COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – O REINO EM PARÁBOLAS – 27.07.2014
Caros Confrades:
Após uma pausa de duas semanas, por motivo de viagens, retomo neste domingo os comentários da liturgia. Por coincidência, no domingo passado, em Parnaíba, até comentei com meus familiares uma frase que estava escrita na camisa de um transeunte, aludindo a que “o reino de Deus está para chegar” e, na ocasião, eu ponderei que o Reino já está entre nós, não é algo do futuro, mas do presente. É o que a teologia chama de “já e ainda não”, para significar que nós iniciamos na vida terrena a construção do Reino, que nos será dado em definitivo na eternidade. Na liturgia deste domingo, temos exemplos de Cristo acerca do Reino através de três metáforas, conforme a conhecida metodologia que ele adotava para explicar sua doutrina àquele grupo de discípulos de poucas letras.
Na primeira leitura, do primeiro livro dos Reis (1Rs 3, 5-12), lemos um episódio relativo ao reino de Israel, protagonizado por Salomão, o mais famoso dos antigos reis. De acordo com a tradição israelita, Salomão foi escolhido rei por ordem de Javeh, pois ele não era o primogênito, mas o profeta Natan obteve a concordância do rei Davi, já bastante idoso na ocasião, e assim ele foi coroado, não sem os protestos de Adonias, o primogênito. Por causa dessa escolha divina é que Salomão teve essa visão em sonho de Javeh perguntando-lhe o que ele queria. Ele pediu e Javeh concedeu-lhe a sabedoria que sempre o distinguiu e, com essa característica, ele reinou durante 40 anos. (Observemos aqui a presença da simbologia do número 40, não significa que o seu período de governo tenha sido matematicamente de 40 anos.) No contexto da liturgia deste domingo, a referência a Salomão é para mostrar que o seu reinado, de muita riqueza e prosperidade para o povo de Israel, era uma prefiguração do reino de Deus, que Cristo viria anunciar futuramente. Se o reino de Salomão, que era puramente terrestre, trouxe tantos bens e glórias para os israelitas, muito mais bênçãos e riquezas trará o novo Reino.
Particularmente, eu não gosto muito dessa terminologia de “reino”, porque é uma realidade que transmite uma idéia de poder político, de ostentação e triunfalismo, não compatível com a imagem que a Igreja de Cristo deve demonstrar. É óbvio que essa terminologia se encontra no evangelho porque essa era a realidade social do tempo de Cristo, mas Ele próprio explicou diversas vezes que o reino d'Ele “não é deste mundo”, detalhe que ficou durante muito tempo esquecido pelas autoridades eclesiásticas e algumas delas, ainda hoje, mantêm essa visão triunfalista. Por essa razão, é sempre necessário referir-se ao “reino” de Deus entre aspas, a fim de caracterizar a autêntica figura que a Igreja deve apresentar. O Papa Francisco foi visto, nesta semana, almoçando em bandejão num restaurante universitário, da mesma forma como os estudantes também o faziam, dando dessa forma o melhor exemplo de que o “reino” de Deus é de todas as pessoas, das pessoas comuns, retirando aquela barreira e aquele distanciamento que sempre houve entre as autoridades eclesiásticas e os demais cristãos.
Na segunda leitura, de Paulo aos Romanos (8, 28-30), o Apóstolo se refere ao “reino” com outro conceito: o projeto de Deus: “Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação, de acordo com o projeto de Deus. ” (Rm 8, 28) Este “projeto” não deve ser outro senão o plano de salvação, a redenção da humanidade trazida por Cristo, do qual a Igreja é agente continuador. É nesse sentido que a Igreja configura o “reino” de Deus em preparação, o “reino” no meio de nós que já está presente, mas ainda não está na sua forma definitiva, isto é, a teoria do “já e ainda não” a que me referi acima. Através da atitude de pertença à comunidade eclesial, nós membros da Igreja fomos predestinados, somos chamados e justificados para, depois, sermos glorificados. O “projeto” de Deus, o plano de salvação são sinônimos do “reino”, daí porque insisto em que devemos entender o reinado de Cristo como um serviço aos irmãos, como Ele por diversas vezes ensinou aos seus discípulos. Lamentavelmente, ao longo do tempo, esse conceito de reino foi tomado no sentido literal e humano, levando ao extremo de se atribuir ao Papa a tiara papal composta pela tríplice coroa, que simbolizava o tríplice poder (pastor universal, poder eclesiástico e poder temporal), simbolizando a figura de Cristo como Sacerdote, Profeta e Rei. Paulo VI foi o último Papa a usá-la, mas depois a abandonou, no que foi seguido pelos papas posteriores. Essa criação medieval representou o auge da incompatibilidade entre o projeto de Deus e a Igreja que o comandava, havendo ainda muitos católicos saudosistas desses rituais.
