COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO
DA QUARESMA – A ARCA E O BATISMO – 22.02.2015
Caros Confrades,
A liturgia deste 1º domingo da
quaresma põe para nossa reflexão, através da carta de Pedro, a
analogia entre a arca de Noé e o batismo, enquanto instrumentos que
Deus disponibiliza para a nossa salvação. Junto com este tema,
temos também a referência às tentações pelas quais Jesus passou
antes de sua vida pública e a alusão à simbologia do número 40,
pois diz o hagiógrafo que Jesus passou 40 dias no deserto a jejuar,
enquanto se preparava para a sua missão e também a duração do
dilúvio, segundo a narrativa bíblica, foi de 40 dias e 40 noites..
O nome 'quaresma' é proveniente do
termo latino 'quadragesima', que significa o mesmo que a palavra
portuguesa quadragésima, numeral ordinal correspondente a 40.
Portanto, a quaresma está também incluída na simbologia do 40.
Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antes da
ocorrência de algo grandioso. O povo de Deus perambulou 40 anos no
deserto até chegar à terra prometida. Moisés passou 40 dias/noites
no monte Sinal até receber de Deus as tábuas da lei. No dilúvio,
choveu sem parar durante 40 dias, até chegar a bonança. Jonas
concedeu aos ninivitas o tempo de 40 dias para se arrependerem e
fazerem penitência. Jesus jejuou durante 40 dias no deserto. Após a
ressurreição, Jesus ainda passou 40 dias aparecendo aos apóstolos,
preparando a vinda do Espírito Santo, até ir definitivamente para o
Pai. São várias as 'quaresmas' na Bíblia, no entanto, é mais
comum a gente lembrar somente do tempo em que passamos preparando a
Páscoa do Senhor a cada ano.
É neste contexto da simbologia do
número 40 que devemos compreender o tempo de jejum de Jesus no
deserto. Nem sempre os 40 dias indicados nas leituras bíblicas
indicam 40 dias do calendário, porque aqui tratamos de uma mensagem
simbólica, significando que o número 40 sempre indica que um grande
acontecimento está sendo preparado. O tempo quaresmal nos prepara
para a grande solenidade da Páscoa.
Na primeira leitura (Gn 9, 8), lemos o
testemunho do povo hebreu acerca da aliança de Deus com Noé e com
todos os que foram salvos do dilúvio, com a promessa de que essa
catástrofe nunca mais ocorreria. Esta mesma idéia foi repetida por
Pedro na sua primeira carta (1Pd 3, 18), dirigida aos judeus da
diáspora, na qual o Apóstolo lembra aos seus compatriotas o
episódio do dilúvio e a figura de Noé, associando a imagem da arca
salvadora com o sacramento do batismo da salvação. “Nesta
arca, umas poucas pessoas - oito -foram salvas por meio da água. A
arca corresponde ao
batismo, que hoje é a vossa salvação.”
Há uma nítida diferença de estilo entre a carta de Pedro e as
cartas de Paulo, pois Pedro era pessoa de poucas letras e suas lições
são mais simples, bem distantes da intelectualidade paulina. Diz
Pedro que Jesus foi pregar até para os “espíritos na prisão”,
referindo-se àqueles que blasfemaram na época de Noé e por isso
não entraram para a arca, perecendo no dilúvio. A prisão, neste
caso, seria o mundo das profundezas, a região dos mortos, aonde
Jesus teria ido após a sua ressurreição. De acordo com a tradição,
nas profundezas (infernos) estariam as almas dos fiéis, aguardando a
vinda do Salvador. Pois bem, mesmo sendo pessoas que haviam zombado
de Noé e blasfemado contra Deus, ainda assim o batismo da salvação
trazido por Cristo se destina também a estes.
A leitura do evangelho de hoje é de
Marcos (1, 12-15), um texto muito sucinto, no qual ele relata que,
após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus
ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e ali foi tentado por
Satanás. Essas tentações de Jesus nós devemos entender num
sentido também simbólico, sem a presença daquela terrível imagem
de Satanás, construída pelos artistas medievais. As tentações
pelas quais Cristo passou diziam respeito ao confronto que se passava
no seu íntimo em relação às duas naturezas divina e humana, que
ele detinha. Com efeito, enquanto Filho de Deus, ele era “tentado”
a resolver as dificuldades que iria enfrentar de uma forma
miraculosa, mas ele deveria evitar isso, ele deveria se comportar
como uma pessoa humana, ou seja, devia prevalecer a natureza humana.
