COMENTÁRIO LITÚRGICO – 26º DOMINGO COMUM – OBEDIÊNCIA E FIDELIDADE– 28.09.2014
Caros Confrades,
A liturgia deste domingo deste 26º domingo comum dá sequência às parábolas de Jesus em relação aos fariseus, enfocando o tema de que obedecer não é cumprir formalmente a lei, mas vivê-la no seu coração. Cristo nos deu o mais perfeito exemplo da obediência, no dizer do apóstolo Paulo, quando deixou de lado sua condição divina e assumiu a nossa humanidade, humilhando-se até à morte, tudo para cumprir com fidelidade o plano do Pai.
A primeira leitura é retirada do Profeta Ezequiel, que chama a atenção para a conduta de acordo com a justiça, como garantia de uma vida longa. É importante lembrar que Ezequiel profetizou no tempo do exílio da Babilônia junto aos exilados. Ele era também um deles. Javeh permitiu que o povo hebreu sofresse essa imensa humilhação de ser levado cativo para uma terra estrangeira, por causa da desobediência à aliança, porque abandonaram o projeto dos Patriarcas, porque trocaram Javeh pelos ídolos e a lei pela vida luxuosa. O Profeta adverte: “Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre.” (Ez 18, 26) Era isso que havia acontecido ao povo hebreu: desviara-se da justiça, por isso estava no cativeiro. Todos tinham fé em que Javeh não iria deixar o seu povo para sempre cativo. No entanto, o Profeta foi enviado para anunciar que a libertação só ocorrerá quando eles se converterem, isto é, abandonarem a vida de desobediência e retornarem para o projeto de Javeh. O estilo de Ezequel é cheio de imagens fortes, pelas quais ele busca sensibilizar o povo. É muito conhecida a profecia dele no cap. 36, 26: “tirarei do vosso peito o coração de pedra, e vos darei um coração de carne ” O coração do povo estava petrificado e essa era a missão do profeta: amolecer-lhes o coração. Não é certeza que Ezequiel tenha retornado do exílio, pois não são conhecidos os detalhes da sua morte. No entanto, a sua missão profética foi decisiva e seu trabalho foi completado pelos seus discípulos.
Na segunda leitura, retirada da carta de Paulo aos Filipenses, lemos aquela conhecida e nem sempre bem compreendida passagem em que ele diz que Cristo não se prevaleceu do fato de ser igual a Deus, isto é, não quis ter nenhum privilégio. A tradução da CNBB é infeliz, ao meu ver, porque fala em “usurpação”, abrindo espaço para entendimentos fora do contexto, no meu modesto modo de pensar. Com efeito, Paulo está enfatizando a fidelidade de Cristo ao projeto do Pai, fazendo-se obediente em tudo e, por isso, o Pai O exaltou e O colocou acima de tudo e Lhe deu um Nome que está acima de todo nome. (Fl 2, 9) Convém sempre lembrar que a comunidade de Filipos foi a primeira fundada por Paulo e pela qual ele tinha uma afeição especial, como se quisesse tornar esta a comunidade modelo para as outras. Daí ele dizer: “Se existe consolação na vida em Cristo, se existe alento no mútuo amor, se existe comunhão no Espírito, se existe ternura e compaixão, tornai então completa a minha alegria: aspirai à mesma coisa, unidos no mesmo amor; vivei em harmonia, procurando a unidade. ” Vê-se o cuidado que ele tinha em manter a comunidade fiel na observância do evangelho, evitando conflitos, praticando o amor mútuo e a comunhão fraterna. A fidelidade ao evangelho era a melhor maneira de conservar a obediência a Deus.
Temos no evangelho de Mateus (21, 28-32) outra das parábolas de Cristo dirigidas aos fariseus, que se consideravam obedientes a Deus porque cumpriam rigorosamente os preceitos da Lei. E por causa disso, desprezavam os outros (cobradores de impostos e prostitutas) porque não observavam tais preceitos. No domingo passado, foi a parábola dos trabalhadores que chegaram em horários diferentes e todos receberam o mesmo salário, contra os fariseus que se julgavam mais merecidos do que os pecadores. Aqui, Jesus faz uma comparação. Um pai tinha dois filhos e mandou a ambos que fossem trabalhar na vinha. O primeiro disse: “não vou” mas, depois, pensou melhor e foi; o segundo disse “vou já”, mas não foi. E aí faz a pergunta retórica e de resposta óbvia: qual dos dois realmente obedeceu ao pai? Os próprios sumos sacerdotes (fariseus) responderam corretamente, porém não compreenderam que, novamente, Jesus estava contrapondo os pecadores, representados pelo filho que, a princípio, desobedeceu ao pai, mas depois arrependeu-se e foi fazer o que o pai mandara, com a conduta dos fariseus, representados pelo filho que aceitou o compromisso, porém não o cumpriu. Os fariseus, além de se considerarem automaticamente salvos porque obedeciam fielmente os preceitos da Lei, ainda desdenhavam dos pecadores (cobradores de impostos, prostitutas) que estariam assim condenados a priori. Por isso, Jesus usa um linguajar mais do que direto: “João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os cobradores de impostos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele”.” (Mt 21, 32) Ora, os fariseus achavam que não tinham do que se arrepender, pois afinal eles se consideravam puros e fiéis, eles eram os cumpridores da lei, não os outros. O que mais admirava aos fariseus nas atitudes de Jesus é que Ele, em vez de ficar na sinagoga, no meio deles, andava nas praças, nas montanhas, nas beiras dos lagos junto com os pecadores. Ora, se eles, fariseus, eram os herdeiros da promessa, então por que a prioridade de Jesus não fora dada a eles? Essa foi a questão que eles nunca entenderam.
Meus amigos, é muito comum observarmos essa atitude dos fariseus na conduta de muitos cristãos de hoje. No domingo passado, eu fiz a alusão às duas senhoras que discutiam no estacionamento da igreja logo após a missa. Mas esse é um exemplo entre muitos, infelizmente. Nos ambientes internos dos diversos serviços paroquiais encontramos cristãos que estão longe de praticarem o conselho de Paulo aos Filipenses (2, 3): “Nada façais por competição ou vanglória, mas, com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante, e não cuide somente do que é seu, mas também do que é do outro.” Existe mesmo uma competição indisfarçada, uma busca insensata pelo “poder” dentro da comunidade, prática de bajulação como forma de conquistar a confiança do Pároco, domínio de espaços e locais (por ex: essa é a “minha” missa desde tantos anos), e o que é pior, chegam ao ponto de travarem discussões e agressões, gerando um clima de rivalidade e desconfiança. Provavelmente cada um dos leitores já se deparou com situações dessa espécie. Quanto maior visibilidade tem a função, maior é a disputa por ela no ambiente paroquial. Muitas vezes, a situação se torna tão instável, a ponto de comprometer até a permanência do próprio Pároco, porque as “conversas” chegam até o Bispo. Fico a imaginar que essas pessoas, se tivessem vivido no tempo de Cristo, estariam ali gritando: solta Barrabás.
