domingo, 14 de setembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - A SANTA CRUZ - 14.09.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 24º DOMINGO COMUM – A SANTA CRUZ – 14.09.2014

Caros Confrades,

Na liturgia deste domingo, 24º do tempo comum, as celebrações estão voltadas para a glorificação da cruz de Cristo. Fazendo o contraponto com a liturgia da sexta feira santa, na qual se celebra a morte de Cristo na cruz, portanto, os atos litúrgicos estão voltados para a paixão do Senhor, sendo o tom da festa um silêncio circunspecto, nesse dia 14 de setembro, exalta-se a cruz numa festa de alegria, porque foi através dela que veio para nós a salvação. É uma celebração litúrgica que remonta ao século IV e também é comemorada na mesma data pelas igrejas orientais com ritual solene, tendo precedência sobre a liturgia dominical.

Fora do contexto dos ritos graves que circundam o tríduo pascal, a festa da Exaltação da Santa Cruz foi instituída no ano 335, quando o imperador Constantino mandou erguer uma basílica sobre o monte Gólgota, no mesmo lugar onde Jesus fora crucificado, tendo sido colocada nesse templo a “vera cruz”, ou seja, aquela em que Jesus morreu. Já haviam se passado mais de 300 anos da morte de Cristo, quando os cristãos conseguiram encontrar a cruz, realizando escavações nos arredores de Jerusalém. Os trabalhos de busca levaram a diversas cruzes, porque era muito comum a utilização desse instrumento de morte na época de Cristo. De acordo com a tradição, a “vera cruz” foi reconhecida por uma “metodologia” bastante intuitiva: com as várias cruzes enfileiradas uma ao lado da outra, teria sido colocado um cadáver de um homem sobre cada uma delas e, quando isso foi feito na verdadeira, o homem milagrosamente reviveu. Muito provavelmente, essa história faz parte daquele “folclore” que vai sendo transmitido de geração em geração, a ponto de não se saber mais de onde se originou. Mas, por qualquer que tenha sido o método, os fiéis da época, liderados pelo imperador romano e pela mãe deste, Santa Helena, iniciaram a tradição de adorar essa cruz, que continua sendo reconhecida como a verdadeira. E mesmo que não seja, a sua antiguidade e a glorificação que vem recebendo ao longo de tantos séculos faz dela um verdadeiro ícone da fé cristã.

As leituras litúrgicas desta data fazem uma alusão à imagem da cruz associada à restauração da vida. Na primeira leitura, do livro dos Números (21, 4-9), relata-se o episódio da serpente de bronze amarrada a uma estaca, por ordem de Javeh. O título deste livro em hebraico diz-se Bamidbar, que significa literalmente 'No deserto'. Na tradução para a língua grega, o título do livro foi modificado para Arithmoi (aritmética, números, contagem), porque no seu texto constam dois recenseamentos do povo, feitos durante a sua trajetória pelo deserto. Neste livro, encontram-se também muitos preceitos práticos, que constituem uma espécie de tratado legislativo do povo hebreu. E é também neste livro, no cap. 6, 24, que consta aquela bênção que São Francisco costumava usar para abençoar seus frades: O Senhor te abençoe e te guarde, mostre para ti o Seu rosto e tenha piedade de ti... Pois bem. Na leitura da liturgia de hoje, relata-se o episódio em que os hebreus maldiziam Moisés por tê-los tirado do Egito e tê-los levado por uma trajetória sem fim pelo deserto, com toda a sorte de privações. E amaldiçoavam também a Javeh, que mandou serpentes venenosas para castigarem o povo maledicente. O povo se arrependeu e pediu a Moisés que intercedesse por eles. Então, Javeh ordenou a Moisés que fizesse uma serpente de bronze e a pendurasse numa vara comprida. Aquele que fosse mordido por uma serpente e olhasse para aquela feita de bronze, ficaria curado. Então, a figura da serpente de bronze suspensa significou para os hebreus um instrumento de salvação. Muito tempo depois, Jesus irá retomar esse episódio para comparar com a sua própria paixão.

Na segunda leitura, da carta aos Filipenses (2, 6-11), Paulo relembra àqueles cristãos que Cristo deixou de lado sua condição divina e assumindo plenamente a sua humanidade, humilhou-se ao máximo, sendo morto numa cruz, que era naquela época um suplício aplicado apenas aos escravos e aos mais terríveis delinquentes. Daí Paulo dizer que Cristo esvaziou-se a si mesmo, isto é, escondeu sua divindade por trás da sua humanidade e, mais ainda, escondeu essa humanidade por trás da condição humana mais vil, permitindo-se uma variedade de morte infame e humilhante. Mas Ele fez isso justamente para que o Pai o exaltasse, porque foi para isso que ele assumiu a condição humana. Por isso, o Pai O colocou acima de tudo e Lhe deu um nome que está acima de todo nome. E com isso, Cristo transformou aquele instrumento de suplício num recipiente de gozo, transformou aquele aparelho de sofrimento num capitel de regozijo, aquele aparato de humilhação num trono de exaltação. Depois disso, todo joelho que há no céu, na terra e embaixo da terra se dobrará em sua homenagem. Foi certamente esse hino de exaltação da cruz, composto por Paulo na carta aos Filipenses, que motivou a festa litúrgica desta data.

