestes” deriva do verbo “lesteuô”, que significa fazer pirataria, portanto, “lestes” é o pirata, o usurpador. No grego como no latim, ambas as palavras têm a ver com o furto e podem ser traduzidas, genericamente, por ladrão. Mas me parece que essas explicações vocabulares ajudam a compreender um sentido mais profundo por trás do conceito do mau pastor. O ladrão e o assaltante põem as ovelhas para correr e assim não podem ser comparadas com um pastor. Já o enganador, o dissimulado, o usurpador tentam se passar pelo autêntico pastor e podem, estes sim, enganar as ovelhas. São os lobos travestidos de cordeiros, outra figura também emblemática nesse contexto. Por isso, penso que esses estereótipos são mais compatíveis com a figura do mau pastor do que os conceitos comuns de ladrão e assaltante. Mais adiante, no versículo 12 (que não faz parte da leitura de hoje), João compara o mau pastor com o mercenário, que está mais relacionado com a figura do usurpador, do enganador, o que reforça a minha conclusão de que os termos ladrão e assaltante não são os mais adequados para a metáfora.
Então, o bom pastor é o que entra pela porta e as ovelhas conhecem sua voz e o seguem. Logo em seguida, ao fazer uma explicação mais direta, porque pareceu que seus interlocutores não haviam entendido, Jesus diz claramente: digo-lhes uma coisa – eu sou a porta, (Jo 10, 7) quem entrar por mim será salvo (Jo 10, 9). Observemos a transmudação dos conceitos: o bom pastor torna-se a própria porta por onde as ovelhas devem entrar, ele entra pela porta e se transforma na própria porta do aprisco. Mais do que o simples condutor do rebanho, como são todos os pastores convencionais, Jesus se identifica como a porta por onde as ovelhas devem entrar para encontrarem pastagens abundantes. Aí está a grande novidade. Transcendendo o conceito de bom pastor para a porta da verdade, Jesus está se auto afirmando como Deus. Ele não apenas conduz os seus seguidores para Deus, mas quem crê n'Ele e, portanto, passa através d'Ele, já chegou a Deus. Concretamente, no âmbito de nossas vidas, a porta por onde passamos para chegar até Jesus é o nosso batismo, pelo qual passamos a fazer parte do seu “rebanho”. Assim, voltamos ao trecho da leitura de Atos, citado acima, quando Pedro responde aos que o interrogaram sobre o que deviam fazer: convertam-se e aceitem o batismo de Jesus. (At 2, 38) Aceitar o batismo significa escolher a porta certa, a porta da verdade, que conduz à salvação.
Meus amigos, o batismo não é um fato do nosso passado, de quando ainda éramos infantes e nossos pais nos levaram a receber esse divino dom. Esse evento foi apenas o momento da entrada, mas nós continuamos a caminhar na estrada da salvação. Por isso, o batismo deve se renovar a cada dia, na nossa missão junto à família, à sociedade, à profissão, através do nosso testemunho de pertença ao rebanho de Cristo, pelo qual as pessoas com quem convivemos possam perceber em nós a marca que identifica os verdadeiros cristãos.
domingo, 4 de maio de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - FICA CONOSCO - 04.05.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – FICA CONOSCO – 04.05.2014
Caros Confrades,
A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa nos dá uma pequena demonstração do “trabalho” que Jesus teve para preparar o grupo de seus discípulos para que dessem continuidade à propagação da sua boa nova. Quando nós lemos sobre os primórdios do cristianismo, entendemos melhor de que modo a mão de Deus protegeu e guiou essas primeiras comunidades, de forma a mantê-las vivas e ativas, após o final da missão de Cristo. Muitas pessoas dizem: ah, mas foi o Império Romano quem promoveu a Igreja e lhe deu sustentação política... isso é inegável e, em grande parte, verdadeiro. Ocorre que isso se deu somente no século IV, por obra de Constantino. Mas até lá, foram mais de 300 anos de muita luta e, por cima de tudo, enfrentando perseguições cruéis, até que o vento soprasse favoravelmente. A Igreja de Cristo não dependeu do Império Romano para se manter, ao longo desses 300 anos iniciais, ao contrário, os imperadores romanos anteriores a Constantino tentaram, de diversas maneiras, destruir com essas comunidades. Sem deixar de mencionar também a perseguição que os primeiros cristãos sofreram por parte dos chefes dos sacerdotes judeus, conforme se vêem relatos nos Atos dos Apóstolos.