Quero destacar, nesse contexto, que estamos em tempo de novena para a festa de São Francisco. Ele foi o modelo da obediência, legado que deixou para todos os seus seguidores. São Francisco ensinava aos frades o que ele chamava “obediência de cadáver”, algo como se a pessoa obediente não devesse ter vontade própria, mas comportar-se exatamente como lhe ordena o superior. Assim como se alguém coloca um cadáver numa posição, dali ele não se mexe. Lembro de uma historieta que o Frei Higino contava (e ele contava muitas) sobre um frade a quem o superior deu ordem para que ele levasse um certo objeto para um certo lugar “do modo mais rápido possível”. Esse frade, sem titubear, estando no andar de cima do prédio, simplesmente pulou a janela, não usando a escada, porque aquele era o modo mais rápido. E, segundo o Frei Higino, o frade “aterrissou” suavemente no chão, porque ele estava fazendo aquilo “em obediência”. Evidentemente, ninguém repetiria mais, nos dias de hoje, tais histórias nem iria afirmar, como São Francisco, que o obediente é igual a um cadáver. Essa era a pedagogia da época. No entanto, devemos sempre lembrar que a obediência é sinônimo de fidelidade, não de mero cumprimento de uma ordem. O exemplo de Cristo na parábola já ensinava isso: obediente não é aquele que diz “sim” e não pratica, ou seja, aquele que cumpre sua obrigação só da boca para fora, sem o envolvimento interior. Obediência não é fazer somente porque estão todos observando ou “para não dar o que falar”. Obediência é agir com o coração, mesmo que às vezes ocorram imperfeições nesse agir. O profeta Ezequiel já advertia aos cativos da Babilônia: “Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida.” (Ez 18, 27) Eventuais falhas na ação fazem parte da condição humana de seres pecadores, que somos nós. Foi para que tenhamos forças de superar as fraquezas da nossa natureza imperfeita que Cristo nos deixou os seus ensinamentos e os seus sacramentos, por meio dos quais permanece conosco. A humildade para reconhecer os próprios pecados e arrepender-se deles é o caminho que leva o cristão à perfeição. Os fariseus nunca entenderam isso, nem antes, nem agora.
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domingo, 28 de setembro de 2014
domingo, 21 de setembro de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 25º DOMINGO COMUM - JUSTIÇA DIVINA E JUSTIÇA HUMANA - 21.09.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 25º DOMINGO COMUM – JUSTIÇA DIVINA E JUSTIÇA HUMANA – 21.09.2014
Caros Confrades:
Neste 25º domingo comum, a liturgia aborda um tema bem interessante, acerca da diferença entre os modos de pensar divino e humano, mais especificamente no que diz respeito à justiça. A justiça divina não segue a lógica linear do pensamento humano, o que faz com que, muitas vezes, encontremos pessoas se queixando de que Deus não as ouve, não as atende, Deus teria sido injusto em relação a estas. Na verdade, o que nós precisamos mesmo é tentar compreender os fatos dentro dessa lógica diferente da nossa, que é a justiça divina.
Na primeira leitura, retirada do livro do Profeta Isaías (55, 6-9), lemos aquela conhecida advertência do profeta no sentido de que “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos, diz o Senhor.” Há um ditado popular que afirma que Deus escreve direto por linhas tortas, o que tem um sentido equivalente ao ensinamento do Profeta. E a única maneira de chegarmos a compreender essas linhas tortas é através da fé, porque devemos ter a certeza de que Deus nunca nos desampara e, mesmo quando as coisas parecem sair do trilho correto, surpreendendo o nosso modo de pensar, por ali passa a mão divina conduzindo os fatos e direcionando os acontecimentos. Sem a ajuda da fé, nós jamais alcançaremos as diretrizes divinas, como nos consola o Profeta no vers. 9: “Estão meus caminhos tão acima dos vossos caminhos e meus pensamentos acima dos vossos pensamentos, quanto está o céu acima da terra.” Para vencer uma barreira dessa dimensão, por certo que as nossas forças não são suficientes. A solução é, na maioria das vezes, crer e esperar.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Filipenses, vemos o Apóstolo se debater entre essas duas dimensões da existência: viver segundo o corpo e viver segundo Cristo. Diz ele, nos vers. 23-24: “Sinto-me atraído para os dois lados: tenho o desejo de partir, para estar com Cristo - o que para mim seria de longe o melhor - mas para vós é mais necessário que eu continue minha vida neste mundo.” É nesse contexto que ele diz aquela famosa frase: para mim, viver é Cristo e morrer é lucro. Pensando sob uma ótica humana, tal afirmação é totalmente contrária à lógica. Nenhum cristão encara com essa tranquilidade a realidade da morte, sendo esta sempre um motivo de preocupação e de desespero. O cientista britânico Bertrand Russell escreveu, certa vez, um livro com o título “porque não sou cristão” e uma das críticas que ele faz aos cristãos é nesse sentido. Os cristãos dizem que a vida no outro mundo é infinitamente superior à vida material, no entanto, no seu comportamento, demonstram um medo inexplicável de morrer, o que é incompreensível, já que a morte é condição necessária para chegar ao outro mundo. Uma coisa está em contradição com a outra. Essa é a grande dificuldade que se coloca para nós, na vida corpórea, qual seja a de pensar de acordo com os pensamentos divinos. Mas nos consola o fato de que isso não ocorre apenas conosco, simples seres humanos, pois Cristo também, na sua trajetória terrestre, revestido da natureza humana, expressou sentimento de apreensão e medo diante dos sofrimentos e da paixão que se avizinhava. Com efeito, nós somente teremos a possibilidade de compreender plenamente o modo de pensar divino quando estivermos completamente situados na esfera da imortalidade. Antes disso, o que nos sustenta é a fé e o que nos anima é a misericórdia divina.
No evangelho de Mateus (20, 1-16), lemos hoje mais uma das inúmeras parábolas que Jesus contou dirigindo-se aos crentes que, por frequentarem a igreja e praticarem os mandamentos, se julgam superiores às outras pessoas, que não vivenciam as práticas exteriores da religião. Como de costume, o alvo direto eram os fariseus, no entanto, numa aplicação extensiva, dirige-se a todos cristãos. É a história sobre o dono da videira e os trabalhadores contratados por ele. Examinemos a questão sob a ótica da justiça humana. O patrão acertou com os trabalhadores o pagamento de uma moeda pela diária. Fez assim com os que iniciaram o trabalho logo no começo do expediente e eles concordaram. No meio da manhã, ele contratou outros operários também nas mesmas condições. Outro grupo foi contratado ao meio dia, mais um grupo às três da tarde e outro grupo já ao anoitecer, todos com base na diária de uma moeda de prata. De início, vejamos aqui Jesus adotar a sequência das horas do calendário romano da época: hora prima (amanhecer), hora terça (cerca de 9 horas), hora sexta (meio dia), hora noa (3 da tarde), vésperas (entardecer). Essa era a sequência das horas canônicas em que se distribuíam as orações do breviário romano. Quem fez noviciado se lembra disso muito bem.
Na hora do pagamento, começaram a receber os últimos a chegarem: uma moeda de prata para cada um. Aqueles que haviam trabalhado desde o início do dia, ao verem aquilo, ficaram animados esperando que o pagamento deles fosse mais do que isso, pois enquanto eles trabalharam o dia inteiro, os últimos trabalharam apenas uma hora. Isso não aconteceu, então resmungaram e reclamaram do patrão, cuja atitude acharam injusta. Se trabalharam mais, mereciam receber mais. Dentro de um parâmetro de justiça humana, um tal patrão teria sido totalmente injusto, porém o exemplo dado por Cristo não se enquadra no conceito da justiça humana. O patrão é o Pai do Céu e o pagamento pelo trabalho na vinha é a salvação. Não existe uma salvação maior do que outra, para todos os redimidos, o prêmio da redenção é um só: o reino do céu. Essa conquista tanto é alcançada por aqueles que praticam os mandamentos desde a infância, quando foram admitidos na Igreja de Cristo pelo batismo, quanto se aplica também a quem foi iniciado na vida cristã já na juventude ou na maturidade. Alguns de nós chegamos na “vinha” ainda na madrugada, quando fomos introduzidos na casa de Deus por nossos pais. Outros foram catequizados na adolescência, ainda outros na idade adulta. Mas aqueles que “chegaram primeiro” não podem arvorar-se de mais merecedores, porque seguem a lei de Deus há mais tempo. E aqueles que se convertem na hora da morte também terão o mesmo “prêmio” como os que se dedicaram ao trabalho do reino durante toda a vida. Assim é a justiça divina. Recordemos o profeta Isaías: os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, diz o Senhor.
