sábado, 5 de julho de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 14º DOMINGO COMUM - A VIDA SEGUNDO O ESPÍRITO - 06.07.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A VIDA PELO ESPÍRITO – 07.07.2014

Caros Confrades:

Na liturgia deste 14º domingo do tempo comum, tomei como motivação para esta reflexão o tema da carta de Paulo aos Romanos: a contraposição entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. Diz o Apóstolo que viver segundo a carne conduz à morte, enquanto viver segundo o espírito produz a vida eterna. É importante lembrar o contexto histórico da sociedade romana da época de Paulo, quando o apogeu do domínio político dos romanos havia construído uma vida social próspera e luxuosa, levando as pessoas a valorizarem o consumo, os banquetes, a ostentação, os prazeres carnais. Paulo divulgava o cristianismo entre a alta sociedade romana, não entre os plebeus e os operários, por isso ele recomenda a eles a vivência sóbria, a austeridade, a renúncia aos bens materiais. No evangelho de Mateus, Jesus explica isso que Paulo chama de viver segundo o espírito, recomendando aprender com Ele a mansidão e a humildade, que Ele garante ser um peso leve e suave, que não onera quem as pratica.

Na primeira leitura, colhida do profeta Zacarias (Zc 9, 9-10), o Profeta faz uma referência ao futuro Messias como o rei da humildade. Este profeta viveu na época pós-exílica, quando os judeus haviam retornado da Babilônia e estavam reconstruindo Jerusalém e o seu templo. Por isso, ele adverte o povo dizendo: “Exulta, cidade de Sião! Rejubila, cidade de Jerusalém! Eis que vem teu rei ao teu encontro; ele é justo, ele salva; é humilde e vem montado num jumento, um potro, cria da jumenta.” É impressionante como o Profeta tendo vivido mais de 500 anos antes de Cristo conseguiu traçar uma figura do Messias com características tão realistas. A entrada de Cristo em Jerusalém, que é comemorada no Domingo de Ramos, é a expressão concreta dessa profecia de Zacarias. E a outra descrição realista do Messias que ele faz diz respeito à sua humildade. Em contraposição com os reis daquele tempo, que viviam na pompa e na ostentação e andavam em montarias vistosas, Zacarias afirma que o verdadeiro rei de Jerusalém praticará a humildade e andará em um jumento, que era a montaria das pessoas pobres. Um outro vate profético muito realista de Zacarias está no versículo 10, quando ele diz “Seu domínio se estenderá de um mar a outro mar, e desde o rio até os confins da terra”, uma clara referência à universalidade do reino de Deus, que seria pregado por Cristo vários séculos depois. Observa-se neste pequeno trecho do profeta o mesmo tema do evangelho, onde Cristo vai anunciar a mansidão e a humildade como sendo as características do comportamento d'Ele e a sua proposta de vida para todos os cristãos.

Na segunda leitura, de Paulo aos Romanos, o Apóstolo não fala diretamente no tema da humildade, mas faz a contraposição das duas formas de viver: segundo a carne e segundo o espírito. Destas duas, a opção de viver segundo o espírito é o seguimento do evangelho de Cristo, que é o tema da catequese paulina para as novas comunidades de convertidos. Convém lembrar que Paulo tinha estudos da cultura grega e entre os gregos naquela época histórica estavam em grande voga as filosofias do autocontrole, da renúncia às coisas materiais, seguindo a doutrina dos discípulos de Sócrates, em especial a doutrina do estoicismo, que pregava a moderação e a ataraxia. Essas doutrinas tinham muita aceitação entre os romanos e, de certo modo, ajudaram na catequese de Paulo porque havia muitas semelhanças entre a doutrina estóica e a doutrina cristã. A diferença entre ambas é que o objetivo do estoicismo era apenas a felicidade terrena, enquanto o cristianismo ensinava a felicidade espiritual, aquela que continua depois da morte. Apenas para explicar melhor o termo “ataraxia”, isso significava a supressão do desejo. Segundo os seguidores de Sócrates, o desejo é sempre fonte de sofrimento e angústia, porque as pessoas alimentam desejos de coisas muito além daquilo que de verdade podem conseguir, então isso traz angústia e sofrimento. Desse modo, se a pessoa conseguir controlar os seus desejos, limitando-os com moderação às suas possibilidades reais, então grande parte dos sofrimentos poderão ser evitados. Daí o ensinamento de Paulo para não viver segundo a carne, nem no que diz respeito à ostentação, ao luxo e aos prazeres materiais como muitos romanos faziam, nem tampouco a prática da moderação apenas por razões filosóficas ou sensoriais, mas em lugar disso, os romanos devem viver segundo o espírito, ou seja, segundo o evangelho de Cristo. Paulo foi beneficiado por essa vantagem, quando pregou o evangelho para a classe culta romana, porque a doutrina estóica era bastante conhecida e aceita entre os intelectuais. A sua tarefa consistiu em ensinar aos Romanos a prática da humildade segundo o modelo proposto por Cristo, não o modelo socrático. Nesse sentido, o ensinamento de Paulo “se viverdes segundo a carne, morrereis”, isto é, se praticardes a humildade e a moderação apenas buscando a felicidade material, isso não vos livrará da morte; contudo, se viverdes segundo o espírito, isto é, se fizerdes isso pelo espírito de Deus que habita em vós, então ganhareis a vida eterna. Esse dualismo corpo-espírito foi muito importante na cultura grega e influenciou de modo muito forte também a cultura romana, nos inícios da era cristã.

