COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6.º DOMINGO
COMUM – HUMILDADE QUE CURA – 15.02.2015
Caros Confrades,
A liturgia deste domingo (6º do tempo
comum) nos convida a refletir sobre a humildade, como condição
necessária para recebermos os favores divinos. A humildade cristã
não significa ser uma pessoa sem iniciativa ou sem determinação
para vencer na vida, mas quer dizer o reconhecimento e a aceitação
da própria incompletude e do inerente estado de necessidade em que
todos nós vivemos. Por outras palavras, significa descer do pedestal
do orgulho, da autossuficiência, da arrogância e ter consciência
das próprias falhas e impotências. A liturgia de hoje lembra dois
milagres de cura de pessoas doentes que só ocorreram porque essas
pessoas tiveram a humildade suficiente para admitir a sua condição
de inferioridade, juntamente com a vontade de superá-la.
Para a primeira leitura, a liturgia
propõe duas leituras a escolher, sendo uma retirada do Levítico
(13, 1), que trata daquelas exigências para a pessoa portadora de
lepra, que devia se apresentar ao sacerdote e depois afastar-se do
convívio social, usar roupas rasgadas e passar a morar fora dos
limites da cidade. A outra é retirada do livro dos Reis (2Rs 5, 9) e
foi essa a escolhida pela CNBB para a leitura deste domingo. Ambas se
referem à condição da pessoa contagiada por lepra. Devemos ter em
mente que o livro do Levítico, assim como o livro dos Números, são,
na verdade, tópicos da legislação hebraica que foram colocados na
Torah como regras divinas, quando de fato são regras de conduta
social, padronização de costumes. A lei hebraica, portanto, excluía
da sociedade as pessoas portadoras de lepra. Era como se fosse uma
regra de saúde pública. A lepra era uma doença para a qual não
existiam remédios e a cura dificilmente acontecia. Ao mesmo tempo,
era uma doença de alto contágio e até bem pouco tempo o tratamento
dessa moléstia ainda seguia esses padrões de isolamento.
Atualmente, não existe mais esta segregação por causa da lepra,
que passou a ser uma doença muitas vezes curável e, em geral,
controlada por medicamentos.
Pois bem. Na leitura do livro dos Reis
(2Rs 5, 9), lemos o episódio da cura de Naamã, o sírio, pelo
profeta Eliseu. Logo no início do trecho, observa-se o contraste da
pompa que acompanhou a chegada de Naamã com a simplicidade da
atitude do profeta. “Naamã
chegou com seus cavalos e carros, e parou à porta da casa de Eliseu.
Eliseu mandou um mensageiro para lhe dizer: 'Vai, lava-te sete vezes
no Jordão, e tua carne será curada e ficarás limpo'.”
Dá para imaginar o aparato da comitiva de uma autoridade estatal
daquele tempo. Naamã era chefe dos exércitos do rei da Síria e
tinha na sua casa uma escrava hebréia, que informou à mulher dele
que havia um profeta em Israel que tinha poderes para curá-lo.
Então, a visita de Naamã revestia-se de um evento oficial, pois ele
vinha com uma carta de recomendação do rei da Síria ao rei de
Israel. Se fosse nos dias de hoje, ele viria num carro preto oficial,
antecedido por policiais motorizados com as sirenes buzinando em alto
som e aquele cortejo de veículos de autoridades diplomáticas. É
essa a figura que me vem à mente com a descrição de que Naamã
chegou com seus carros e cavalos e parou à porta de Eliseu.
A atitude de Eliseu foi paradoxal. Ele
nem ao menos saiu de casa para vê-lo, apenas mandou um recado para
Naamã: vai e lava-te sete vezes no rio Jordão. Naamã ficou a um só
tempo irritado e decepcionado: “'Eu
pensava que ele sairia para me receber e que, de pé, invocaria o
nome do Senhor, seu Deus, e que tocaria com sua mão o lugar da lepra
e me curaria.” E
foi-se embora resmungando, ia voltar para casa, quando um dos servos,
com muita propriedade, argumentou: se o profeta tivesse mandado fazer
algo difícil, tu farias, porque não fazes uma coisa fácil dessas?
Aqui é que entra a humildade de Naamã. Ele não se deixou dominar
pelo orgulho ferido de ter sido desdenhado pelo Profeta e seguiu a
recomendação, obtendo assim a cura. Se, ao invés, ele tivesse
resistido no seu brio de autoridade desrespeitada (aquilo que, no
Brasil, representa a frase “você sabe com quem está falando?”),
com certeza teria voltado para a sua terra enfermo e teria apressado
a sua morte. Depois de curado, foi oferecer seus presentes ao profeta
Eliseu, que os recusou, porque o homem de Deus não recebe paga pelo
exercício do seu múnus sagrado. É pena que os nossos pastores de
hoje, quando leem essas passagens da Bíblia, passam por cima e não
as consideram para colocarem na sua prática.