As duas primeiras leituras dão ênfase ao trabalho de Pedro, nos primórdios do cristianismo (Atos 2, 14-33 e 1Pd 1, 17-21). Pedro não tinha o mesmo preparo nem a mesma eloquência de Paulo e, meus amigos (eu já escrevi isso aqui antes), para mim, a grande prova da origem divina da Igreja de Cristo é a conversão de Paulo. Não precisa grande esforço para perceber que o estilo da pregação de Pedro não tem a força persuasiva, a construção elegante do raciocínio e a profundidade reflexiva dos escritos de Paulo. Depois de haver tentado, com uma catequese insistente e demorada com aquele grupo de galileus, Jesus chegou à conclusão de que precisava de alguém mais fluente e mais instruído, para compreender melhor a sua doutrina e para interpretá-la e difundi-la com maior propriedade. A solução de Cristo foi cooptar Paulo, um judeu fervoroso, perseguidor implacável e transformá-lo num mais fervoroso ainda discípulo e propagador do evangelho. O chamado de Paulo foi uma consequência dessa dificuldade que Jesus enfrentou para formar um grupo de discípulos e continuadores do seu trabalho, dada a grande limitação humana dos vocacionados galileus.
Na primeira leitura, um trecho dos Atos dos Apóstolos, Pedro faz uma pregação para o povo no dia de Pentecostes e faz uma interpretação bastante extensiva do Salmo 15, atribuído a Davi, no qual ele canta: “ meu corpo no repouso está tranquilo; pois não haveis de me deixar entregue à morte, nem vosso amigo conhecer a corrupção” - este salmo é rezado também na liturgia de hoje – aludindo a que Davi estaria profetizando a ressurreição de Cristo. Vejamos como Pedro interpretou essa passagem: “o patriarca Davi morreu e foi sepultado e seu sepulcro está entre nós até hoje. Mas, sendo profeta, sabia que Deus lhe jurara solenemente que um de seus descendentes ocuparia o trono. É, portanto, a ressurreição de Cristo que previu e anunciou com as palavras.” Percebe-se que Pedro não tinha lá um grande entrosamento com as Escrituras e foi buscar um trecho de um salmo para tirar daí uma conclusão bem diferente do que os exegetas habitualmente fazem. Os salmos não são livros proféticos, são cânticos ora de louvor, ora de arrependimento, ora de confissão, ora de lamento, além do que Davi não era exatamente um profeta. Com todo respeito à figura apostólica singular de Pedro, mas sabe-se que ninguém dá o que não tem e, no caso dele, nem mesmo com a suprema inspiração do Espírito Santo, ele foi muito feliz na referência ao rei Davi. Ou seja, se a Igreja de Cristo tivesse que depender somente da pregação dos doze discípulos originais, parece-me que os resultados teriam sido bastante modestos.
Na segunda leitura, da primeira Carta de Pedro (1Pd 1, 17-21), vemos uma referência aos judeus convertidos, que se espalhavam por toda a Ásia Menor. Os estudiosos colocam em dúvida a autoria de Pedro, por causa do certas semelhanças com o estilo de Paulo, o que outros justificam que o escriba desta carta teria sido Silas, que era discípulo de Paulo, e ao escrever a pedido de Pedro, teria mostrado uma certa influência paulina. Este trecho demonstra bem que Pedro se referia aos judeus convertidos: “Sabeis que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais, não por meio de coisas perecíveis, como a prata ou o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha nem defeito ” (18-19) Também o versículo anterior denota que os destinatários eram judeus dispersos, que viviam em locais onde pagãos e judeus não convertidos eram maioria e tinham atitudes hostis para com os judeus convertidos: “vivei então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste mundo.” (17) A palavra traduzida por “migração”, no texto acima, corresponde no original grego ao vocábulo “paroikias”, que significa a situação daquele que vive num país estrangeiro e isso se aplicava nos dois sentidos, tanto no sentido político da época (cristãos vivendo em cidades judias) quanto no sentido espiritual da “peregrinação” terrestre, a caminho do céu. Como deve ser do conhecimento de todos, enquanto Pedro e os outros discípulos desenvolveram seu trabalho na Ásia Menor, onde havia a maior quantidade de população judia, o trabalho de Paulo se voltou para as comunidades gregas, na época dominada pelos romanos, expandindo suas atividades até a própria Roma, abrindo caminho para Pedro depois se estabelecer por lá.
