domingo, 31 de janeiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO COMUM 31.01.2016 - O MANDAMENTO MAIOR

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – 31.01.2016 – O MANDAMENTO MAIOR

Caros amigos,

Neste quarto domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão o hino da caridade, uma inspirada página do apóstolo Paulo a Coríntios (1Cor 12,31), interpretando a lição de Jesus sobre o maior mandamento da Lei. Nas outras leituras, o tema em destaque é a vocação para a profecia: mesmo antes de nascer, o profeta já está predestinado a isso. Foi o que testemunhou Jeremias e foi o que ensinou aquele 'profeta' que falava em nome próprio, Jesus Cristo.

Nesse antológico texto, que até já foi transformado em música popular, Paulo foi de uma felicidade muito grande, ao tecer louvores ao amor, à caridade, aquela ação humana que foi elevada pela palavra de Cristo a ser o mandamento maior. Convém, de início, fazer um breve esclarecimento linguístico, porque amor e caridade não são, em português, palavras sinônimas e, para melhor entendimento, será necessário fazer uma análise do original. No texto grego, Paulo usa o vocábulo “agape”, que é uma das palavras traduzidas por “amor”, mas como palavra amor é polissêmica em português, para evitar uma compreensão equivocada do seu sentido, costuma-se traduzir por 'caridade'. Para que fique bem entendido o sentido da palavra “caridade” aqui nesse contexto, permitam-me informá-los de que, na língua grega, há três palavras diferentes, que podem ser traduzidas por “amor” em português. Uma delas é a palavra “eros” para significar o amor carnal, aquele voltado para a satisfação dos sentidos corporais, quase sempre numa perspectiva egoista, individualista e interesseira. Outra é a palavra “filos”, que tem o sentido de amizade, gostar de algo, tem um significado mais espiritual, como por exemplo é conhecida a palavra “filos+sofia” (amor à sabedoria). Por sua vez, a palavra “ágape” é utilizada para significar o amor doação, desinteressado, amor que quer o bem do outro e não o seu próprio, daquele que é capaz de tudo para fazer feliz o seu semelhante. É o amor compartilhado, que se perfaz na entrega de si e que se plenifica com a felicidade do(a) amado(a). Como podem ver, não há uma palavra em português que carregue toda esse conjunto de significados, nem mesmo a palavra 'caridade' tem essa conotação plena. No entanto, é o vocábulo que mais se aproxima do significado da palavra grega “agape”, embora na nossa língua a palavra 'caridade' seja também variadamente polissêmica. No texto de Coríntios, portanto, Paulo usa a palavra “ágape”, que é traduzida por amor ou caridade.

Pois bem, no famoso 'hino à caridade', Paulo adverte para a verdadeira expressão dessa forma de amor, que não se limita a meras atitudes externas, mas deve unir o interior com o exterior, para alcançar o seu pleno significado. Se eu falasse todas as línguas, isto é, se eu fosse um exímio comunicador, mas sem a caridade, seria igual a uma sineta que toca. Se eu tivesse toda ciência e toda fé, ou seja, se eu fosse um sábio extraordinário e um crente ardoroso, mas sem a caridade eu nada seria. Se eu me desfizesse de todos os meus bens a serviço dos pobres, ou seja, se eu praticasse a filantropia para ser elogiado pelas pessoas, mas se não tiver a caridade, de nada isso serve. E por aí segue. Meus amigos, que extraordinário desafio Paulo põe diante de nós. De nada valem a nossa devoção, nossos jejuns, nossas obras de misericórdia, nossa pregação, nossas leituras da Bíblia, nossos grupos de oração, nossas participações na missa e nos sacramentos, nosso dízimo pago para o culto divino, nossos trabalhos pastorais, etc, se tudo isso for uma mera atitude exterior, uma conduta destinada a receber elogios ou a lograr reconhecimento social. Se as nossas práticas religiosas não vierem de uma convicção interior, de um ato original de entrega plena e total do nosso próprio ser a Deus, de um compromisso firme e permanente de seguir o ensinamento de Cristo, se tudo o que fizermos como vivência religiosa tiver como motivação só o cumprimento do dever, a tradição familiar ou social, se for pelo peso na consciência ao ver um irmão ou irmã necessitado(a), ou pior ainda, se for para exibir-se aos outros, estaremos sendo o que Paulo chama de 'címbalo que tine', ou seja, uma sineta que só faz barulho, um corpo sem espírito, uma pessoa sem alma, que não funciona por si, mas manipulado por uma força externa.

