COMENTÁRIO LITÚRGICO – SS PEDRO E
PAULO – PRIMAZIA PETRINA – 28.06.2015
Caros Leitores:
Neste décimo terceiro domingo comum, a
memória litúrgica é dedicada aos Santos Pedro e Paulo, fundadores
do cristianismo ocidental. O cristianismo teve início em Jerusalém,
onde Jesus fora crucificado, onde ele concluiu suas pregações, a
cidade símbolo para os judeus e também a grande metrópole daquela
região oriental, que se estendia até Constantinopla. Todos os
apóstolos eram de cultura judaica, então o território onde por
primeiro o cristianismo foi difundido era o das comunidades locais,
tanto aquelas que Jesus havia visitado quanto as demais, por onde os
apóstolos saíram na sua pregação missionária. A difusão do
cristianismo pelo mundo grego-romano se deu por obra de Pedro e de
Paulo, mais propriamente de Paulo, pois foi este quem atraiu Pedro
para Roma, então a capital do ocidente. A comunidade cristã romana
foi criada por Paulo e este levou Pedro para ser o chefe daquele
grupo cristão, enquanto os demais apóstolos permaneceram nas terras
orientais, próximos das suas origens.
Olhando para o passado, chega-se à
conclusão que, se dependesse apenas dos apóstolos treinados por
Cristo, a religião cristã não teria ido além dos limites do mundo
judaico. Eles não tinham condições intelectuais de penetrarem na
cultura grego-romana, nada conheciam disso, não falavam a língua
grega, não tinham o talento necessário para pregar o cristianismo
no mundo helenizado. Mas Jesus queria que a sua doutrina fosse
espalhada por todos os povos e então ele fez o milagre que eu
considero o mais complexo e grandioso de todos: cooptar o seu maior
perseguidor e torná-lo o seu maior arauto. Meus amigos, para mim, a
maior prova da divindade de Cristo e ao mesmo tempo prova da origem
divina da igreja cristã está neste fato. Ele precisava de um
seguidor com formação intelectual destacada e com grande fervor
missionário e foi encontrar essas qualidades na pessoa de Paulo.
Ocorre que Paulo era ardoroso combatedor da doutrina cristã, tal era
a sua fidelidade às tradições judaicas. Então, como para Deus
nada é impossível, o aparentemente impossível aconteceu, quando
Paulo foi abordado no caminho de Damasco, jogado ao chão e logo
transtornado e transformado no mais ardente e vigoroso defensor do
cristianismo. Foi ele mesmo quem escreveu isso, na carta aos Gálatas
(1, 14-16): “No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da
minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus
antepassados. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou
por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para
que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma ”
E ele completa, dizendo: eu não recebi o conhecimento da doutrina
cristã por meio de homem nenhum, mas diretamente de Cristo, por
revelação. Os apóstolos judeus não tinham conhecimentos profundos
nem discurso elegante, eles eram pescadores, pessoas de poucas
letras, não podiam ser instrutores de Paulo. Então, todo o
conhecimento que Paulo extraordinariamente compôs e explicitou nas
suas pregações e nas cartas que escreveu, tudo lhe foi revelado
diretamente por Cristo, no ato de sua conversão. Conforme falei
antes, para mim, essa é uma prova indiscutível, a mais eloquente da
divindade de Jesus. Sem Paulo, nós hoje não seríamos cristãos.
Pois bem. Foi ideia de Paulo levar
Pedro para Roma, a maior metrópole do mundo na época. Cabe aqui a
pergunta: por que ele convidou Pedro? Por que não outro apóstolo?
Podemos especular a respeito. Uma explicação para isso podemos
encontrar na carta aos Gálatas (1, 18-19), onde Paulo diz: “Depois
de três anos, subi a Jerusalém para conhecer Pedro pessoalmente e
estive com ele quinze dias Não vi nenhum dos outros apóstolos, a
não ser Tiago, irmão do Senhor.” Deixando de lado a polêmica
sobre “o irmão do Senhor”, concluimos que, dos onze, Paulo só
conheceu Pedro e Tiago. Paulo foi a Jerusalém conhecer Pedro, porque
certamente estava informado de que Jesus havia deixado com ele a
liderança do grupo. O encontro com Tiago podemos dizer que foi
meramente acidental. Nessas circunstâncias, quem Paulo iria convidar
para comandar a comunidade cristã de Roma? Não havia outra
alternativa, a não ser Pedro. Os outros apóstolos continuaram
“chefiando” as suas comunidades nas localidades orientais de
cultura judaica. A outra explicação que vejo, atribuo à própria
inspiração de Jesus para que Paulo conduzisse Pedro para aquela que
seria, no futuro, a cidade símbolo da igreja ocidental. Não nos
esqueçamos, porém, que a igreja de Roma foi a mais tardia de todas,
Paulo já havia pregado o cristianismo em todas as outras localidades
do mundo grego-romano e, por último, chegou à cidade-sede do
império. Com isso, quero dizer que todas as outras comunidades são
mais antigas do que a de Roma. Essa observação é importante para
acompanhar o raciocínio que desenvolverei a seguir.