O texto do evangelho de Lucas (24, 13-35) relata o conhecido episódio dos discípulos que se dirigiam para Emaús. Essa história é contada apenas pelo evangelista Lucas e mostra como Jesus precisou, literalmente, sair correndo atrás daqueles dois fujões, que haviam se desgarrado do grupo que ficara em Jerusalém, certamente desiludidos com os últimos acontecimentos. E como foi difícil para eles reconhecerem a Jesus e compreenderem o significado de tudo o que acontecera. Jesus precisou repetir toda a catequese, relacionando com as escrituras e, por fim, somente no ato de partir o pão eles o identificaram. Então, voltaram imediatamente para Jerusalém (diz o evangelho que distava cerca de 11 km, distância do centro de Fortaleza a Messejana) e, chegando lá, encontraram os outros reunidos e relataram para eles a experiência que tiveram. A leitura do evangelho de hoje termina nesse ponto, mas no versículo seguinte, diz que “enquanto eles ainda estavam falando, Jesus apareceu no meio deles” (36) e eles ficaram amedrontados, pensando que estavam vendo um fantasma. Foi preciso Jesus dizer: por que estais perturbados? Vede as minhas mãos e pés... que coisa incrível. Os dois estavam falando justamente que haviam conversado com Jesus ressuscitado e, no instante em que Jesus lhes apareceu, não conseguiram reconhecê-lo. Quão difícil foi, para Jesus, preparar esse pequeno grupo para dar continuidade ao seu trabalho messiânico.
Além dessa dificuldade de natureza pedagógica e administrativa, foram muitos os entraves de ordem política que os primeiros cristãos tiveram de enfrentar. O próprio apóstolo Paulo relatou que precisou, às vezes, sair da cidade como fugitivo, com medo de ser apedrejado pelos seus perseguidores, que eram judeus fanáticos e Paulo, com sua formação judaica, os desafiava. E depois vieram as perseguições mais audazes e destruidoras por parte das autoridades romanas, que vitimaram os dois grandes líderes Pedro e Paulo no mesmo ano, embora não juntos, na época do imperador Nero. Este e Diocleciano fizeram o maior massacre de cristãos naquele tempo, algo similar ao que está ocorrendo também nos dias de hoje, os Colegas devem ter visto as notícias desta semana, inúmeros cristãos crucificados na Síria, num grande deboche vingativo, algo que faz lembrar os tempos daqueles cruéis imperadores. A força da fé mantinha unidos os cristãos dos primeiros tempos, como também os de hoje, que passam por severas provações. Nós, que temos uma vida relativamente calma em relação a essas políticas agressivas e sangrentas de outros países, não conseguimos fazer idéia do que é ser cristão em situação adversa. Contudo, no passado tanto quanto hoje, a presença de Cristo e os dons do Espírito fortalecem os cristãos que são perseguidos, mantendo-os firmes nas suas convicções.
Pois bem, meus amigos. Essas recordações dos tempos heróicos dos primeiros missionários devem servir para nos fortalecer também na nossa fé, quando tomamos consciência do quanto eles tiveram de suportar para testemunharem a Cristo, enquanto nós, muitas vezes por comodismo ou por preguiça, nos esquivamos de demonstrar a nossa fé e o nosso compromisso, através das nossas atitudes, pelas quais devemos ser identificados como discípulos de Cristo. O tempo pascal se presta para refletirmos sobre a nossa vocação cristã e para avaliarmos o grau de nossa fidelidade à fé que professamos.