E passa ele a discorrer sobre as qualidades do amor-ágape: “A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa, não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; não se alegra com a iniqüidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, crê tudo, espera tudo, desculpa tudo. ” (1Cor 13, 4-7) Se nós observamos bem, Paulo está descrevendo a personalidade de Jesus Cristo, está colocando em conceitos aquilo que Jesus praticou em toda a sua vida e nos deixou como exemplo. Ele é a 'caridade' (amor-ágape) em pessoa, o modelo acabado e perfeito desta virtude. Não era à toa que entoávamos com frequência aquela jaculatória, que todos ainda devem saber de cor: “Deus charitas est et qui manet in charitate in Deo manet et Deus in eo”. A caridade é o próprio Deus. Daí porque, Paulo conclui: a caridade nunca acabará. Todas as profecias, todas as palavras, promessas e virtudes acabarão, a esperança desaparecerá e a própria fé se extinguirá um dia, mas a caridade permanecerá para sempre. Fica fácil de compreender o porquê disso: a caridade é o próprio Deus e estando na caridade, estamos nele.

Uma das formas de viver esse amor-ágape é a que encontramos na atividade da profecia. O profeta é uma pessoa que age motivada exclusivamente pelo amor, porque ele não profetiza para si, para o bem próprio, mas para o bem dos outros. O profeta não faz isso para se promover ou para se exibir, mas até com o sacrifício da própria vida, ele fala o que lhe vem da alma, expõe o que Deus lhe inspira. A palavra “profeta”, na sua forma original do grego, já contém esse significado. No grego, “prophetés” é uma palavra ligada à raiz do verbo “phêmi”, que significa 'dizer, proclamar'. A palavra 'prophetés' significa 'aquele que fala em nome de alguém', no caso da Bíblia, fala em nome de Javeh. Jeremias declarou que Javeh revelou a ele que, mesmo antes de nascer, ele já estava destinado à profecia. Mas também foi ele o profeta que ousou desafiar Javeh ao dizer: eu não vou mais falar em teu nome, porque todas as vezes em que faço isso, sou ameaçado, sou humilhado, sou expulso, não vou mais fazer isso. Porém, não conseguiu. O próprio Jeremias confessou: eu não consigo ficar calado, há um fogo abrasador dentro de mim que me impele a profetizar, mesmo que eu não queira. Foi aí que Javeh o tranquilizou: “ põe a roupa e o cinto, levanta e comunica-lhes tudo o que eu mandei dizer … eu te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o mundo, ” (Jr 1, 18) E Jeremias se enche de coragem e vai cumprir a sua missão, enfrentando todos os riscos decorrentes dela.

A nossa vocação profética também nos coloca diante de desafios semelhantes, por isso, o exemplo de Jeremias é uma motivação para nós. Ai de mim se eu não anunciar o evangelho, disse Paulo parafraseando Jeremias. (1Cor 9, 16) Cada um de nós, no exercício da nossa missão de seguidor de Cristo e de Francisco, deve também sentir dentro de si esse fogo abrasador que não permite que a nossa voz se cale, que não deixemos passar uma ocasião para testemunhar a nossa fé, para comunicar aos outros o ensinamento que recebemos de Cristo. Os profetas de outrora falavam em nome de Javeh, nós hoje falamos em nome de Cristo, que é a própria Palavra de Javeh materializada e encarnada, que nos mandou para continuarmos a sua missão, quando chamou os apóstolos e estes criaram as primeiras 'ekklesias' (comunidades), através das quais nós somos hoje chamados ao mesmo apostolado. É por isso que o modelo de vivência da fé religiosa proposto pela teologia do Vaticano II não é mais aquele marcado pela introspecção, pela interioridade, pela fé individualista, atitudes que estavam representadas numa famosa recomendação dos antigos missionários: “salva a tua alma”. Nos dias atuais, a teologia entende que a salvação é um ato coletivo, que a religião deve ser vivida na comunidade e que aquelas práticas religiosas voltadas para a interioridade devem ser transmudadas em atitudes concretas, em ações externas, em práticas solidárias, nas quais se vivencia em comunidade o amor-ágape, do qual o apóstolo Paulo fala na carta aos Coríntios. O lema agora não é mais “salva a tua alma”, mas salva a alma do teu irmão e assim estarás salvando também a tua.

Meus amigos, concluo convidando todos a meditarem sobre a nossa vivência da vocação profética, à qual fomos chamados pelo batismo, fortalecida na vivência da fé comunitária e na partilha caridosa das nossas disponibilidades.