A parábola de Jesus se dirigia, na época, aos fariseus, que se julgavam “justos”, porque cumpriam rigorosamente a lei, e desprezavam os publicanos e pecadores, porque não cumpriam a lei e, portanto, não teriam os mesmos “direitos” que os primeiros. Quando viam Jesus se dedicando a essas pessoas “excluídas”, eles logo diziam: Ele não pode ser mandado por Deus, porque se fosse, se dirigiria a nós. Os fariseus, assim como os judeus em geral, que se originaram do “povo da aliança” feita por Javeh com os Patriarcas, estavam na “vinha” desde a madrugada, trabalharam durante muito tempo, achavam que a eles estava destinado o Reino de Deus, não àqueles que desprezavam a lei e estavam sendo conquistados por Jesus. Ao invés de se alegrarem com a ampliação do número de crentes, eles tinham “ciúmes” destes, como que se recusassem a “repartir o tesouro” com esses preguiçosos, que chegaram só “no final do dia”. Aqui entra a resposta do patrão, de acordo com o texto da parábola: eu não fui injusto contigo, paguei-te o que tínhamos combinado. (20, 13). A promessa que fora feita aos antigos patriarcas, milênios antes de Cristo, era a mesma que Ele, como enviado direto do Pai, veio trazer a todos os povos, não apenas àqueles que caminharam pelo deserto. Isso os fariseus nunca entenderam.
Pois bem, meus amigos. Essa advertência de Cristo aos fariseus deve nos motivar a não fazermos críticas nem tratarmos com indiferença as pessoas que “não fazem como nós”. É bastante comum os cristãos serem criticados assim: “fulano é de dentro da igreja, no entanto, ...”. Nâo faz muito tempo, aconteceu aqui na Paróquia, que duas senhoras, que haviam saído da igreja, estavam a discutir no estacionamento, na hora de retirarem os veículos, uma não queria ceder espaço para a outra passar. Casualmente, o Pároco ia passando pelo local e, ao ver aquilo, disse assim: de que adianta vir à igreja, participar da missa e comungar? Logo, as duas caíram em si e se comportaram como gente civilizada. Precisamos estar atentos para que uma tal conduta não nos surpreenda.
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Caros Confrades:
Neste 25º domingo comum, a liturgia aborda um tema bem interessante, acerca da diferença entre os modos de pensar divino e humano, mais especificamente no que diz respeito à justiça. A justiça divina não segue a lógica linear do pensamento humano, o que faz com que, muitas vezes, encontremos pessoas se queixando de que Deus não as ouve, não as atende, Deus teria sido injusto em relação a estas. Na verdade, o que nós precisamos mesmo é tentar compreender os fatos dentro dessa lógica diferente da nossa, que é a justiça divina.
Na primeira leitura, retirada do livro do Profeta Isaías (55, 6-9), lemos aquela conhecida advertência do profeta no sentido de que “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos, diz o Senhor.” Há um ditado popular que afirma que Deus escreve direto por linhas tortas, o que tem um sentido equivalente ao ensinamento do Profeta. E a única maneira de chegarmos a compreender essas linhas tortas é através da fé, porque devemos ter a certeza de que Deus nunca nos desampara e, mesmo quando as coisas parecem sair do trilho correto, surpreendendo o nosso modo de pensar, por ali passa a mão divina conduzindo os fatos e direcionando os acontecimentos. Sem a ajuda da fé, nós jamais alcançaremos as diretrizes divinas, como nos consola o Profeta no vers. 9: “Estão meus caminhos tão acima dos vossos caminhos e meus pensamentos acima dos vossos pensamentos, quanto está o céu acima da terra.” Para vencer uma barreira dessa dimensão, por certo que as nossas forças não são suficientes. A solução é, na maioria das vezes, crer e esperar.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Filipenses, vemos o Apóstolo se debater entre essas duas dimensões da existência: viver segundo o corpo e viver segundo Cristo. Diz ele, nos vers. 23-24: “Sinto-me atraído para os dois lados: tenho o desejo de partir, para estar com Cristo - o que para mim seria de longe o melhor - mas para vós é mais necessário que eu continue minha vida neste mundo.” É nesse contexto que ele diz aquela famosa frase: para mim, viver é Cristo e morrer é lucro. Pensando sob uma ótica humana, tal afirmação é totalmente contrária à lógica. Nenhum cristão encara com essa tranquilidade a realidade da morte, sendo esta sempre um motivo de preocupação e de desespero. O cientista britânico Bertrand Russell escreveu, certa vez, um livro com o título “porque não sou cristão” e uma das críticas que ele faz aos cristãos é nesse sentido. Os cristãos dizem que a vida no outro mundo é infinitamente superior à vida material, no entanto, no seu comportamento, demonstram um medo inexplicável de morrer, o que é incompreensível, já que a morte é condição necessária para chegar ao outro mundo. Uma coisa está em contradição com a outra. Essa é a grande dificuldade que se coloca para nós, na vida corpórea, qual seja a de pensar de acordo com os pensamentos divinos. Mas nos consola o fato de que isso não ocorre apenas conosco, simples seres humanos, pois Cristo também, na sua trajetória terrestre, revestido da natureza humana, expressou sentimento de apreensão e medo diante dos sofrimentos e da paixão que se avizinhava. Com efeito, nós somente teremos a possibilidade de compreender plenamente o modo de pensar divino quando estivermos completamente situados na esfera da imortalidade. Antes disso, o que nos sustenta é a fé e o que nos anima é a misericórdia divina.
No evangelho de Mateus (20, 1-16), lemos hoje mais uma das inúmeras parábolas que Jesus contou dirigindo-se aos crentes que, por frequentarem a igreja e praticarem os mandamentos, se julgam superiores às outras pessoas, que não vivenciam as práticas exteriores da religião. Como de costume, o alvo direto eram os fariseus, no entanto, numa aplicação extensiva, dirige-se a todos cristãos. É a história sobre o dono da videira e os trabalhadores contratados por ele. Examinemos a questão sob a ótica da justiça humana. O patrão acertou com os trabalhadores o pagamento de uma moeda pela diária. Fez assim com os que iniciaram o trabalho logo no começo do expediente e eles concordaram. No meio da manhã, ele contratou outros operários também nas mesmas condições. Outro grupo foi contratado ao meio dia, mais um grupo às três da tarde e outro grupo já ao anoitecer, todos com base na diária de uma moeda de prata. De início, vejamos aqui Jesus adotar a sequência das horas do calendário romano da época: hora prima (amanhecer), hora terça (cerca de 9 horas), hora sexta (meio dia), hora noa (3 da tarde), vésperas (entardecer). Essa era a sequência das horas canônicas em que se distribuíam as orações do breviário romano. Quem fez noviciado se lembra disso muito bem.
Na hora do pagamento, começaram a receber os últimos a chegarem: uma moeda de prata para cada um. Aqueles que haviam trabalhado desde o início do dia, ao verem aquilo, ficaram animados esperando que o pagamento deles fosse mais do que isso, pois enquanto eles trabalharam o dia inteiro, os últimos trabalharam apenas uma hora. Isso não aconteceu, então resmungaram e reclamaram do patrão, cuja atitude acharam injusta. Se trabalharam mais, mereciam receber mais. Dentro de um parâmetro de justiça humana, um tal patrão teria sido totalmente injusto, porém o exemplo dado por Cristo não se enquadra no conceito da justiça humana. O patrão é o Pai do Céu e o pagamento pelo trabalho na vinha é a salvação. Não existe uma salvação maior do que outra, para todos os redimidos, o prêmio da redenção é um só: o reino do céu. Essa conquista tanto é alcançada por aqueles que praticam os mandamentos desde a infância, quando foram admitidos na Igreja de Cristo pelo batismo, quanto se aplica também a quem foi iniciado na vida cristã já na juventude ou na maturidade. Alguns de nós chegamos na “vinha” ainda na madrugada, quando fomos introduzidos na casa de Deus por nossos pais. Outros foram catequizados na adolescência, ainda outros na idade adulta. Mas aqueles que “chegaram primeiro” não podem arvorar-se de mais merecedores, porque seguem a lei de Deus há mais tempo. E aqueles que se convertem na hora da morte também terão o mesmo “prêmio” como os que se dedicaram ao trabalho do reino durante toda a vida. Assim é a justiça divina. Recordemos o profeta Isaías: os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, diz o Senhor.