Caros Confrades,
A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa nos dá uma pequena demonstração do “trabalho” que Jesus teve para preparar o grupo de seus discípulos para que dessem continuidade à propagação da sua boa nova. Quando nós lemos sobre os primórdios do cristianismo, entendemos melhor de que modo a mão de Deus protegeu e guiou essas primeiras comunidades, de forma a mantê-las vivas e ativas, após o final da missão de Cristo. Muitas pessoas dizem: ah, mas foi o Império Romano quem promoveu a Igreja e lhe deu sustentação política... isso é inegável e, em grande parte, verdadeiro. Ocorre que isso se deu somente no século IV, por obra de Constantino. Mas até lá, foram mais de 300 anos de muita luta e, por cima de tudo, enfrentando perseguições cruéis, até que o vento soprasse favoravelmente. A Igreja de Cristo não dependeu do Império Romano para se manter, ao longo desses 300 anos iniciais, ao contrário, os imperadores romanos anteriores a Constantino tentaram, de diversas maneiras, destruir com essas comunidades. Sem deixar de mencionar também a perseguição que os primeiros cristãos sofreram por parte dos chefes dos sacerdotes judeus, conforme se vêem relatos nos Atos dos Apóstolos.
As duas primeiras leituras dão ênfase ao trabalho de Pedro, nos primórdios do cristianismo (Atos 2, 14-33 e 1Pd 1, 17-21). Pedro não tinha o mesmo preparo nem a mesma eloquência de Paulo e, meus amigos (eu já escrevi isso aqui antes), para mim, a grande prova da origem divina da Igreja de Cristo é a conversão de Paulo. Não precisa grande esforço para perceber que o estilo da pregação de Pedro não tem a força persuasiva, a construção elegante do raciocínio e a profundidade reflexiva dos escritos de Paulo. Depois de haver tentado, com uma catequese insistente e demorada com aquele grupo de galileus, Jesus chegou à conclusão de que precisava de alguém mais fluente e mais instruído, para compreender melhor a sua doutrina e para interpretá-la e difundi-la com maior propriedade. A solução de Cristo foi cooptar Paulo, um judeu fervoroso, perseguidor implacável e transformá-lo num mais fervoroso ainda discípulo e propagador do evangelho. O chamado de Paulo foi uma consequência dessa dificuldade que Jesus enfrentou para formar um grupo de discípulos e continuadores do seu trabalho, dada a grande limitação humana dos vocacionados galileus.
Na primeira leitura, um trecho dos Atos dos Apóstolos, Pedro faz uma pregação para o povo no dia de Pentecostes e faz uma interpretação bastante extensiva do Salmo 15, atribuído a Davi, no qual ele canta: “ meu corpo no repouso está tranquilo; pois não haveis de me deixar entregue à morte, nem vosso amigo conhecer a corrupção” - este salmo é rezado também na liturgia de hoje – aludindo a que Davi estaria profetizando a ressurreição de Cristo. Vejamos como Pedro interpretou essa passagem: “o patriarca Davi morreu e foi sepultado e seu sepulcro está entre nós até hoje. Mas, sendo profeta, sabia que Deus lhe jurara solenemente que um de seus descendentes ocuparia o trono. É, portanto, a ressurreição de Cristo que previu e anunciou com as palavras.” Percebe-se que Pedro não tinha lá um grande entrosamento com as Escrituras e foi buscar um trecho de um salmo para tirar daí uma conclusão bem diferente do que os exegetas habitualmente fazem. Os salmos não são livros proféticos, são cânticos ora de louvor, ora de arrependimento, ora de confissão, ora de lamento, além do que Davi não era exatamente um profeta. Com todo respeito à figura apostólica singular de Pedro, mas sabe-se que ninguém dá o que não tem e, no caso dele, nem mesmo com a suprema inspiração do Espírito Santo, ele foi muito feliz na referência ao rei Davi. Ou seja, se a Igreja de Cristo tivesse que depender somente da pregação dos doze discípulos originais, parece-me que os resultados teriam sido bastante modestos.
Na segunda leitura, da primeira Carta de Pedro (1Pd 1, 17-21), vemos uma referência aos judeus convertidos, que se espalhavam por toda a Ásia Menor. Os estudiosos colocam em dúvida a autoria de Pedro, por causa do certas semelhanças com o estilo de Paulo, o que outros justificam que o escriba desta carta teria sido Silas, que era discípulo de Paulo, e ao escrever a pedido de Pedro, teria mostrado uma certa influência paulina. Este trecho demonstra bem que Pedro se referia aos judeus convertidos: “Sabeis que fostes resgatados da vida fútil herdada de vossos pais, não por meio de coisas perecíveis, como a prata ou o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha nem defeito ” (18-19) Também o versículo anterior denota que os destinatários eram judeus dispersos, que viviam em locais onde pagãos e judeus não convertidos eram maioria e tinham atitudes hostis para com os judeus convertidos: “vivei então respeitando a Deus durante o tempo de vossa migração neste mundo.” (17) A palavra traduzida por “migração”, no texto acima, corresponde no original grego ao vocábulo “paroikias”, que significa a situação daquele que vive num país estrangeiro e isso se aplicava nos dois sentidos, tanto no sentido político da época (cristãos vivendo em cidades judias) quanto no sentido espiritual da “peregrinação” terrestre, a caminho do céu. Como deve ser do conhecimento de todos, enquanto Pedro e os outros discípulos desenvolveram seu trabalho na Ásia Menor, onde havia a maior quantidade de população judia, o trabalho de Paulo se voltou para as comunidades gregas, na época dominada pelos romanos, expandindo suas atividades até a própria Roma, abrindo caminho para Pedro depois se estabelecer por lá.