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domingo, 24 de janeiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - AUTOAPRESENTAÇÃO - 24.01.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 24.01.2016 – AUTOAPRESENTAÇÃO

Caros Leitores,

A liturgia deste 3º domingo comum traz um dos textos mais significativos para o reconhecimento de Jesus Cristo como Filho de Deus. Em sua costumeira modéstia e sempre falando por metáforas ou parábolas, raras vezes Jesus se referiu diretamente à sua pessoa como sendo aquele que as escrituras anunciaram. Ao concluir a leitura do texto de Isaías (61, 1), ele complementou: hoje se cumpriu isso que acabastes de ouvir. Mas ele estava na sinagoga de Nazaré, sua cidade natal, e ali todos o conheciam, assim como conheciam seus pais e familiares, então ninguém levou a sério o que ele falou e a sua autoapresentação não surtiu efeito.

Mas a primeira leitura, extraída do livro de Neemias (8, 2-10), contém também um texto interessante que relata uma atividade do sacerdote e escriba Esdras lendo e explicando ao povo a Lei (Torah), em linguagem acessível, de modo que todos ficaram atentos desde o amanhecer até o meio dia e alguns até se emocionaram, chegando às lágrimas. Se observarmos o contexto histórico, iremos compreender melhor o motivo de tanta emoção: Neemias foi um governante que trabalhou na reconstrução das muralhas de Jerusalém, após o retorno dos hebreus do exílio da Babilônia. Naquela época, poder ouvir a leitura da Torah em Jerusalém era, para os hebreus recém-retornados do exílio, a realização de um sonho que eles acalentaram durante muito tempo e esperaram muito ansiosamente por ele. Voltar a Jerusalém já era, por si só, uma emoção muito forte e poder celebrar seus cerimoniais na cidade reconstruída era algo ainda mais emocionante. Daí porque tanto o governador Neemias quanto o sacerdote Esdras falavam ao povo: “não fiqueis tristes nem choreis”, porque todo o povo chorava ao ouvir a leitura. E o governador instruiu o povo a banquetear-se naquele dia, porque aquela era uma ocasião abençoada: “'Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor
'.” (8, 10) Um detalhe curioso que chama a atenção nesse texto é que, costumeiramente, os hebreus realizavam suas cerimônias religiosas ao entardecer (por do sol), mas neste caso específico, o ato se deu na parte da manhã (do amanhecer até o meio dia), sugerindo que se tratava de uma celebração não rotineira, em horário não habitual, para comemorar a reconstrução do muro. Na sequência desse texto, diz o escritor sagrado que o povo ergueu cabanas na praça, de acordo com a tradição mais antiga dos hebreus, e habitaram nelas por sete dias, dando origem a uma festa ainda hoje celebrada (festa dos tabernáculos), uma das três mais importantes da religião judaica.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (ICor 12, 12-30), o Apóstolo apresenta outra versão da sua doutrina sobre os modos de agir do Espírito Santo, desta vez através da imagem do corpo na sua relação com os membros (o corpo místico). “Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo. ” (12,27) A dialética do corpo e dos membros aponta para a diversidade dos dons com os quais são dotadas as pessoas da comunidade, o que as torna diferentes umas das outras, no entanto, essas diferenças não isolam as pessoas, mas as complementam. E cada uma delas vai agir de acordo com o que o Espírito a inspira: “De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito. ” (12, 13) Assim como há diferenças de etnias ou de classes sociais na sociedade estatal, também na comunidade cristã nem todos são iguais, pois há diferentes ministérios: “em primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois, outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção, dom de línguas.” (12, 28) Essas diferenças, porém, não devem causar dissensões dentro da comunidade, porque todas elas são formas variadas de ação do mesmo Espírito. E assim como, no corpo, não há membros mais honrosos ou decentes do que outros, pois todos detém igual importância e honorabilidade, assim também entre os fiéis não deve haver inveja, porque uns têm o dom da profecia, enquanto outros tem o dom para o governo e a direção. Com efeito, não poderiam ser todos apóstolos, todos profetas, todos dirigentes, todos intérpretes, então essa diversidade é que produz a riqueza e a complementaridade recíproca, do mesmo modo como os órgãos corporais formam sistemas e se harmonizam. Podemos ver, nessa visão pedagógica paulina, que ele antecipou em vários séculos a teoria dos sistemas, que só surgiu cientificamente no século XIX. Nessa visão teológica de Paulo, o Espírito é o ponto de referência comum, para o qual todos os “sistemas” particulares convergem.