Portanto, essas “tentações” seriam esse conflito interior que
ele sentia, na relação entre as naturezas divina e humana, fato que
ele devia ter sempre em mente, para não se deixar desviar de sua
missão.
Então, quais foram mesmo as grandes
'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão...
tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da
riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do
orgulho/vaidade. Meus amigos, Jesus Cristo tinha consciência da sua
natureza divina e também tinha conhecimento de tudo o que ele iria
enfrentar na sua missão de pregar a boa nova. Então, durante o
jejum, ele fez uma preparação psicológica para viver como homem
comum, pensar como homem comum, agir como homem comum, deixando em
segundo plano a sua condição divina. Ele sabia que iria passar fome
algumas vezes. Então, seria muito mais cômodo para ele fazer um
'milagrezinho' e transformar um pedaço de pedra ou de pau numa
iguaria deliciosa. Mas para ser um homem comum, ele não podia jamais
agir assim. Ou seja, ele só poderia utilizar o poder que a sua
condição divina lhe dava quando fosse necessário, de acordo com o
desígnio do Pai, para corroborar a sua pregação e demonstrar a
glória do Pai. Esse foi o grande desafio para Jesus em todos os
momentos, até aquele momento crucial em que ele pede para “deixar
passar aquele cálice” sem que ele bebesse, no entanto, que
prevalecesse a vontade do Pai.
Este mesmo raciocínio vale para as
outras ocasiões tentadoras. Estando diante daquela multidão ávida
por presenciar um feito extraordinário, Jesus não poderia 'cair na
tentação' de demonstrar sua condição divina apenas para ser
aplaudido por aquela gente, por vaidade ou orgulho próprio. Ao
contrário, quando ele fazia algum milagre, usava uma forma bastante
discreta e sempre destacando a fé do beneficiado. Os fariseus
estavam o tempo todo a provocá-lo para ele provar que era filho de
Deus. Jesus nunca fazia milagres nessas ocasiões, muito menos para
provar nada perante os fariseus, porque estes deviam acreditar na sua
mensagem pelo conteúdo dela, não por uma demonstração de poder.
Portanto, Jesus passou 40 dias a jejuar
e meditar no deserto, antes de começar suas pregações, para se
conscientizar sempre mais da necessidade que ele tinha de ser um
homem igual aos outros, no jeito de morar, de vestir, de andar, de se
alimentar, de sofrer, de se alegrar, de falar, de demonstrar seus
sentimentos, etc, tudo como um ser humano comum. Ele sabia desde o
princípio e mais do que qualquer pessoa o final que o aguardava, os
padecimentos atrozes que teria de suportar, para cumprir a promessa
do Pai, para a nossa salvação. No seu jejum no deserto, tudo isso
deve ter passado pela mente de Jesus e para tudo isso ele estava se
preparando, porque iria iniciar a sua atividade primordial, aquela
para qual Ele tinha vindo ao mundo.
Meus amigos, se até Jesus que era
divino e humano passou por “tentações”, quanto mais nós, que
somos pessoas limitadas e imperfeitas. Com base nessas narrativas, a
tradição ensinava que Satanas nos tenta, induzindo-nos ao pecado.
Contudo, podemos perceber que a fonte das nossas tentações são as
nossas fraquezas, a nossa imperfeição, o nosso orgulho, a nossa
vaidade e, principalmente, a nossa sede de poder, de ter sempre mais,
de querer sempre mais. Jesus venceu as tentações através do jejum
e da oração e isso é uma indicação também para nós. Os
conceitos fundamentais da nossa quaresma foram explanados na liturgia
da quarta feira de cinzas: a oração, o jejum e a esmola. A oração
e o jejum dizem respeito a atitudes interiores nossas; a esmola diz
respeito à nossa ação concreta em benefício dos irmãos carentes.
A salvação não é alcançada apenas com atitudes internas de
conversão, mas esta deve ser acompanhada de gestos concretos de
solidariedade e de serviço. Tal é o objetivo da Campanha da
Fraternidade, que todos os anos é realizada neste tempo.
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