O texto do evangelho de Lucas (24, 13-35) relata o conhecido episódio dos discípulos que se dirigiam para Emaús. Essa história é contada apenas pelo evangelista Lucas e mostra como Jesus precisou, literalmente, sair correndo atrás daqueles dois fujões, que haviam se desgarrado do grupo que ficara em Jerusalém, certamente desiludidos com os últimos acontecimentos. E como foi difícil para eles reconhecerem a Jesus e compreenderem o significado de tudo o que acontecera. Jesus precisou repetir toda a catequese, relacionando com as escrituras e, por fim, somente no ato de partir o pão eles o identificaram. Então, voltaram imediatamente para Jerusalém (diz o evangelho que distava cerca de 11 km, distância do centro de Fortaleza a Messejana) e, chegando lá, encontraram os outros reunidos e relataram para eles a experiência que tiveram. A leitura do evangelho de hoje termina nesse ponto, mas no versículo seguinte, diz que “enquanto eles ainda estavam falando, Jesus apareceu no meio deles” (36) e eles ficaram amedrontados, pensando que estavam vendo um fantasma. Foi preciso Jesus dizer: por que estais perturbados? Vede as minhas mãos e pés... que coisa incrível. Os dois estavam falando justamente que haviam conversado com Jesus ressuscitado e, no instante em que Jesus lhes apareceu, não conseguiram reconhecê-lo. Quão difícil foi, para Jesus, preparar esse pequeno grupo para dar continuidade ao seu trabalho messiânico.
Além dessa dificuldade de natureza pedagógica e administrativa, foram muitos os entraves de ordem política que os primeiros cristãos tiveram de enfrentar. O próprio apóstolo Paulo relatou que precisou, às vezes, sair da cidade como fugitivo, com medo de ser apedrejado pelos seus perseguidores, que eram judeus fanáticos e Paulo, com sua formação judaica, os desafiava. E depois vieram as perseguições mais audazes e destruidoras por parte das autoridades romanas, que vitimaram os dois grandes líderes Pedro e Paulo no mesmo ano, embora não juntos, na época do imperador Nero. Este e Diocleciano fizeram o maior massacre de cristãos naquele tempo, algo similar ao que está ocorrendo também nos dias de hoje, os Colegas devem ter visto as notícias desta semana, inúmeros cristãos crucificados na Síria, num grande deboche vingativo, algo que faz lembrar os tempos daqueles cruéis imperadores. A força da fé mantinha unidos os cristãos dos primeiros tempos, como também os de hoje, que passam por severas provações. Nós, que temos uma vida relativamente calma em relação a essas políticas agressivas e sangrentas de outros países, não conseguimos fazer idéia do que é ser cristão em situação adversa. Contudo, no passado tanto quanto hoje, a presença de Cristo e os dons do Espírito fortalecem os cristãos que são perseguidos, mantendo-os firmes nas suas convicções.
Pois bem, meus amigos. Essas recordações dos tempos heróicos dos primeiros missionários devem servir para nos fortalecer também na nossa fé, quando tomamos consciência do quanto eles tiveram de suportar para testemunharem a Cristo, enquanto nós, muitas vezes por comodismo ou por preguiça, nos esquivamos de demonstrar a nossa fé e o nosso compromisso, através das nossas atitudes, pelas quais devemos ser identificados como discípulos de Cristo. O tempo pascal se presta para refletirmos sobre a nossa vocação cristã e para avaliarmos o grau de nossa fidelidade à fé que professamos.
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