COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
COMUM – 31.01.2016 – O MANDAMENTO MAIOR
Caros amigos,
Neste quarto domingo comum, a liturgia
traz para nossa reflexão o hino da caridade, uma inspirada página
do apóstolo Paulo a Coríntios (1Cor 12,31), interpretando a lição
de Jesus sobre o maior mandamento da Lei. Nas outras leituras, o tema
em destaque é a vocação para a profecia: mesmo antes de nascer, o
profeta já está predestinado a isso. Foi o que testemunhou Jeremias
e foi o que ensinou aquele 'profeta' que falava em nome próprio,
Jesus Cristo.
Nesse antológico texto, que até já
foi transformado em música popular, Paulo foi de uma felicidade
muito grande, ao tecer louvores ao amor, à caridade, aquela ação
humana que foi elevada pela palavra de Cristo a ser o mandamento
maior. Convém, de início, fazer um breve esclarecimento
linguístico, porque amor e caridade não são, em português,
palavras sinônimas e, para melhor entendimento, será necessário
fazer uma análise do original. No texto grego, Paulo usa o vocábulo
“agape”, que é uma das palavras traduzidas por “amor”, mas
como palavra amor é polissêmica em português, para evitar uma
compreensão equivocada do seu sentido, costuma-se traduzir por
'caridade'. Para que fique bem entendido o sentido da palavra
“caridade” aqui nesse contexto, permitam-me informá-los de que,
na língua grega, há três palavras diferentes, que podem ser
traduzidas por “amor” em português. Uma delas é a palavra
“eros” para significar o amor carnal, aquele voltado para a
satisfação dos sentidos corporais, quase sempre numa perspectiva
egoista, individualista e interesseira. Outra é a palavra “filos”,
que tem o sentido de amizade, gostar de algo, tem um significado mais
espiritual, como por exemplo é conhecida a palavra “filos+sofia”
(amor à sabedoria). Por sua vez, a palavra “ágape” é utilizada
para significar o amor doação, desinteressado, amor que quer o bem
do outro e não o seu próprio, daquele que é capaz de tudo para
fazer feliz o seu semelhante. É o amor compartilhado, que se perfaz
na entrega de si e que se plenifica com a felicidade do(a) amado(a).
Como podem ver, não há uma palavra em português que carregue toda
esse conjunto de significados, nem mesmo a palavra 'caridade' tem
essa conotação plena. No entanto, é o vocábulo que mais se
aproxima do significado da palavra grega “agape”, embora na nossa
língua a palavra 'caridade' seja também variadamente polissêmica.
No texto de Coríntios, portanto, Paulo usa a palavra “ágape”,
que é traduzida por amor ou caridade.
Pois bem, no famoso 'hino à caridade',
Paulo adverte para a verdadeira expressão dessa forma de amor, que
não se limita a meras atitudes externas, mas deve unir o interior
com o exterior, para alcançar o seu pleno significado. Se eu falasse
todas as línguas, isto é, se eu fosse um exímio comunicador, mas
sem a caridade, seria igual a uma sineta que toca. Se eu tivesse toda
ciência e toda fé, ou seja, se eu fosse um sábio extraordinário e
um crente ardoroso, mas sem a caridade eu nada seria. Se eu me
desfizesse de todos os meus bens a serviço dos pobres, ou seja, se
eu praticasse a filantropia para ser elogiado pelas pessoas, mas se
não tiver a caridade, de nada isso serve. E por aí segue. Meus
amigos, que extraordinário desafio Paulo põe diante de nós. De
nada valem a nossa devoção, nossos jejuns, nossas obras de
misericórdia, nossa pregação, nossas leituras da Bíblia, nossos
grupos de oração, nossas participações na missa e nos
sacramentos, nosso dízimo pago para o culto divino, nossos trabalhos
pastorais, etc, se tudo isso for uma mera atitude exterior, uma
conduta destinada a receber elogios ou a lograr reconhecimento
social. Se as nossas práticas religiosas não vierem de uma
convicção interior, de um ato original de entrega plena e total do
nosso próprio ser a Deus, de um compromisso firme e permanente de
seguir o ensinamento de Cristo, se tudo o que fizermos como vivência
religiosa tiver como motivação só o cumprimento do dever, a
tradição familiar ou social, se for pelo peso na consciência ao
ver um irmão ou irmã necessitado(a), ou pior ainda, se for para
exibir-se aos outros, estaremos sendo o que Paulo chama de 'címbalo
que tine', ou seja, uma sineta que só faz barulho, um corpo sem
espírito, uma pessoa sem alma, que não funciona por si, mas
manipulado por uma força externa.