A parábola de Jesus se dirigia, na época, aos fariseus, que se julgavam “justos”, porque cumpriam rigorosamente a lei, e desprezavam os publicanos e pecadores, porque não cumpriam a lei e, portanto, não teriam os mesmos “direitos” que os primeiros. Quando viam Jesus se dedicando a essas pessoas “excluídas”, eles logo diziam: Ele não pode ser mandado por Deus, porque se fosse, se dirigiria a nós. Os fariseus, assim como os judeus em geral, que se originaram do “povo da aliança” feita por Javeh com os Patriarcas, estavam na “vinha” desde a madrugada, trabalharam durante muito tempo, achavam que a eles estava destinado o Reino de Deus, não àqueles que desprezavam a lei e estavam sendo conquistados por Jesus. Ao invés de se alegrarem com a ampliação do número de crentes, eles tinham “ciúmes” destes, como que se recusassem a “repartir o tesouro” com esses preguiçosos, que chegaram só “no final do dia”. Aqui entra a resposta do patrão, de acordo com o texto da parábola: eu não fui injusto contigo, paguei-te o que tínhamos combinado. (20, 13). A promessa que fora feita aos antigos patriarcas, milênios antes de Cristo, era a mesma que Ele, como enviado direto do Pai, veio trazer a todos os povos, não apenas àqueles que caminharam pelo deserto. Isso os fariseus nunca entenderam.
Pois bem, meus amigos. Essa advertência de Cristo aos fariseus deve nos motivar a não fazermos críticas nem tratarmos com indiferença as pessoas que “não fazem como nós”. É bastante comum os cristãos serem criticados assim: “fulano é de dentro da igreja, no entanto, ...”. Nâo faz muito tempo, aconteceu aqui na Paróquia, que duas senhoras, que haviam saído da igreja, estavam a discutir no estacionamento, na hora de retirarem os veículos, uma não queria ceder espaço para a outra passar. Casualmente, o Pároco ia passando pelo local e, ao ver aquilo, disse assim: de que adianta vir à igreja, participar da missa e comungar? Logo, as duas caíram em si e se comportaram como gente civilizada. Precisamos estar atentos para que uma tal conduta não nos surpreenda.
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domingo, 14 de setembro de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - A SANTA CRUZ - 14.09.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – A SANTA CRUZ – 14.09.2014
Caros Confrades,
Na liturgia deste domingo, 24º do tempo comum, as celebrações estão voltadas para a glorificação da cruz de Cristo. Fazendo o contraponto com a liturgia da sexta feira santa, na qual se celebra a morte de Cristo na cruz, portanto, os atos litúrgicos estão voltados para a paixão do Senhor, sendo o tom da festa um silêncio circunspecto, nesse dia 14 de setembro, exalta-se a cruz numa festa de alegria, porque foi através dela que veio para nós a salvação. É uma celebração litúrgica que remonta ao século IV e também é comemorada na mesma data pelas igrejas orientais com ritual solene, tendo precedência sobre a liturgia dominical.
Fora do contexto dos ritos graves que circundam o tríduo pascal, a festa da Exaltação da Santa Cruz foi instituída no ano 335, quando o imperador Constantino mandou erguer uma basílica sobre o monte Gólgota, no mesmo lugar onde Jesus fora crucificado, tendo sido colocada nesse templo a “vera cruz”, ou seja, aquela em que Jesus morreu. Já haviam se passado mais de 300 anos da morte de Cristo, quando os cristãos conseguiram encontrar a cruz, realizando escavações nos arredores de Jerusalém. Os trabalhos de busca levaram a diversas cruzes, porque era muito comum a utilização desse instrumento de morte na época de Cristo. De acordo com a tradição, a “vera cruz” foi reconhecida por uma “metodologia” bastante intuitiva: com as várias cruzes enfileiradas uma ao lado da outra, teria sido colocado um cadáver de um homem sobre cada uma delas e, quando isso foi feito na verdadeira, o homem milagrosamente reviveu. Muito provavelmente, essa história faz parte daquele “folclore” que vai sendo transmitido de geração em geração, a ponto de não se saber mais de onde se originou. Mas, por qualquer que tenha sido o método, os fiéis da época, liderados pelo imperador romano e pela mãe deste, Santa Helena, iniciaram a tradição de adorar essa cruz, que continua sendo reconhecida como a verdadeira. E mesmo que não seja, a sua antiguidade e a glorificação que vem recebendo ao longo de tantos séculos faz dela um verdadeiro ícone da fé cristã.
As leituras litúrgicas desta data fazem uma alusão à imagem da cruz associada à restauração da vida. Na primeira leitura, do livro dos Números (21, 4-9), relata-se o episódio da serpente de bronze amarrada a uma estaca, por ordem de Javeh. O título deste livro em hebraico diz-se Bamidbar, que significa literalmente 'No deserto'. Na tradução para a língua grega, o título do livro foi modificado para Arithmoi (aritmética, números, contagem), porque no seu texto constam dois recenseamentos do povo, feitos durante a sua trajetória pelo deserto. Neste livro, encontram-se também muitos preceitos práticos, que constituem uma espécie de tratado legislativo do povo hebreu. E é também neste livro, no cap. 6, 24, que consta aquela bênção que São Francisco costumava usar para abençoar seus frades: O Senhor te abençoe e te guarde, mostre para ti o Seu rosto e tenha piedade de ti... Pois bem. Na leitura da liturgia de hoje, relata-se o episódio em que os hebreus maldiziam Moisés por tê-los tirado do Egito e tê-los levado por uma trajetória sem fim pelo deserto, com toda a sorte de privações. E amaldiçoavam também a Javeh, que mandou serpentes venenosas para castigarem o povo maledicente. O povo se arrependeu e pediu a Moisés que intercedesse por eles. Então, Javeh ordenou a Moisés que fizesse uma serpente de bronze e a pendurasse numa vara comprida. Aquele que fosse mordido por uma serpente e olhasse para aquela feita de bronze, ficaria curado. Então, a figura da serpente de bronze suspensa significou para os hebreus um instrumento de salvação. Muito tempo depois, Jesus irá retomar esse episódio para comparar com a sua própria paixão.
Na segunda leitura, da carta aos Filipenses (2, 6-11), Paulo relembra àqueles cristãos que Cristo deixou de lado sua condição divina e assumindo plenamente a sua humanidade, humilhou-se ao máximo, sendo morto numa cruz, que era naquela época um suplício aplicado apenas aos escravos e aos mais terríveis delinquentes. Daí Paulo dizer que Cristo esvaziou-se a si mesmo, isto é, escondeu sua divindade por trás da sua humanidade e, mais ainda, escondeu essa humanidade por trás da condição humana mais vil, permitindo-se uma variedade de morte infame e humilhante. Mas Ele fez isso justamente para que o Pai o exaltasse, porque foi para isso que ele assumiu a condição humana. Por isso, o Pai O colocou acima de tudo e Lhe deu um nome que está acima de todo nome. E com isso, Cristo transformou aquele instrumento de suplício num recipiente de gozo, transformou aquele aparelho de sofrimento num capitel de regozijo, aquele aparato de humilhação num trono de exaltação. Depois disso, todo joelho que há no céu, na terra e embaixo da terra se dobrará em sua homenagem. Foi certamente esse hino de exaltação da cruz, composto por Paulo na carta aos Filipenses, que motivou a festa litúrgica desta data.
