domingo, 22 de junho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - O NOVO ADÃO - 22.06.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O NOVO ADÃO – 22.06.2014

Caros Confrades,

Após as festas temáticas, retornamos ao tempo litúrgico comum. Neste 12º domingo comum, o tema da liturgia abre espaço para uma abordagem da relação entre religião e política, através da exortação de Cristo: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e nada mais podem fazer. De fato, num tempo de grande avanço do secularismo, as pessoas sentem cada vez mais dificuldades para expressarem a sua fé, temendo as censuras sob todos os aspectos, levando muitos cristãos a terem atitudes omissas, quando poderiam dar testemunho. Contudo, eu evitarei esse viés político e vou preferir uma abordagem mais teológica, concentrada na carta de Paulo aos Romanos, na qual ele compara Cristo ao primeiro homem, dando origem a uma nova criação.

A primeira leitura traz um texto do profeta Jeremias. A vida deste profeta é um verdadeiro desafio à existência humana. Ele era um intelectual, estudioso, pesquisador, escreveu vários livros. Ele assistiu à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, porém não foi levado cativo, como muitos hebreus foram, continuou residindo no território de Judá, após esses fatos. Porém, logo depois, foi obrigado a debandar para o Egito, por causa de perseguições de grupos radicais. O fato de Jeremias não ter sido levado como cativo, tendo sido poupado por Nabucodonosor, deixou para alguns a idéia de que ele teria sido simpático aos babilônicos e por isso ele era perseguido, até por pessoas de sua própria família. Também, ele foi chamado a profetizar quando ainda era muito jovem e isso o colocou em algumas dificuldades perante as autoridades. Jeremias era uma pessoa marcada, naquele tempo, ele já sofria de bullying em Israel. Visto isso, consegue-se compreender melhor a razão pela qual os textos de Jeremias são sempre queixosos, amargurados. Basta lembrar que ele é também o autor do Livro das Lamentações.

No texto da leitura de hoje (Jr 20, 10), ele faz o seguinte desabafo: “Todos os amigos observam minhas falhas: ‘Talvez ele cometa um engano e nós poderemos apanhá-lo e desforrar-nos dele’.” Quem tem amigos assim, fica-se a imaginar como serão os inimigos. Isso mostra o quanto Jeremias era discriminado e sabia que muitos tramavam contra ele. Por isso, ele foi arrastado, contra a sua vontade, para morar no Egito. Mas lá, a sua situação não melhorou. Lá, ele via o povo de Deus abandonando as tradições hebraicas e se filiando às idolatrias egípcias e não conseguia ficar calado, bradando sempre contra tudo isso e conclamando o povo a retornar à sua fé. Não via muito resultado na sua pregação, mas não desanimava. Diz ele no versículo 11: “Mas o Senhor está ao meu lado, como forte guerreiro; por isso, os que me perseguem cairão vencidos. Por não terem tido êxito, eles se cobrirão de vergonha. Eterna infâmia, que nunca se apaga!” O fim da vida de Jeremias não poderia ser outro, senão este: foi apedrejado pelos próprios hebreus da localidade egípcia onde moravam, porque estes não suportaram mais ouvi-lo o tempo todo a bradar contra a idolatria deles e a chamá-los de volta à verdadeira fé de Javeh.

Na segunda leitura, temos um trecho bastante conhecido e polêmico da carta de Paulo aos Romanos (5, 12-15), no qual o apóstolo faz uma comparação entre Adão e Cristo: Adão foi o primeiro homem da aliança antiga, Cristo foi o primeiro homem da nova aliança. Teria ficado ótimo se Paulo tivesse parado a comparação por aí. Mas ele, com a sua mentalidade de judeu convertido, quis enfatizar o seu conhecimento da doutrina judaica, para demonstrar que Cristo é o ponto de partida de uma nova revelação e, para ilustrar isso, proclamou: O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. … A graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos. (versículos 12 e 15) No meu ponto de vista, Paulo está ensinando sobre o pecado original. Tanto assim que, no versículo 14, ele diz: a morte reinou, desde Adão até Moisés, mesmo sobre os que não pecaram como Adão, o qual era a figura provisória daquele que devia vir. Por outras palavras, o pecado de Adão, que não tem nada a ver com a degustação da maçã, respingou sobre todos os seres humanos, recaindo até sobre os que não agiram como ele, e mesmo num tempo em que não havia lei, ou seja, antes de Moisés, essas pessoas inocentes não poderiam ser imputadas de culpa, no entanto, mesmo assim, foram atingidas pelas consequências do pecado. Somente com a chegada “daquele que devia vir”, isto é, com a vinda de Cristo, a graça de Deus lavou a mancha do pecado e, com isso, aqueles que morreram no pecado inocentemente também foram alcançados pela graça purificadora de Cristo e assim ganharam a salvação. Esse é o sentido da expressão “desceu aos infernos” (atualmente, a tradução substituiu a palavra “infernos” por “mansão dos mortos”), isto é, a salvação trazida com a morte de Cristo se estendeu amplamente para todos os homens, do passado, do presente e do futuro. Assim, em poucas palavras, é a doutrina teológica sobre o pecado original.