E passa ele a discorrer sobre as
qualidades do amor-ágape: “A
caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa,
não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é
interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; não se alegra
com a iniqüidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, crê
tudo, espera tudo, desculpa tudo.
” (1Cor 13, 4-7) Se nós observamos bem, Paulo está descrevendo a
personalidade de Jesus Cristo, está colocando em conceitos aquilo
que Jesus praticou em toda a sua vida e nos deixou como exemplo. Ele
é a 'caridade' (amor-ágape) em pessoa, o modelo acabado e perfeito
desta virtude. Não era à toa que entoávamos com frequência aquela
jaculatória, que todos ainda devem saber de cor: “Deus charitas
est et qui manet in charitate in Deo manet et Deus in eo”. A
caridade é o próprio Deus. Daí porque, Paulo conclui: a caridade
nunca acabará. Todas as profecias, todas as palavras, promessas e
virtudes acabarão, a esperança desaparecerá e a própria fé se
extinguirá um dia, mas a caridade permanecerá para sempre. Fica
fácil de compreender o porquê disso: a caridade é o próprio Deus
e estando na caridade, estamos nele.
Uma das formas de viver esse amor-ágape
é a que encontramos na atividade da profecia. O profeta é uma
pessoa que age motivada exclusivamente pelo amor, porque ele não
profetiza para si, para o bem próprio, mas para o bem dos outros. O
profeta não faz isso para se promover ou para se exibir, mas até
com o sacrifício da própria vida, ele fala o que lhe vem da alma,
expõe o que Deus lhe inspira. A palavra “profeta”, na sua forma
original do grego, já contém esse significado. No grego,
“prophetés” é uma palavra ligada à raiz do verbo “phêmi”,
que significa 'dizer, proclamar'. A palavra 'prophetés' significa
'aquele que fala em nome de alguém', no caso da Bíblia, fala em
nome de Javeh. Jeremias declarou que Javeh revelou a ele que, mesmo
antes de nascer, ele já estava destinado à profecia. Mas também
foi ele o profeta que ousou desafiar Javeh ao dizer: eu não vou mais
falar em teu nome, porque todas as vezes em que faço isso, sou
ameaçado, sou humilhado, sou expulso, não vou mais fazer isso.
Porém, não conseguiu. O próprio Jeremias confessou: eu não
consigo ficar calado, há um fogo abrasador dentro de mim que me
impele a profetizar, mesmo que eu não queira. Foi aí que Javeh o
tranquilizou: “ põe
a roupa e o cinto, levanta e comunica-lhes tudo o que eu mandei dizer
… eu
te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro,
num muro de bronze contra todo o mundo,
” (Jr 1, 18) E Jeremias se enche de coragem e vai cumprir a sua
missão, enfrentando todos os riscos decorrentes dela.
A nossa vocação profética também
nos coloca diante de desafios semelhantes, por isso, o exemplo de
Jeremias é uma motivação para nós. Ai de mim se eu não anunciar
o evangelho, disse Paulo parafraseando Jeremias. (1Cor 9, 16) Cada um
de nós, no exercício da nossa missão de seguidor de Cristo e de
Francisco, deve também sentir dentro de si esse fogo abrasador que
não permite que a nossa voz se cale, que não deixemos passar uma
ocasião para testemunhar a nossa fé, para comunicar aos outros o
ensinamento que recebemos de Cristo. Os profetas de outrora falavam
em nome de Javeh, nós hoje falamos em nome de Cristo, que é a
própria Palavra de Javeh materializada e encarnada, que nos mandou
para continuarmos a sua missão, quando chamou os apóstolos e estes
criaram as primeiras 'ekklesias' (comunidades), através das quais
nós somos hoje chamados ao mesmo apostolado. É por isso que o
modelo de vivência da fé religiosa proposto pela teologia do
Vaticano II não é mais aquele marcado pela introspecção, pela
interioridade, pela fé individualista, atitudes que estavam
representadas numa famosa recomendação dos antigos missionários:
“salva a tua alma”. Nos dias atuais, a teologia entende que a
salvação é um ato coletivo, que a religião deve ser vivida na
comunidade e que aquelas práticas religiosas voltadas para a
interioridade devem ser transmudadas em atitudes concretas, em ações
externas, em práticas solidárias, nas quais se vivencia em
comunidade o amor-ágape, do qual o apóstolo Paulo fala na carta aos
Coríntios. O lema agora não é mais “salva a tua alma”, mas
salva a alma do teu irmão e assim estarás salvando também a tua.
Meus amigos, concluo convidando todos a
meditarem sobre a nossa vivência da vocação profética, à qual
fomos chamados pelo batismo, fortalecida na vivência da fé
comunitária e na partilha caridosa das nossas disponibilidades.
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