COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO
DO TEMPO COMUM – O MAR DA VIDA – 21.06.2015
Caros Confrades,
Neste 12º domingo do tempo comum, a
liturgia nos leva a contemplar a simbologia do mar. Dada a sua
imensidão, a figura do mar gera uma ideia de grande poder; mas ao
mesmo tempo, dadas a sua impetuosidade e sua imprevisibilidade, traz
também a ideia de grande mistério, de grande temor, todas essas
associadas ao seu imensurável potencial de produção de vida e de
alimentos, desde os tempos mais remotos. De acordo com a história
bíblica da criação, o mar vem no segundo lugar de importância
entre as coisas do universo, logo após a luz. A narrativa bíblica
da criação demonstra que, desde tempos muito remotos, a figura do
mar sempre impressionou os seres humanos, seja pelos benefícios que
proporciona, seja também pelos malefícios que muitas vezes causa. O
mar é fonte de vida e de morte, de energia que pode levar à
produção ou à destruição. Considerando que a luz é produzida
fora do nosso planeta, temos que o mar é a força terrestre mais
poderosa, impávida e ao simultaneamente amedrontadora. Vivemos a
nossa vida dentro dele e/ou dependendo dele, seja qual for o sentido
que o consideremos.
Na primeira leitura, retirada do livro
de Jó (38, 8-11), Javeh fala ao Profeta, de dentro da tempestade,
com a sua voz tonitruante: quem fechou o mar com portas, colocando-o
em seus limites e dizendo 'até aqui chegarás, e não além'? Quem,
senão Ele próprio? Essa fala de Javeh se deu no contexto em que Jó
se queixava que Ele o havia abandonado e com isso Javeh vai
demonstrar o tamanho do Seu poder, usando a figura do mar. Ora, se o
mar é tão poderoso e indomável, aquele que tem poder de dominá-lo
é muito mais forte e potente. A grandiosa força que é reconhecida
no mar serve de contraponto para comparação com a potência de
Javeh, que é muito maior. Por mais que Jó não entenda o que se
passa com a sua vida, Javeh lembra o Profeta, com a sua voz de
trovão, que a sua fé deve estar acima e além dos imprevistos dos
acontecimentos, pois o poder divino é quem estabelece o controle
sobre tudo isso. O texto da leitura litúrgica não vai até o fim
desse diálogo entre Javeh e Jó, que é bastante logo, mas para
contextualizar, fui em busca da resposta do Profeta. Depois que Javeh
expõe a Jó muitas demonstrações do seu incalculável poder, o
Profeta finalmente dá-se por convencido e no cap. 40, 4-5, ele ousou
balbuciar: “Sou indigno; como posso responder-te? Ponho a mão
sobre a minha boca. Falei uma vez, mas não tenho resposta; sim, duas
vezes, mas não direi mais nada.” Jó “engole seco as palavras”
que disse e não mais se queixa ao Senhor, aceitando a sua condição
de vida. A pegagogia do mar levou Jó à consciência de si próprio
e lhe rememorou a grandeza do Criador, para que se mantivesse firme
na sua fé.
Na leitura do evangelho de Marcos (4,
35-41), a imagem do mar aparece novamente associada a uma grande
demonstração de poder por parte de Jesus, com o objetivo de
fortalecer-lhes a fé na sua pessoa enquanto Filho de Deus. No final
da tarde, Jesus cansado de mais um dia de pregações e
peregrinações, vendo que a multidão não se dispersava, pediu aos
apóstolos que o levassem para a outra margem do Mar da Galiléia. Na
verdade, não se trata do oceano, o mar comum, trata-se de um grande
lago alimentado pelas águas do rio Jordão, daí o seu nome ser
também Lago de Tiberíades ou Lago de Genesaré. Era ali que os
apóstolos exerciam o seu mister de pescadores, quando foram chamados
por Cristo para a missão. A distância maior de uma margem a outra é
de apenas 13 km, o que não é grande coisa, se compararmos, por
exemplo, com a largura do rio Amazonas, cuja distância entre as
margens chega a 50 km em algumas paragens, a ponto de não ser
possível ver a margem oposta. Nessa escala geográfica, o Mar da
Galiléia não possui uma tal dimensão de poder quanto o oceano, de
modo que se pode até atribuir um certo exagero na descrição do
evangelista Marcos, quando ele diz que “Começou
a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da
barca, de modo que a barca já começava a se encher,
” (4, 37) dando a impressão de que a embarcação corria risco de
afundamento, deixando os passageiros com muito medo. Enquanto isso,
Jesus dormia tranquilamente indiferente àquele perigo.