Na leitura do evangelho de Marcos (Mc
1, 40), temos outro exemplo de cura de pessoa portadora de lepra.
Esse homem era um segregado, de acordo com a lei de Moisés. Isolado
da sociedade, ele era obrigado a gritar “impuro, impuro”, quando
alguém se passava. Ao ver Jesus passar, ele se aproximou e pediu
humildemente: “'Se
queres tens o poder de curar-me'.”
Diz Marcos, no versículo 41 que: “Jesus, cheio de compaixão,
estendeu a mão, tocou nele, e disse: 'Eu quero: fica curado!' E
imediatamente ele ficou limpo. Pela lei hebraica, um leproso que
alcançasse a cura devia apresentar-se ao sacerdote, para que ele
atestasse isso e então ele fosse readmitido para viver novamente
junto com as demais pessoas. Jesus era um judeu correto e cumpridor
da lei, mesmo sabendo que estava acima dela. Ao tocar no leproso, por
exemplo, ele superou a lei mosaica, que dizia que quem tocasse numa
pessoa impura se tornaria impura também. Ele tocou e não ficou
impuro. Porém, em relação ao beneficiado pela cura, ele
recomendou: “Vai,
mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que
Moisés ordenou, como prova para eles!'”
Jesus disse várias vezes que não veio contestar a lei, mas
cumpri-la de modo mais perfeito. No caso, o cumprimento da lei
significa o reconhecimento da autoridade constituída (o sacerdote) e
a oferta do sacrifício pela purificação, que para as pessoas
pobres, o custo era de dois pombinhos. Mas o que ressalta nesse
contexto é a atitude de humildade do leproso, quando foi pedir que
Jesus o curasse: chegou
perto de Jesus, e de joelhos pediu.
Obviamente, não basta ficar de
joelhos, numa atitude externa de humildade, se esse gesto não provém
do íntimo da pessoa. Quando o evangelista diz que Jesus ficou tomado
de compaixão por aquele leproso, não foi certamente pelo tom de voz
dele nem pela atitude de ajoelhar-se, e sim pelo que Ele percebeu no
íntimo do coração dele. Jesus não fez nenhum milagre favorecendo
nenhum fariseu, porque estes se consideravam donos da verdade e
doutores da lei, eles se consideravam a priori justos e salvos, a
figura de Jesus era contraditória para eles. Da mesma forma como
Naamã se queixou porque pensava que o profeta Eliseu “sairia para
recebê-lo”, como se faz quando chega uma autoridade, assim também
os fariseus pensavam que, quando o Messias chegasse, reconheceria a
autoridade deles como mestres da lei e se apresentaria a eles e iria
cumprimentá-los e render-lhes homenagens. Se Jesus não fazia isso,
então Ele não era o Messias.
O Papa Francisco, na sua alocução
dominical aos peregrinos que rezam com ele o Angelus do meio dia, na
Praça de São Pedro, fez uma análise bem interessante dessa atitude
humilde do leproso e das consequências que disso lhe advieram. Diz o
Papa: “O episódio da cura do leproso acontece em três passos
curtos: a invocação do enfermo, a resposta de Jesus, as
consequências de cura milagrosa. O leproso suplica para Jesus “de
joelhos” e lhe diz: “Se quiser, você pode me purificar” (v.
40). A esta oração humilde e confiante, Jesus responde com uma
atitude profunda da sua alma: a compaixão, que significa"
sofrer- com- o outro". O coração de Cristo manifesta a
compaixão paterna de Deus por aquele homem, aproximando-se dele e
tocando-o. Este particular é muito importante. Jesus “estendeu a
mão e tocou-o ... e imediatamente desapareceu dele a lepra e foi
purificado" (V. 41). A misericórdia de Deus supera todas as
barreiras e a mão de Jesus toca o leproso. Ele, Jesus, pega a nossa
humanidade enferma e nós pegamos Dele a sua humanidade saudável e
que cura. Isso acontece cada vez que recebemos com fé um sacramento:
o Senhor Jesus nos “toca” e nos presenteia a sua graça. Neste
caso pensamos especialmente no Sacramento da Reconciliação, que nos
cura da lepra do pecado.” (www.zenit.org)
A lição da liturgia de hoje,
resumindo, é a oração humilde e confiante como sendo a chave para
obter de Deus a cura para as nossas enfermidades do corpo e do
espírito.
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