No evangelho de Mateus (Mt 13, 44-52), Jesus nos dá três exemplos bem simples e compreensíveis do que seja o “reino de Deus”, que Ele veio revelar para nós. Na primeira metáfora, Ele diz: “O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo.” A pessoa que o encontra, vende tudo o que possui para comprar aquele campo e ser possuidor daquele tesouro. Na segunda metáfora, diz: “O Reino dos Céus é também como um comprador que procura pérolas preciosas.” Ao encontrar uma pérola de grande valor, o comprador vende tudo para investir naquela encontrada. Terceira metáfora: “O Reino dos Céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo. ” Levada a rede para a terra, os pescadores recolhem os peixes bons para os cestos e jogam fora os peixes corrompidos. Vejamos os termos de comparação do “reino” com um tesouro, uma pérola, uma rede cheia de peixes, todas as imagens são familiares ao público ouvinte. Agora observemos que as duas primeiras metáforas se referem a um bem precioso, enquanto a terceira inclui coisas boas e más, isto é, os peixes próprios para alimentação e os impróprios. Dizia o Padre Uchoa, meu professor de Bíblia, que essas parábolas não foram pronunciadas por Cristo na mesma ocasião, assim em sequência conforme está escrito no evangelho de Mateus, mas foram metáforas usadas por Cristo em ocasiões diversas e que foram depois colecionadas num mesmo escrito. Isso explica o motivo pelo qual os três objetos de comparação não são similares. As três imagens colocadas como estão no texto trazem uma certa confusão na nossa mente ao tentarmos apreender o seu significado, por isso, devemos entendê-las separadamente.
O tesouro e a pérola fizeram com que o descobridor vendesse tudo, ou seja, abandonasse tudo o que possuía a fim de apoderar-se daquela preciosidade. Quem descobre o “reino” de Deus logo percebe que tudo o mais é irrelevante, aderindo completamente àquele. Diante da grandeza do “reino”, todos os bens materiais ficam sem valor e não se comparam a ele. Mas como toda comparação é imperfeita, o encontrador do tesouro e o comprador da pérola manifestam uma imagem egoísta assim como se o “reino” pudesse ser possuído totalmente por uma pessoa só, o que de fato não corresponde à sua verdadeira essência, pois o “reino” é de todos. Porém o objetivo da parábola é demonstrar a sua incomparável grandeza frente a todas as realidades materiais. A imagem da rede cheia de peixes tem uma conotação diferente, por referir-se a uma situação de seletividade, dando a entender que nem todos estão aptos a pertencerem ao “reino”. Estes seriam aqueles que pretendem obter o tesouro ou a pérola sem, contudo, se desfazerem dos seus bens terrenos, por isso ficam corrompidos e divididos e precisam ser excluídos do grupo dos eleitos.
A parte mais interessante vem agora, quando Jesus pergunta se todos entenderam. Eles respondem que sim, então Jesus completa: “todo o mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas.” O evangelista não explica essa conclusão, que parece estar dissociada das parábolas apresentadas. Primeiro, porque os ouvintes de Jesus não eram mestres da Lei. Segundo, o que significa esse tesouro que tem coisas novas e velhas? Tudo indica que, na elaboração desse texto, o evangelista tomou vários manuscritos e os integrou sem preocupar-se com a harmonização dos conteúdos. No meu entendimento, essa conclusão não é propriamente um fecho das três parábolas, mas uma referência aos fariseus, que eram mestres da Lei e que, ao se converterem para o novo “reino”, deveriam ser capazes de conciliar os ensinamentos da Torah antiga com a Boa Nova trazida por Cristo. Através de outras passagens dos evangelhos, sabe-se que nem todos os fariseus se opuseram a Jesus, mas alguns se converteram e se tornaram seus discípulos, ainda que secretamente, por receio da represália dos outros. Estes foram os que souberam retirar do seu tesouro familiar as coisas novas e velhas.
Que o divino Mestre nos conceda a sabedoria salomônica para não ficarmos apegados ao passado e sempre sabermos transformar velhas doutrinas em novas idéias, acompanhando a evolução da sociedade.
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