A narrativa do evangelista tem o claro
objetivo de demonstrar, de um lado, as vacilações na fé dos
apóstolos e, de outro, o poder divino de Jesus. Mesmo que a
magnitude das ondas não fosse do porte de provocar uma real
possibilidade de sossobro, o que está sendo posto em evidência é o
fato de que Jesus tem poder de acalmar o vento e dominar o mar. E
Jesus pergunta: por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?
Propositalmente, o evangelista adiciona um sutil detalhe: após as
ondas acalmarem, os apóstolos perguntam-se entre si: “'Quem
é este, a quem até o vento e o mar obedecem?'
(4, 41) Seguindo a mesma linha de raciocínio da leitura do livro de
Jó, comentada acima, este trecho do evangelho quer chamar a atenção
para a origem divina de Jesus e para o seu poder, que é semelhante
ao poder do Pai, aquele mesmo que falou a Jó no meio da tempestade.
Quem tem poder de estabelecer limites para o mar indomável, senão o
seu Criador? Quem tem poder para acalmar as ondas, senão o Filho do
Criador? Revela-se nessa narrativa, de forma bastante nítida, o
objetivo de provar aos seus leitores que Jesus é o Filho de Deus.
Pois bem. A imagem do barco minúsculo
perdido na imensidão do mar é o retrato da nossa vida em meio ao
turbilhão dos acontecimentos diários, sobre os quais não podemos
interferir e cujo controle escapa às potências do nosso corpo. O
nosso ser humano, ridículo e limitado conforme descrito pelo artista
popular, está totalmente à mercê dessas ondas turbulentas que
sacodem o nosso barco. As dúvidas e incertezas do dia a dia, o risco
e o temor que cotidianamente nos afligem, os percalços e desafios do
viver diário nos lembram constantemente a nossa pequenez e
insignificância. É nesse contexto vital que se constata a
importância da nossa fé. Não aquela fé declarada da boca para
fora, mas a fé que nos fortifica e nos mantém no caminho, apesar de
todas as vicissitudes. Nos dias de hoje, de um modo especial, a
violência urbana é um tormento com o qual temos de conviver, mas
apesar disso e mesmo sabendo disso, não podemos nem devemos nos
esconder ou nos segregar. A conduta oposta seria ainda uma maior
insensatez, ou seja, fazer de conta que nada vai nos afetar, pois a
fé nos defende, e deixar de adotar as necessárias precauções.
Essa temeridade é um daqueles pecados imperdoáveis, sobre os quais
comentamos num domingo recente. A fé responsável exige de nós uma
postura de esclarecido compromisso, de conhecimento da realidade, de
consciência dos riscos e também de seriedade no cumprimento daquilo
que nos compete, cada um fazendo a sua parte pensando não apenas em
si próprio, mas também dando sua contribuição para transformar a
nossa sociedade num mundo mais justo e solidário, mostrando que é
possível viver de forma digna e dignificante.
Esse modelo de vida na fé é o tema da
carta de Paulo aos cristãos de Corinto (2Cor 5, 14-17), onde ele diz
que “se
alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho
desapareceu. Tudo agora é novo.”
Esse “mundo novo” ainda não está totalmente implantado, ainda
se encontra num processo de instalação e será o nosso exemplo de
cristãos, em meio a inúmeras ondas de comportamentos adversos, que
irá contribuir para o seu efetivo fazer acontecer. O grande desafio
que nos é trazido pelo mundo de hoje é esse de ser cristãos,
apesar de todos os apelos contrários. E vejam que nós nem estamos
(graças a Deus) naquela situação dos cristãos dos países de
maioria islâmica, onde alguns radicais literalmente massacram os
crentes, até pelo simples fato de carregarem uma Bíblia. Ainda não
vivemos numa atmosfera de intolerância religiosa, onde ser cristão
pode ser um motivo de condenação à morte. Digo “ainda não”
porque o movimento cristofóbico tem se acentuado tanto nessa última
década, dando sinais de sua presença também no Brasil, de modo que
essas publicações nas redes sociais nos trazem um preocupante em
relação aos nossos filhos e netos. No mundo cada vez mais
secularizado e tendente à intolerância, a liberdade em todos os
níveis, inclusive a liberdade religiosa, é um bem muito precioso
que nós devemos cultivar com nossa palavra e com nosso exemplo,
demonstrando que é possível viver numa sociedade pluralista com
respeito à diversidade. Só assim poderemos navegar com um pouco
mais de segurança no mar da vida.
***
Nenhum comentário:
Postar um comentário