Na leitura do evangelho de João (3, 13-17), Jesus recorda a figura da serpente erguida na haste por Moisés no deserto para comparar isso a Ele próprio, no contexto de sua conversa com Nicodemos. Apenas o evangelista João narra esse episódio. Nicodemos era um mestre da lei, portanto, um fariseu especialista nas escrituras, que acreditava em Jesus, porém não podia declarar isso publicamente, por receio de represália dos demais, por isso, foi ter com Jesus à noite, às escondidas, e confessou a ele a sua fé. Nicodemos ficou embaraçado quando Jesus disse que somente quem renascesse poderia ver o reino de Deus. Renascer? Mas eu já sou um adulto, como pode ser isso? Nicodemos pensou logo no nascimento biológico, porém Jesus falava do renascimento em espírito. Por isso, Jesus fez até uma ironia com ele: “tu és mestre da lei e não sabes disso?” Sim, ele não sabia mesmo. Então, Jesus usou como exemplo uma figura conhecida por Nicodemos: a serpente de Moisés. Lembra de quando Moisés suspendeu uma serpente no deserto, para que todos os que a mirassem fossem salvos? Pois assim acontecerá com o Filho do Homem. Convém que seja suspenso também, de modo que quem o vir e nele crer tenha a vida para sempre. A figura da serpente erguida por Moisés fora um símbolo que preconizava a elevação de Jesus na cruz com o mesmo objetivo: trazer a salvação aos que olharem para Ele com fé.

Meus amigos, vejamos aqui uma situação de aparente contradição. Javeh havia proibido os hebreus de fazerem ídolos ou imagens d'Ele próprio, pois Ele devia ser adorado em espírito e em verdade. No entanto, neste caso relatado em Bamidbar, o mesmo Javeh mandou que Moisés fizesse um “ídolo” de bronze em forma de serpente. Não que Javeh se comparasse à figura de uma serpente, mas de todo modo, a mesma serpente que gerava a morte também passou a gerar a vida. Somente Javeh é o senhor da vida, então aquela figura idolatrizada da serpente funcionava como uma mediação entre a morte e a vida, para os que n'Ele acreditassem. Vemos com isso que Javeh não era totalmente contrário à feitura de imagens, Ele não queria ser retratado nelas. E o fato de Jesus, muito tempo depois, ter retomado a figura da serpente de bronze como portadora da vida para comparar a Si próprio, elevado numa haste de madeira, avaliza a idéia de que a confecção de imagens não é proibida, de forma absoluta, por Deus, mas as imagens devem ser símbolos e sinais daquelas verdades que representam. Javeh não mandou que ninguém adorasse a serpente, mas apenas que olhasse para ela com o coração contrito. Essa é a mesma atitude que o cristão deve ter diante das imagens sagradas, não se detendo nas figuras em si, mas servindo-se delas para melhor vislumbrar os sinais que elas representam.

É curioso observar que muitas pessoas invocam textos bíblicos para afirmarem que Deus não gosta das imagens e as proibiu. Esquecem de invocar também a imagem da serpente como mediadora da salvação. É o caso de dizermos o mesmo que Jesus disse a Nicodemos: tu és um mestre da lei e ignoras isso? Ou seja, buscas na escritura apenas aquelas passagens que favorecem a justificativa do teu ponto de vista? Ficas preso às palavras e expressões da lei e não consegues descobrir nelas o sentido mais profundo da sua mensagem? É por isso que toda interpretação fundamentalista da escritura deve ser evitada. É por isso que já afirmei, nesses escritos, por diversas vezes: não basta ler a Bíblia, é necessário estudar a Bíblia, aprofundar o seu conteúdo, compreendê-la no seu contexto histórico e cultural, para que possamos tentar descobrir a sua mensagem verdadeira.

A festa da Santa Cruz é sequenciada pela festa de Nossa Senhora das Dores, nesta segunda feira, dia 15 de setembro. Ao falar na cruz e morte de Cristo, não podemos esquecer que o sofrimento de Maria está também associado à cruz e é um fator de extraordinária importância no contexto dos eventos da história da salvação. Mãe das Dores, rogai por nós.

***

Nenhum comentário:

Postar um comentário