Talvez, alguém esteja se perguntando: mas, afinal, qual foi mesmo o pecado de Adão, para ter essas consequências tão devastadoras? Há uma tradição muito arraigada na mentalidade popular, e que é atribuída a uma interpretação de Santo Agostinho, de que o pecado original estaria relacionado com o sexo. Talvez porque a tradição judaica, incorporada pelo cristianismo, tenha sempre tratado o sexo como um grande tabu, como algo “nec nominetur in vobis” (o Frei Higino gostava dessa expressão), que somente seria permitido estritamente para fins de procriação e mesmo assim dentro do matrimônio regular. Essa é uma polêmica sem tamanho, na qual não quero adentrar nessas poucas linhas, mas o pecado de Adão, que pesou de forma estrutural sobre todos os seres humanos, foi o do orgulho e da desobediência. A serpente, representando a própria natureza imperfeita do homem, o induziu a comer do fruto proibido (que nem era o sexo nem era a maçã) com a ilusão de que esse fruto o tornaria um imortal igual a Deus, e ele acreditou. E ainda pôs a mulher no meio do caminho, como uma alusão metafórica à influência que a mulher tradicionalmente exerce sobre o homem. E assim os primeiros pais cometeram dois pecados em uma só atitude: o orgulho de quererem ser iguais a Deus e a desobediência da ordem divina. O resultado, todos conhecemos: eles nem ficaram tão sabidos quando o Criador e ainda ficaram se escondendo, porque descobriram a nudez da sua fragilidade e da sua ignorância. Assim se decodifica, em rápidos traços, a metáfora bíblica do paraíso terrestre, lugar considerado meramente simbólico e fisicamente inexistente pela grande maioria dos teólogos contemporâneos. E o mais interessante de tudo é que, estudando as culturas de outros povos orientais daquele tempo, percebeu-se que em outras regiões também havia histórias semelhantes a essa do paraíso, sem nenhuma relação com a tradição hebraica. Quem tiver interesse sobre esse tema, sugiro que faça pesquisa na internet sobre Gilgamesh.

Voltando ao assunto da carta de Paulo aos Romanos, há uma outra polêmica doutrinária que divide os teólogos e está associada a esse texto, na parte em que Paulo diz que “por um homem entrou o pecado no mundo e por um homem entrou a graça”. A expressão “um homem” é interpretada no sentido estritamente literal por alguns para afirmarem que a teoria evolucionista é contrária à Bíblia e ao cristianismo. De acordo com a teoria evolucionista, não havia apenas “um casal” que deu início à raça humana, mas havia grupos de seres vivos que foram se destacando por sua inteligência superior aos demais e isso ocorreu em algumas regiões do planeta. Então, essa afirmação de que foram vários os iniciadores do gênero humano, e não “um casal”, conforme consta na metáfora do paraíso, leva muitas pessoas a rejeitarem o evolucionismo. Essa polêmica já foi objeto até de processo judicial contra escolas, quando pessoas com esse entendimento quiseram evitar que os seus filhos fossem doutrinados em sentido contrário. Lamentavelmente, o texto bíblico tem essa característica de se prestar tanto a afirmar algo num determinado sentido, quanto noutro sentido às vezes totalmente oposto, dependendo da forma como o leitor interpreta e compreende. Ao meu ver, conforme aduzi acima, a finalidade da lição de Paulo não é ensinar que “um homem” trouxe o pecado e “um homem” trouxe a salvação, mas dizer que o pecado entrou no mundo com a desobediência e isso provocou uma decaída qualitativa dos seres humanos, situação que foi sanada com a redenção trazida por Cristo. Mas o assunto é muito extenso e polêmico e eu não devo me alongar aqui neste espaço.

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