Na leitura do evangelho de João (3, 13-17), Jesus recorda a figura da serpente erguida na haste por Moisés no deserto para comparar isso a Ele próprio, no contexto de sua conversa com Nicodemos. Apenas o evangelista João narra esse episódio. Nicodemos era um mestre da lei, portanto, um fariseu especialista nas escrituras, que acreditava em Jesus, porém não podia declarar isso publicamente, por receio de represália dos demais, por isso, foi ter com Jesus à noite, às escondidas, e confessou a ele a sua fé. Nicodemos ficou embaraçado quando Jesus disse que somente quem renascesse poderia ver o reino de Deus. Renascer? Mas eu já sou um adulto, como pode ser isso? Nicodemos pensou logo no nascimento biológico, porém Jesus falava do renascimento em espírito. Por isso, Jesus fez até uma ironia com ele: “tu és mestre da lei e não sabes disso?” Sim, ele não sabia mesmo. Então, Jesus usou como exemplo uma figura conhecida por Nicodemos: a serpente de Moisés. Lembra de quando Moisés suspendeu uma serpente no deserto, para que todos os que a mirassem fossem salvos? Pois assim acontecerá com o Filho do Homem. Convém que seja suspenso também, de modo que quem o vir e nele crer tenha a vida para sempre. A figura da serpente erguida por Moisés fora um símbolo que preconizava a elevação de Jesus na cruz com o mesmo objetivo: trazer a salvação aos que olharem para Ele com fé.
Meus amigos, vejamos aqui uma situação de aparente contradição. Javeh havia proibido os hebreus de fazerem ídolos ou imagens d'Ele próprio, pois Ele devia ser adorado em espírito e em verdade. No entanto, neste caso relatado em Bamidbar, o mesmo Javeh mandou que Moisés fizesse um “ídolo” de bronze em forma de serpente. Não que Javeh se comparasse à figura de uma serpente, mas de todo modo, a mesma serpente que gerava a morte também passou a gerar a vida. Somente Javeh é o senhor da vida, então aquela figura idolatrizada da serpente funcionava como uma mediação entre a morte e a vida, para os que n'Ele acreditassem. Vemos com isso que Javeh não era totalmente contrário à feitura de imagens, Ele não queria ser retratado nelas. E o fato de Jesus, muito tempo depois, ter retomado a figura da serpente de bronze como portadora da vida para comparar a Si próprio, elevado numa haste de madeira, avaliza a idéia de que a confecção de imagens não é proibida, de forma absoluta, por Deus, mas as imagens devem ser símbolos e sinais daquelas verdades que representam. Javeh não mandou que ninguém adorasse a serpente, mas apenas que olhasse para ela com o coração contrito. Essa é a mesma atitude que o cristão deve ter diante das imagens sagradas, não se detendo nas figuras em si, mas servindo-se delas para melhor vislumbrar os sinais que elas representam.
É curioso observar que muitas pessoas invocam textos bíblicos para afirmarem que Deus não gosta das imagens e as proibiu. Esquecem de invocar também a imagem da serpente como mediadora da salvação. É o caso de dizermos o mesmo que Jesus disse a Nicodemos: tu és um mestre da lei e ignoras isso? Ou seja, buscas na escritura apenas aquelas passagens que favorecem a justificativa do teu ponto de vista? Ficas preso às palavras e expressões da lei e não consegues descobrir nelas o sentido mais profundo da sua mensagem? É por isso que toda interpretação fundamentalista da escritura deve ser evitada. É por isso que já afirmei, nesses escritos, por diversas vezes: não basta ler a Bíblia, é necessário estudar a Bíblia, aprofundar o seu conteúdo, compreendê-la no seu contexto histórico e cultural, para que possamos tentar descobrir a sua mensagem verdadeira.
A festa da Santa Cruz é sequenciada pela festa de Nossa Senhora das Dores, nesta segunda feira, dia 15 de setembro. Ao falar na cruz e morte de Cristo, não podemos esquecer que o sofrimento de Maria está também associado à cruz e é um fator de extraordinária importância no contexto dos eventos da história da salvação. Mãe das Dores, rogai por nós.
***
Caros Confrades,
Na liturgia deste domingo, 24º do tempo comum, as celebrações estão voltadas para a glorificação da cruz de Cristo. Fazendo o contraponto com a liturgia da sexta feira santa, na qual se celebra a morte de Cristo na cruz, portanto, os atos litúrgicos estão voltados para a paixão do Senhor, sendo o tom da festa um silêncio circunspecto, nesse dia 14 de setembro, exalta-se a cruz numa festa de alegria, porque foi através dela que veio para nós a salvação. É uma celebração litúrgica que remonta ao século IV e também é comemorada na mesma data pelas igrejas orientais com ritual solene, tendo precedência sobre a liturgia dominical.
Fora do contexto dos ritos graves que circundam o tríduo pascal, a festa da Exaltação da Santa Cruz foi instituída no ano 335, quando o imperador Constantino mandou erguer uma basílica sobre o monte Gólgota, no mesmo lugar onde Jesus fora crucificado, tendo sido colocada nesse templo a “vera cruz”, ou seja, aquela em que Jesus morreu. Já haviam se passado mais de 300 anos da morte de Cristo, quando os cristãos conseguiram encontrar a cruz, realizando escavações nos arredores de Jerusalém. Os trabalhos de busca levaram a diversas cruzes, porque era muito comum a utilização desse instrumento de morte na época de Cristo. De acordo com a tradição, a “vera cruz” foi reconhecida por uma “metodologia” bastante intuitiva: com as várias cruzes enfileiradas uma ao lado da outra, teria sido colocado um cadáver de um homem sobre cada uma delas e, quando isso foi feito na verdadeira, o homem milagrosamente reviveu. Muito provavelmente, essa história faz parte daquele “folclore” que vai sendo transmitido de geração em geração, a ponto de não se saber mais de onde se originou. Mas, por qualquer que tenha sido o método, os fiéis da época, liderados pelo imperador romano e pela mãe deste, Santa Helena, iniciaram a tradição de adorar essa cruz, que continua sendo reconhecida como a verdadeira. E mesmo que não seja, a sua antiguidade e a glorificação que vem recebendo ao longo de tantos séculos faz dela um verdadeiro ícone da fé cristã.
As leituras litúrgicas desta data fazem uma alusão à imagem da cruz associada à restauração da vida. Na primeira leitura, do livro dos Números (21, 4-9), relata-se o episódio da serpente de bronze amarrada a uma estaca, por ordem de Javeh. O título deste livro em hebraico diz-se Bamidbar, que significa literalmente 'No deserto'. Na tradução para a língua grega, o título do livro foi modificado para Arithmoi (aritmética, números, contagem), porque no seu texto constam dois recenseamentos do povo, feitos durante a sua trajetória pelo deserto. Neste livro, encontram-se também muitos preceitos práticos, que constituem uma espécie de tratado legislativo do povo hebreu. E é também neste livro, no cap. 6, 24, que consta aquela bênção que São Francisco costumava usar para abençoar seus frades: O Senhor te abençoe e te guarde, mostre para ti o Seu rosto e tenha piedade de ti... Pois bem. Na leitura da liturgia de hoje, relata-se o episódio em que os hebreus maldiziam Moisés por tê-los tirado do Egito e tê-los levado por uma trajetória sem fim pelo deserto, com toda a sorte de privações. E amaldiçoavam também a Javeh, que mandou serpentes venenosas para castigarem o povo maledicente. O povo se arrependeu e pediu a Moisés que intercedesse por eles. Então, Javeh ordenou a Moisés que fizesse uma serpente de bronze e a pendurasse numa vara comprida. Aquele que fosse mordido por uma serpente e olhasse para aquela feita de bronze, ficaria curado. Então, a figura da serpente de bronze suspensa significou para os hebreus um instrumento de salvação. Muito tempo depois, Jesus irá retomar esse episódio para comparar com a sua própria paixão.