Na leitura do evangelho de Mateus (Mt 11, 25-30), temos diversas referências de Cristo à humildade e em contraposição ao orgulho e à soberba. “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos.” Diferentemente da pregação de Paulo, que se dirigia à classe culta romana, a pregação de Cristo era dirigida aos pobres, ao povo das periferias. Os “sábios e entendidos” referidos por Cristo são exatamente os fariseus, os judeus cultos, que não quiseram ouvir a Sua palavra e, por isso, não conheceram a Sua verdade. Ao contrário, os pequeninos que lhe davam atenção foram os grandes beneficiados, diante do orgulho dos sábios daquela sociedade, os que tiveram acesso à revelação das verdades divinas. Jesus está mostrando aí a superioridade da humildade sobre a soberba. Aos humildes, a verdade se apresenta; aos soberbos, aos que se consideram donos da verdade, ela se oculta. É interessante observarmos como esse ensinamento de Cristo é sempre atual, não se aplicava somente aos fariseus do seu tempo. Em todas as épocas, os entendidos sempre tiveram dificuldade de compreender e aceitar as verdades cristãs. Mais do que isso, muitas vezes os intelectuais tentaram manipular os ensinamentos de Cristo ajustando-os aos seus interesses. Isso aconteceu, inclusive, dentro do ambiente eclesiástico, onde surgiram diversas doutrinas divergentes, que foram consideradas heréticas. E hoje esse fenômeno está presente quando as pessoas se aproveitam da ignorância e da boa fé do povo mais simples e os conquistam para suas “igrejas” particulares, que são, na verdade, instrumentos de dominação das pessoas através da fé. O que estes pregam não é a verdade de Cristo, mas a verdades deles mesmos.

A última parte da leitura contém uma referência bem direta aos fariseus daquele tempo, quando Jesus diz “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos”. Sabemos que os fariseus e os sacerdotes interpretavam a lei de Moisés de um modo extraordinariamente rígido e a transformavam numa série de preceitos, que continham mais de 600 proibições. Diversas ações eram catalogadas como contrárias à lei e deixavam impuro que as praticasse. Então, para os fariseus, o cumprimento da lei era algo pesado, tedioso, difícil. Por isso, Jesus vem dizer que não é preciso fazer assim, os fariseus não conhecem a verdade, somente Ele está autorizado a revelar os verdadeiros preceitos da lei, porque “somente o Filho conhece o Pai e aquele a quem o Filho quiser revelar”, e Ele revela aos simples e aos pequeninos. Daí ele dizer aos seus ouvintes para que não se impressionassem com aqueles exageros dos fariseus e viessem segui-lo, porque “o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” E Jesus se coloca como exemplo a ser seguido: “aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração”, isto é, o cristão deve ser manso e humilde. Este é o ponto em que a leitura do evangelho cruza com a carta de Paulo aos Romanos, quando ele exorta aquele povo a “viver pelo espírito de Cristo que habita em vós”. Viver segundo o espírito de Cristo é viver com mansidão e com humildade.

Então, meus amigos, Jesus nos ensina que a lei de Deus é uma coisa simples, nós é que a complicamos com certas interpretações tendenciosas. Isso se refere especialmente aos teólogos, que perdem a noção da humildade e retiram da palavra de Deus interpretações desviadas. Isso se refere também aos leitores da Bíblia sem o devido preparo, sem o necessário estudo. Podem ter certeza de uma coisa: quanto mais complicada for uma pregação, mais está afastada do verdadeiro sentido do evangelho, porque este é dirigido aos pobres e aos humildes e a sua compreensão deve sempre está próxima da simplicidade.

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