COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO
DA QUARESMA – CASA DE ORAÇÃO – 08.03.2015
Caros Confrades,
As leituras da liturgia do 3º da
quaresma trazem para a nossa reflexão alguns aspectos interessantes
relativos ao cumprimento da lei de Moisés, sobretudo a crítica de
Jesus à maneira segundo a qual os fariseus a cumpriam, isto é,
absolutamente literal e sem qualquer adesão interior. Aborda também
uma questão muito sensível no relacionamento do catolicismo com
outras religiões, aquele que diz respeito ao preceito de guardar o
sábado (sétimo dia). Ao final, Jesus dá a chave para a compreensão
dessas questões polêmicas: a casa do meu Pai é casa de oração.
Temos na primeira leitura, do livro do
Êxodo (20, 1-17) a declaração divina dos mandamentos dados a
Moisés no monte Sinai. São preceitos fortes: “Eu
sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão.
Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem
esculpida nem figura alguma”,
mas também generosos: “uso
da misericórdia por mil gerações com aqueles que me amam e guardam
os meus mandamentos.”
O curioso na leitura desse texto é porque os hebreus se fixaram
muito mais na primeira parte (da exigência, do castigo) do que na
segunda parte (da misericórdia). Cumprir os mandamentos, para eles,
era seguir à risca o que estava escrito, cumprindo externamente
aqueles preceitos, como se isso bastasse e como se Javeh não fosse
capaz de saber o que se passava no interior dos seus corações. Não
terás outros deuses, não farás imagens esculpidas de mim, não
pronunciarás em vão o meu nome, descansarás no sétimo dia
(sábado), não matarás, não cometerá adultério, não desejarás
os bens do outro... vemos aqui um misto de regras de caráter
religioso com regras de comportamento social, como é praxe
encontrar-se em todas as culturas antigas, quando ainda não havia a
separação entre direito e religião. Os dez mandamentos são assim
um compênio simplificado de normas religiosas, morais e sociais, com
as quais os líderes dos hebreus exerciam o poder e o controle social
do povo no deserto.
De todos esses preceitos, comentarei
apenas dois: não farás imagens esculpidas e descansarás no sétimo
dia, por serem dois pontos que os não católicos alegam contra o
catolicismo, que não segue a Biblia. Todos sabem que, desde tempos
remotos, os templos cristãos usavam figuras e imagens esculpidas. Em
tese, essa atitude contraria a determinação divina. Porém, basta
analisarmos o texto de forma contextualizada, para percebermos que a
proibição de esculpir imagens está associada à adoração delas.
Ou seja, se observarmos bem, o que Javeh pretende evitar não é o
ato de esculpir imagens de figura alguma (vers. 4), mas no ato de
prostrar-se e adorar esses 'deuses' (vers. 5). Trata-se de um
mandamento só: não esculpir imagens de figuras (deuses, imagens
=eídolon, em grego), para que o povo não venha a praticar a
'eidolon-latreia', ou seja, a idolatria ou a adoração dos ídolos.
O ciúme de Javeh se foca na eventualidade de ser 'substituído' por
figuras criadas pelos homens e não na proibição das esculturas em
si mesmas. Nós sabemos, pelos relatos bíblicos, que por diversas
vezes, isso aconteceu. Inclusive, quando Moisés desceu do Sinai para
anunciar a lei, encontrou os hebreus cultuando um bezerro de ouro.
Portanto, numa visão teleológica, a questão principal é a
proibição da idolatria. A proibição das esculturas seria apenas
uma espécie de precaução, para que as pessoas não sejam
“tentadas” a colocar a sua fé nas imagens, e não no Criador.
Ora, nós todos sabemos que as imagens
sacras adotadas no catolicismo não têm essa mesma característica
dos 'ídolos' do antigo testamento, porque não são elas objeto de
adoração, elas apenas evocam, para nosso exemplo e edificação,
cristãos que podem ser considerados como modelos a serem seguidos,
pelas suas reconhecidas virtudes e piedade, e que por isso foram
canonizados. As imagens religiosas não são objetos de culto, embora
estejam presentes no recinto do culto. Não se pode negar que uma
significativa parcela dos fiéis, de instrução religiosa mais
elementar, de fato adoram as imagens, mas essa não é a postura
teológica doutrinária. Trata-se de um equívoco da catequese
tradicional, que se incrustou na mentalidade religiosa do nosso povo
e vai demorar bastante tempo para se ver este problema resolvido.
Contudo, isso não significa que o catolicismo desobedece a Bíblia.