Na segunda leitura, da carta aos Filipenses (2, 6-11), Paulo relembra àqueles cristãos que Cristo deixou de lado sua condição divina e assumindo plenamente a sua humanidade, humilhou-se ao máximo, sendo morto numa cruz, que era naquela época um suplício aplicado apenas aos escravos e aos mais terríveis delinquentes. Daí Paulo dizer que Cristo esvaziou-se a si mesmo, isto é, escondeu sua divindade por trás da sua humanidade e, mais ainda, escondeu essa humanidade por trás da condição humana mais vil, permitindo-se uma variedade de morte infame e humilhante. Mas Ele fez isso justamente para que o Pai o exaltasse, porque foi para isso que ele assumiu a condição humana. Por isso, o Pai O colocou acima de tudo e Lhe deu um nome que está acima de todo nome. E com isso, Cristo transformou aquele instrumento de suplício num recipiente de gozo, transformou aquele aparelho de sofrimento num capitel de regozijo, aquele aparato de humilhação num trono de exaltação. Depois disso, todo joelho que há no céu, na terra e embaixo da terra se dobrará em sua homenagem. Foi certamente esse hino de exaltação da cruz, composto por Paulo na carta aos Filipenses, que motivou a festa litúrgica desta data.
Na leitura do evangelho de João (3, 13-17), Jesus recorda a figura da serpente erguida na haste por Moisés no deserto para comparar isso a Ele próprio, no contexto de sua conversa com Nicodemos. Apenas o evangelista João narra esse episódio. Nicodemos era um mestre da lei, portanto, um fariseu especialista nas escrituras, que acreditava em Jesus, porém não podia declarar isso publicamente, por receio de represália dos demais, por isso, foi ter com Jesus à noite, às escondidas, e confessou a ele a sua fé. Nicodemos ficou embaraçado quando Jesus disse que somente quem renascesse poderia ver o reino de Deus. Renascer? Mas eu já sou um adulto, como pode ser isso? Nicodemos pensou logo no nascimento biológico, porém Jesus falava do renascimento em espírito. Por isso, Jesus fez até uma ironia com ele: “tu és mestre da lei e não sabes disso?” Sim, ele não sabia mesmo. Então, Jesus usou como exemplo uma figura conhecida por Nicodemos: a serpente de Moisés. Lembra de quando Moisés suspendeu uma serpente no deserto, para que todos os que a mirassem fossem salvos? Pois assim acontecerá com o Filho do Homem. Convém que seja suspenso também, de modo que quem o vir e nele crer tenha a vida para sempre. A figura da serpente erguida por Moisés fora um símbolo que preconizava a elevação de Jesus na cruz com o mesmo objetivo: trazer a salvação aos que olharem para Ele com fé.
Meus amigos, vejamos aqui uma situação de aparente contradição. Javeh havia proibido os hebreus de fazerem ídolos ou imagens d'Ele próprio, pois Ele devia ser adorado em espírito e em verdade. No entanto, neste caso relatado em Bamidbar, o mesmo Javeh mandou que Moisés fizesse um “ídolo” de bronze em forma de serpente. Não que Javeh se comparasse à figura de uma serpente, mas de todo modo, a mesma serpente que gerava a morte também passou a gerar a vida. Somente Javeh é o senhor da vida, então aquela figura idolatrizada da serpente funcionava como uma mediação entre a morte e a vida, para os que n'Ele acreditassem. Vemos com isso que Javeh não era totalmente contrário à feitura de imagens, Ele não queria ser retratado nelas. E o fato de Jesus, muito tempo depois, ter retomado a figura da serpente de bronze como portadora da vida para comparar a Si próprio, elevado numa haste de madeira, avaliza a idéia de que a confecção de imagens não é proibida, de forma absoluta, por Deus, mas as imagens devem ser símbolos e sinais daquelas verdades que representam. Javeh não mandou que ninguém adorasse a serpente, mas apenas que olhasse para ela com o coração contrito. Essa é a mesma atitude que o cristão deve ter diante das imagens sagradas, não se detendo nas figuras em si, mas servindo-se delas para melhor vislumbrar os sinais que elas representam.
É curioso observar que muitas pessoas invocam textos bíblicos para afirmarem que Deus não gosta das imagens e as proibiu. Esquecem de invocar também a imagem da serpente como mediadora da salvação. É o caso de dizermos o mesmo que Jesus disse a Nicodemos: tu és um mestre da lei e ignoras isso? Ou seja, buscas na escritura apenas aquelas passagens que favorecem a justificativa do teu ponto de vista? Ficas preso às palavras e expressões da lei e não consegues descobrir nelas o sentido mais profundo da sua mensagem? É por isso que toda interpretação fundamentalista da escritura deve ser evitada. É por isso que já afirmei, nesses escritos, por diversas vezes: não basta ler a Bíblia, é necessário estudar a Bíblia, aprofundar o seu conteúdo, compreendê-la no seu contexto histórico e cultural, para que possamos tentar descobrir a sua mensagem verdadeira.
A festa da Santa Cruz é sequenciada pela festa de Nossa Senhora das Dores, nesta segunda feira, dia 15 de setembro. Ao falar na cruz e morte de Cristo, não podemos esquecer que o sofrimento de Maria está também associado à cruz e é um fator de extraordinária importância no contexto dos eventos da história da salvação. Mãe das Dores, rogai por nós.
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domingo, 7 de setembro de 2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO - 23º DOMINGO COMUM - CORRIGIR O IRMÃO - 07.09.2014
COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO COMUM – CORRIGIR O IRMÃO – 07.09.2014
Caros Confrades,
Neste 23º domingo comum, o tema da liturgia diz respeito ao dever do cristão de chamar a atenção dos irmãos que, de algum modo, se desviam da fidelidade aos mandamentos divinos. No tempo do Noviciado, nós exercitávamos diariamente a prática da correção fraterna e o “corrigido” ainda tinha que dizer “seja pelo amor de Deus a sua santa caridade.” Esse dever decorre da responsabilidade que cada um de nós tem de reconduzir de volta ao caminho a ovelha desgarrada. Os nossos co-irmãos não católicos assumem isso como uma obrigação rotineira. Se um não comparece ao culto, no dia seguinte, alguém vai ter com o faltante a indagar-lhe os motivos da sua ausência. Entre os católicos, essa tradição não se manteve, mas Jesus Cristo recomenda expressamente no evangelho deste domingo.