Uma das grandes questões, talvez a
maior de todas, que o Papa Francisco está presentemente enfrentando,
com muita paciência e caridade, e buscando uma solução
satisfatória é a reaproximação da Igreja Romana com as Igrejas
Orientais. Divergências históricas milenares separam essas irmãs,
que são as comunidades cristãs primitivas e originais. Podemos
observar que essa querela teve início quando Paulo levou Pedro para
liderar a igreja romana e depois se agravou com os eventos históricos
que se sucederam. Nos primeiros séculos, a relação entre a igreja
romana e as igrejas orientais era pacífica, não havia ainda sido
formulada a doutrina da “chefia” do líder da igreja de Roma
sobre os líderes das demais igrejas. Essa doutrina, que o Concilio
Vaticano I transformou em dogma, conhecida como o “primado de
Pedro” só começou por influência dos imperadores romanos nos
negócios eclesiásticos, primeiro Constantino e Teodósio, mais
tarde, Carlos Magno. Por interferência deles, seguindo o modelo
político, o bispo de Roma foi transformado no “Papa” com
autoridade sobre todas as demais igrejas. Obviamente, os orientais
nunca concordaram (nem concordam hoje ainda) com isso e, a meu ver,
com toda razão. E esse é o grande entrave que o Papa Francisco
precisa ter habilidade de superar, para poder levar adiante o seu
projeto de reunificação. O Papa Bento XVI chegou a nomear dois
Patriarcas orientais como Cardeais, o que já foi um grande avanço.
Mas ainda há muitas objeções para serem negociadas.
Bem, de uma forma ou de outra, o
fundamento bíblico desta 'primazia de Pedro' está no evangelho de
Mateus, lido na missa de hoje (Mt 13, 19), o conhecido episódio das
chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço outras
considerações. Apenas no evangelho de Mateus existe essa passagem
que fala em “construir a igreja sobre essa pedra” e 'dar as
chaves' da igreja a Pedro. Eu tenho uma séria desconfiança de que
esse trecho não seja original de Mateus, pode ter sido manipulado,
em época muito antiga, a fim de justificar essa doutrina. E digo
isso com base em três constatações ou indícios. Em primeiro
lugar, penso que o texto original devia assemelhar-se ao que está no
evangelho de João (1, 42), onde é narrado o primeiro encontro de
Jesus com Simão e Jesus lhe disse: “tu te chamarás Kefas – que
significa Petrus”. E parava aqui. Possivelmente alguém fez os
acréscimos que constam no evangelho de Mateus, como forma de
justificar biblicamente a doutrina da “chefia”, na época da
polêmica. Em segundo lugar, vejo outro claro indício na expressão
“sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ora, todos sabemos
que Jesus nunca mandou criar uma igreja, o que ele mandou foi que os
apóstolos ensinassem a todos os povos a sua doutrina e os
batizassem. O conceito de igreja foi-se desenvolvendo aos poucos, com
as comunidades (ekklesias) organizadas pelos apóstolos. Esse
linguajar “edificarei a minha igreja” não me parece coerente com
os demais discursos de Cristo, gerando forte suposição de adaptação
textual, numa época em que esta doutrina estava iniciando e
necessitava de fundamentação. Em terceiro lugar, façamos um breve
retrospecto histórico. A polêmica do “primado de Pedro” teve
início lá pelo século IV, tendo sido objeto de inúmeras disputas
durante mais de 500 anos, até explodir no cisma, em 1054. Por outro
lado, os textos bíblicos hoje conhecidos somente foram tornados
oficiais no Concílio de Trento (1545-1563). Ora, nesses 500 anos de
discussões, digamos que tudo era válido para justificar uma posição
política. Daí que eventual manipulação do texto não pode ser
descartada.
Bem, meus amigos, essas reflexões que
faço não têm intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do
sucessor de Pedro, mas são como uma espécie de autocrítica que,
enquanto membros da Igreja Católica, nós podemos lançar na
intenção de uma melhor compreensão do papel das nossas autoridades
hierárquicas. Que o Espírito Santo e o espírito de Pedro iluminem
sempre mais o nosso Papa, para levar adiante a sua difícil
empreitada.
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