Afirmar isso significa manter uma compreensão puramente literal e
formalista da Escritura, a qual não é recomendada por nenhum
teólogo consciente do nosso tempo, nem mesmo pelos não católicos.
O outro ponto polêmico entre o
catolicismo e outras religiões é o descanso sabático. Afirma-se
que o catolicismo desobedece a Bíblia porque ali está dito que “o
sétimo dia é dedicado ao Senhor teu Deus”. De início, quero
dizer que considero coerente a obediência dessa regra pela religião
judaica atual, porque eles não reconhecem nem aceitam o Novo
Testamento. Mas para as religiões cristãs, ao meu ver, ao
reconhecerem o Evangelho de Cristo, não vale essa justificativa,
porque o Antigo Testamento deve ser compreendido na perspectiva do
Novo Testamento, seguindo o ensinamento de Cristo, que não veio
abolir a lei, mas cumpri-la com perfeição (Mt 5, 17). No princípio
do cristianismo, os cristãos e judeus convertidos guardavam o dia do
sábado (shabat) como o dia do descanso, tal como está posto na lei.
Todavia, com o avanço do entendimento da fé nas primeiras
comunidades, com o surgimento das primeiras propostas doutrinárias,
os cristãos foram percebendo que o melhor cumprimento da lei do
descanso, instituída por Deus, devia ser compreendido na perspectiva
daquilo que Jesus falou aos judeus, conforme está escrito no
evangelho de João (2, 19), lido hoje: “'Destruí
este Templo, e em três dias o levantarei.'”
É o próprio João quem interpreta essa metáfora, logo depois, no
vers. 21: “Jesus
estava falando do Templo do seu corpo.”
Meus amigos, o evangelho de João foi escrito pouco antes da morte
dele, que se deu no ano 100 d.C., isto é, só muitos anos depois os
líderes cristãos compreenderam essa analogia. Nos outros evangelhos
em que essa narrativa aparece (Mt 21,12; Mc 11,15; Lc 19,45),
evangelhos escritos antes do evangelho de João, não consta esse
detalhe. O que se conclui dessa análise é que, com o passar do
tempo, os cristãos perceberam que o cumprimento mais perfeito da Lei
não devia ficar vinculado ao templo de pedra dos judeus, mas ao
templo corpóreo de Cristo ressuscitado.
A partir daí, foi amadurecendo a ideia
de que o dia do descanso (sétimo dia) não devia mais ficar
vinculado à lei mosaica (shabat), mas ao novo sentido dado a esta
pela ressurreição de Cristo, ocorrendo então a troca do sábado
pelo domingo como o dia do preceito divino. Esta prática foi
consolidada no Concílio de Laodicéia (364 d.C.), que oficializou a
mudança. Alguns estudiosos não católicos afirmam que a mudança
foi feita por ordem do Papa e que o Papa não tem mais autoridade do
que a Bíblia. Quem afirma isso, não sabe o que significa um
Concílio nem consegue entender que o próprio Cristo deixou uma
velada recomendação neste sentido, conforme explicado acima.
Pretender justificar a guarda do sábado, porque assim está na lei
de Moisés, equivale a não saber interpretar a escritura no seu
dinamismo histórico, é o mesmo que desconhecer todo o esforço de
Cristo, no sentido da correta compreensão da vontade do Pai. Quando
Jesus expulsou os vendedores do templo, alegando que eles haviam
transformado a casa do Pai numa “spelunca latronum” (covil de
ladrões), Ele estava dando um recado indireto aos judeus acerca do
modo de cumprir a lei. Aqueles vendedores eram, na verdade,
facilitadores do cumprimento da lei de Moisés, a qual determinava as
oferendas que os judeus deviam fazer no templo, nas festas rituais:
os ricos ofereciam bois, a classe média oferecia ovelhas, os pobres
ofereciam pombas. Para que as pessoas (que vinham de longe, muitas
vezes) não tivessem que viajar tangendo seus animais pelo caminho,
os comerciantes vendiam na porta do templo (ou até dentro do
recinto). Aquilo não era um “mercado” comum, era uma prática
religiosa para favorecer o cumprimento do preceito. Ao expulsá-los,
Jesus estava querendo dizer: meu Pai não precisa de bois, nem de
ovelhas, nem de pombas, Ele quer os vossos corações. Jesus estava
descumprindo a lei de Moisés? Literalmente falando, sim. Mas no
sentido do cumprimento mais perfeito do preceito, ele estava dando a
alternativa mais correta para agradar a Deus.
Estejamos atentos para compreender a
palavra de Deus em plenitude, não só na sua literalidade.
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