Na primeira leitura, retirada do livro do profeta Ezequiel (33, 7-9), o Senhor adverte o fiel sobre a sua obrigação de mostrar ao ímpio a sua impiedade e de chamá-lo ao caminho da retidão, sob pena de que, não o repreendendo e vindo ele a morrer em pecado, o fiel se torna responsável pela perdição daquele pecador. Ao contrário, se o pecador for advertido pelo fiel e não quiser se converter, este não será responsabilizado pela perdição daquele. Esta responsabilidade que o cristão tem perante os irmãos da religião e mesmo perante os não crentes está expressa na frase de Javeh dita através do Profeta: “Eu te estabeleci como vigia da casa de Israel.” Cada cristão é responsável, ao mesmo tempo, pela fidelidade na própria fé e ainda pela perseverança na fé dos irmãos. Vemos aqui a dimensão horizontal da religião, isto é, a religião direcionada para a comunidade, dimensão esta que foi durante muito tempo menosprezada, quando a catequese católica se concentrava no lema “salva a tua alma”, como se o fiel fosse responsável apenas por si e os pastores devessem se preocupar com a qualidade da fé dos crentes em geral. A palavra de Javeh através do Profeta não está dirigida aos Sacerdotes do seu tempo, mas a cada um dos integrantes do povo de Deus. Cada fiel é estabelecido como vigia na casa de Israel, cada um de nós tem o dever não apenas de dar o exemplo, mas também de manter-se alerta com o procedimento dos membros da comunidade, a fim de que nenhum deles se desvie da fidelidade aos mandamentos. Cada cristão é responsável diretamente pela própria fé e indiretamente também pela fé dos irmãos. A fé assume, nesse contexto, uma característica proativa, no sentido de que o verdadeiro cristão não está preocupado apenas consigo próprio, apenas em salvar a própria alma, como se dizia na linguagem tradicional, mas deve preocupar-se também com a salvação dos irmãos. A salvação é comunitária, a fé é comunitária, a religião é comunitária. A religião vivida apenas para si, internamente, é estéril e vazia.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (13, 8-10), o Apóstolo ensina essa mesma lição com outras palavras, quando diz: “Os mandamentos: “Não cometerás adultério”, “não matarás”, “não roubarás”, “não cobiçarás”, e qualquer outro mandamento, se resumem neste: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”.” Isso quer dizer que as ordens divinas contidas nos mandamentos da lei não devem consistir em normas negativas (não faça isso, não faça aquilo) nem preceitos de abstenção, mas no sentido da assunção de uma atitude ativa de amor generoso. Ou melhor dizendo: aquelas ordens de cunho negativo (não isso, não aquilo) que constavam na lei antiga, pelo novo mandamento de Cristo se transformaram em ações positivas e concretas de amar os irmãos. “O amor é o cumprimento perfeito da lei”, completa o apóstolo Paulo. E Paulo não está inventando isso, porque o próprio Cristo dissera, certa vez, ao criticar os fariseus, que haviam formulado centenas de prescrições restritivas interpretando a lei de Moisés, uma frase similar, quando um doutor da lei o interrogou: “Mestre, qual é o grande mandamento na lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. (Mateus 22:36-40).” Os doutores da lei eram exatamente aqueles fariseus mestres, que haviam transformado a lei de Moisés em um conjunto de regras minuciosas e burocráticas, que tornavam insuportável a vida dos judeus. A grande catequese de Jesus contra esse tipo de religião farisaica, que infelizmente ainda hoje se mantém na cabeça de alguns cristãos (sacerdotes e leigos), foi a de mostrar que a lei de Deus é a lei do amor, não a do castigo e da repreensão. Infelizmente, apesar do ensinamento tão claro da parte de Jesus, desenvolveu-se uma vertente doutrinária do cristianismo nesses mesmos moldes de fanatismo. Isso decorre, sobretudo, do fato de que alguns cristãos colocam o Direito Canônico acima do Evangelho. O Direito Canônico deve ser compreendido como norma de organização e de manutenção da unidade eclesial, não como doutrina que se sobrepõe sobre a Palavra de Cristo transmitida pelos escritores sagrados. Por exemplo: o católico que vai à missa dominical apenas porque o Direito Canônico afirma cometer um pecado quem não for, esse cristão não está praticando a religião verdadeira de Cristo, que é a religião do amor. Lembro demais de ter ouvido na catequese tradicional que todos devem cumprir o “preceito dominical”. Ora, cumprir o preceito não é o mesmo que praticar o mandamento de Cristo. Cumprir o preceito é um ato burocrático exterior estéril, se não estiver acompanhado da motivação interior que decorre do amor a Cristo e aos irmãos. A falta desse componente interno essencial transforma a ida ao templo uma simples obrigação e assim estamos adotando um comportamento que Jesus Cristo, diversas vezes, criticou nos fariseus, que praticavam uma religião de exterioridades. Vista desse modo, a missa passa a ser um ritual enfadonho, o sermão do celebrante vira um discurso interminável e o fiel fica escolhendo aquele padre que celebra a missa mais depressa, a fim de “se livrar” logo da obrigação. Com toda certeza, não é isso que Cristo quer de nós.
Qual seria, então, a motivação para ir à missa aos domingos, se não for o do cumprimento do preceito? A resposta está na leitura do evangelho, retirada de Mateus (18, 15-20), ou seja, “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles.” A verdadeira motivação da participação na celebração litúrgica está no encontro com os irmãos, porque é na comunidade que Cristo está presente, de acordo com a promessa dele. É porque a nossa religião é comunitária e deve ser exercida na comunidade. Por mais que eu reze individualmente (e aqui eu não estou negando o valor dessa oração individual), isso não é suficiente, a fé não está completa. É no encontro da comunidade orante que o cristão tem a certeza de que está na presença de Cristo.
É nesse contexto que devemos compreender a exortação de Cristo, no sentido de que “se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus.” Na comunidade, a nossa oração é muito mais forte, aliás, ela tem todo o poder, assegurado pelo próprio Cristo. Daí que o ato de corrigir o irmão não deve ser com aquele tom ameaçador de censura, de mostrar seus pecados, de advertir sobre os castigos, etc., mas de reconduzi-lo ao amor de Deus. Por exemplo, se o irmão não vai à missa e você vai conversar com ele sobre isso, o tom da conversa não deve dar ênfase no aspecto do “pecado” ou do “descumprimento do preceito”, mas deve destacar a dimensão comunitária da religião, da superioridade da oração coletiva sobre a prece particular, da promessa de Cristo de estar presente quando os irmãos se reunem para rezar, não quando alguém reza individualmente.
É interessante também destacar a metodologia da abordagem ensinada por Jesus. Primeiro, o irmão deve ser procurado em particular, para não expô-lo na comunidade. Se essa conversa não tiver resultado, vem o segundo passo: repete a conversa na presença de outros dois irmãos, atribuindo assim uma força persuasiva maior. Se também isso não funcionar, então será a vez de apelar para que toda a comunidade se empenhe nessa tentativa. Essa sequência de ações deverá ser suficiente para chamar o irmão faltoso à reconciliação. Se nem assim der certo, então vai incidir aquilo que lemos na primeira leitura, do profeta Ezequiel: o ímpio morrerá na sua impiedade, mas tu não serás responsabilizado pela perdição dele. Aqui se entrelaça a primeira leitura com o texto do evangelho, mostrando a harmonia e a coerência da palavra de Deus no antigo e no novo testamentos.
Meus amigos, obviamente não é tarefa fácil chamar a atenção de um irmão sobre o seu comportamento, ao contrário, é extremamente delicada e deve ser tratada com o máximo tato e sensibilidade. Mas Jesus nos ensina que, apesar disso, a nossa fé nos traz essa responsabilidade e não devemos ignorá-la.
Por fim, recordo que amanhã, 8/9, celebra-se a festa de Nossa Senhora do Brasil, a padroeira do Seminário Seráfico. Que ela seja sempre um exemplo para a nossa vida.
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Caros Confrades,
Neste 23º domingo comum, o tema da liturgia diz respeito ao dever do cristão de chamar a atenção dos irmãos que, de algum modo, se desviam da fidelidade aos mandamentos divinos. No tempo do Noviciado, nós exercitávamos diariamente a prática da correção fraterna e o “corrigido” ainda tinha que dizer “seja pelo amor de Deus a sua santa caridade.” Esse dever decorre da responsabilidade que cada um de nós tem de reconduzir de volta ao caminho a ovelha desgarrada. Os nossos co-irmãos não católicos assumem isso como uma obrigação rotineira. Se um não comparece ao culto, no dia seguinte, alguém vai ter com o faltante a indagar-lhe os motivos da sua ausência. Entre os católicos, essa tradição não se manteve, mas Jesus Cristo recomenda expressamente no evangelho deste domingo.
Na primeira leitura, retirada do livro do profeta Ezequiel (33, 7-9), o Senhor adverte o fiel sobre a sua obrigação de mostrar ao ímpio a sua impiedade e de chamá-lo ao caminho da retidão, sob pena de que, não o repreendendo e vindo ele a morrer em pecado, o fiel se torna responsável pela perdição daquele pecador. Ao contrário, se o pecador for advertido pelo fiel e não quiser se converter, este não será responsabilizado pela perdição daquele. Esta responsabilidade que o cristão tem perante os irmãos da religião e mesmo perante os não crentes está expressa na frase de Javeh dita através do Profeta: “Eu te estabeleci como vigia da casa de Israel.” Cada cristão é responsável, ao mesmo tempo, pela fidelidade na própria fé e ainda pela perseverança na fé dos irmãos. Vemos aqui a dimensão horizontal da religião, isto é, a religião direcionada para a comunidade, dimensão esta que foi durante muito tempo menosprezada, quando a catequese católica se concentrava no lema “salva a tua alma”, como se o fiel fosse responsável apenas por si e os pastores devessem se preocupar com a qualidade da fé dos crentes em geral. A palavra de Javeh através do Profeta não está dirigida aos Sacerdotes do seu tempo, mas a cada um dos integrantes do povo de Deus. Cada fiel é estabelecido como vigia na casa de Israel, cada um de nós tem o dever não apenas de dar o exemplo, mas também de manter-se alerta com o procedimento dos membros da comunidade, a fim de que nenhum deles se desvie da fidelidade aos mandamentos. Cada cristão é responsável diretamente pela própria fé e indiretamente também pela fé dos irmãos. A fé assume, nesse contexto, uma característica proativa, no sentido de que o verdadeiro cristão não está preocupado apenas consigo próprio, apenas em salvar a própria alma, como se dizia na linguagem tradicional, mas deve preocupar-se também com a salvação dos irmãos. A salvação é comunitária, a fé é comunitária, a religião é comunitária. A religião vivida apenas para si, internamente, é estéril e vazia.
Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (13, 8-10), o Apóstolo ensina essa mesma lição com outras palavras, quando diz: “Os mandamentos: “Não cometerás adultério”, “não matarás”, “não roubarás”, “não cobiçarás”, e qualquer outro mandamento, se resumem neste: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”.” Isso quer dizer que as ordens divinas contidas nos mandamentos da lei não devem consistir em normas negativas (não faça isso, não faça aquilo) nem preceitos de abstenção, mas no sentido da assunção de uma atitude ativa de amor generoso. Ou melhor dizendo: aquelas ordens de cunho negativo (não isso, não aquilo) que constavam na lei antiga, pelo novo mandamento de Cristo se transformaram em ações positivas e concretas de amar os irmãos. “O amor é o cumprimento perfeito da lei”, completa o apóstolo Paulo. E Paulo não está inventando isso, porque o próprio Cristo dissera, certa vez, ao criticar os fariseus, que haviam formulado centenas de prescrições restritivas interpretando a lei de Moisés, uma frase similar, quando um doutor da lei o interrogou: “Mestre, qual é o grande mandamento na lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. (Mateus 22:36-40).” Os doutores da lei eram exatamente aqueles fariseus mestres, que haviam transformado a lei de Moisés em um conjunto de regras minuciosas e burocráticas, que tornavam insuportável a vida dos judeus. A grande catequese de Jesus contra esse tipo de religião farisaica, que infelizmente ainda hoje se mantém na cabeça de alguns cristãos (sacerdotes e leigos), foi a de mostrar que a lei de Deus é a lei do amor, não a do castigo e da repreensão. Infelizmente, apesar do ensinamento tão claro da parte de Jesus, desenvolveu-se uma vertente doutrinária do cristianismo nesses mesmos moldes de fanatismo. Isso decorre, sobretudo, do fato de que alguns cristãos colocam o Direito Canônico acima do Evangelho. O Direito Canônico deve ser compreendido como norma de organização e de manutenção da unidade eclesial, não como doutrina que se sobrepõe sobre a Palavra de Cristo transmitida pelos escritores sagrados. Por exemplo: o católico que vai à missa dominical apenas porque o Direito Canônico afirma cometer um pecado quem não for, esse cristão não está praticando a religião verdadeira de Cristo, que é a religião do amor. Lembro demais de ter ouvido na catequese tradicional que todos devem cumprir o “preceito dominical”. Ora, cumprir o preceito não é o mesmo que praticar o mandamento de Cristo. Cumprir o preceito é um ato burocrático exterior estéril, se não estiver acompanhado da motivação interior que decorre do amor a Cristo e aos irmãos. A falta desse componente interno essencial transforma a ida ao templo uma simples obrigação e assim estamos adotando um comportamento que Jesus Cristo, diversas vezes, criticou nos fariseus, que praticavam uma religião de exterioridades. Vista desse modo, a missa passa a ser um ritual enfadonho, o sermão do celebrante vira um discurso interminável e o fiel fica escolhendo aquele padre que celebra a missa mais depressa, a fim de “se livrar” logo da obrigação. Com toda certeza, não é isso que Cristo quer de nós.
Qual seria, então, a motivação para ir à missa aos domingos, se não for o do cumprimento do preceito? A resposta está na leitura do evangelho, retirada de Mateus (18, 15-20), ou seja, “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles.” A verdadeira motivação da participação na celebração litúrgica está no encontro com os irmãos, porque é na comunidade que Cristo está presente, de acordo com a promessa dele. É porque a nossa religião é comunitária e deve ser exercida na comunidade. Por mais que eu reze individualmente (e aqui eu não estou negando o valor dessa oração individual), isso não é suficiente, a fé não está completa. É no encontro da comunidade orante que o cristão tem a certeza de que está na presença de Cristo.
É nesse contexto que devemos compreender a exortação de Cristo, no sentido de que “se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus.” Na comunidade, a nossa oração é muito mais forte, aliás, ela tem todo o poder, assegurado pelo próprio Cristo. Daí que o ato de corrigir o irmão não deve ser com aquele tom ameaçador de censura, de mostrar seus pecados, de advertir sobre os castigos, etc., mas de reconduzi-lo ao amor de Deus. Por exemplo, se o irmão não vai à missa e você vai conversar com ele sobre isso, o tom da conversa não deve dar ênfase no aspecto do “pecado” ou do “descumprimento do preceito”, mas deve destacar a dimensão comunitária da religião, da superioridade da oração coletiva sobre a prece particular, da promessa de Cristo de estar presente quando os irmãos se reunem para rezar, não quando alguém reza individualmente.
É interessante também destacar a metodologia da abordagem ensinada por Jesus. Primeiro, o irmão deve ser procurado em particular, para não expô-lo na comunidade. Se essa conversa não tiver resultado, vem o segundo passo: repete a conversa na presença de outros dois irmãos, atribuindo assim uma força persuasiva maior. Se também isso não funcionar, então será a vez de apelar para que toda a comunidade se empenhe nessa tentativa. Essa sequência de ações deverá ser suficiente para chamar o irmão faltoso à reconciliação. Se nem assim der certo, então vai incidir aquilo que lemos na primeira leitura, do profeta Ezequiel: o ímpio morrerá na sua impiedade, mas tu não serás responsabilizado pela perdição dele. Aqui se entrelaça a primeira leitura com o texto do evangelho, mostrando a harmonia e a coerência da palavra de Deus no antigo e no novo testamentos.
Meus amigos, obviamente não é tarefa fácil chamar a atenção de um irmão sobre o seu comportamento, ao contrário, é extremamente delicada e deve ser tratada com o máximo tato e sensibilidade. Mas Jesus nos ensina que, apesar disso, a nossa fé nos traz essa responsabilidade e não devemos ignorá-la.
Por fim, recordo que amanhã, 8/9, celebra-se a festa de Nossa Senhora do Brasil, a padroeira do Seminário Seráfico. Que ela seja sempre um exemplo para a nossa vida.
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