O texto litúrgico escolhido para a leitura do evangelho é da autoria de Lucas e contém duas notas bastante significativas para a nossa informação. Primeiro, no prólogo, ele afirma que “muitas pessoas” já escreveram sobre os acontecimentos que se realizaram entre nós, relatados por aqueles que foram testemunhas oculares, por isso também ele, Lucas, após meditar bastante, decidiu escrever a sua versão. Esse comentário traz, nas entrelinhas, a informação de que havia numerosos escritos acerca de Jesus, de seus ensinamentos, de seus feitos miraculosos, os quais teriam sido resumidos ou compilados nos evangelhos oficiais que hoje temos. Lucas diz que resolveu escrever “de modo ordenado”, deixando-nos entender que os outros textos eram dispersos, ou talvez eram textos diversos contendo as mais diversas histórias e testemunhos. Daí dizer-se que os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são “sinóticos”, ou seja, reuniões de textos diversos reescritos e adaptados por eles. Obviamente, cada evangelista utilizou esses textos de modo pessoal e acrescentou suas próprias notas ou comentários. No caso de Lucas, sabe-se que ele incluiu muitas informações colhidas de sua convivência com Maria, que não haviam sido escritas por ninguém, mas ele as tinha em primeira mão.

Em seguida, o texto da leitura dá um salto para o capítulo 4, relatando a ida de Jesus à sinagoga de sua cidade natal, Nazaré, num dia de sábado, para o culto regular. A essas alturas, Jesus já era famoso, o milagre das bodas de Caná havia sido bastante comentado e Jesus já havia pregado nas sinagoras de outras cidades da Galileia, causando admiração. Mas ali estava ele em Nazaré, onde as pessoas conheciam a sua origem, seus pais e familiares, todos sabiam que ele não era um escriba ou um levita, muito menos um mestre da Lei. Mas a sua fama já era conhecida e ele se apresentou para fazer a leitura, provavelmente, ele pediu o livro de Isaías, pois sabemos, através de outras passagens, que esse era o Profeta preferido dele. Jesus escolheu deliberadamente o cap. 61, onde diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres.” Jesus conhecia o texto, ele não abriu casualmente nessa passagem, ele fez de propósito, ele queria dizer aos presentes quem ele realmente era. Diz o escritor sagrado que, após ter lido, ele se sentou e todos ficaram olhando para ele. Então, ele se declarou abertamente: o Profeta estava falando sobre mim.

O texto litúrgico pára por aqui, mas o discurso de Jesus não se encerrou com isso. Aquelas pessoas tinham ouvido falar dos milagres que ele havia feito em outras cidades e, certamente, esperavam que ele fizesse ali uma “demonstração”, quem sabe, até pediram isso, porque as palavras posteriores de Jesus foram muito ríspidas com os presentes, a ponto de eles o expulsarem da cidade e o levarem até uma montanha, de onde iriam precipitá-lo, de tão irritados que ficaram. Foi nessa ocasião que Jesus disse: nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Aqueles conterrâneos de Jesus, certamente, o provocaram, talvez prevalecendo-se do fato de serem “velhos conhecidos”, tentando receber dele um tratamento privilegiado. Porém, ele quis demonstrar que a sua missão se dirigia a todos sem distinção e, sobretudo, aos mais necessitados, tal como predissera o Profeta. Se trouxermos esse fato para os dias de hoje, podemos observar que algumas pessoas tentam se utilizar da religião para lograr proveito pessoal, promoção social, ações interesseiras. Jesus está ensinando que a fé não se presta para isso, está acima de tudo isso. Não é pelo número de missas assistidas ou pela quantidade de terços rezados que alguém deverá se considerar mais merecedor do que outrem que não frequenta a missa nem reza o terço. Deus valida o que vai no íntimo de cada um, não aquilo que transparece externamente, muitas vezes sem a necessária convicção.

Que o Divino Mestre nos afaste de praticar uma religião de fachada e nos inspire a prática da fé verdadeira e coerente.

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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - 17.01.2016 - A DIVERSIDADE DOS DONS

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM – 17.01.2016 – A DIVERSIDADE DOS DONS

Caros Leitores,

A liturgia deste 2º domingo comum destaca dois temas de grande significado: o consórcio entre Javeh e Jerusalém, que se restabelece após o cativeiro da Babilônia, e é a prefiguração vetero testamentária do enlace amoroso entre Cristo e a Igreja, que se consolidou no Novo Testamento. No evangelho, o episódio das Bodas de Caná retoma a imagem do casamento como a grande festa da família e da sociedade, prestigiada pela primeira demonstração pública do poder miraculoso de Jesus . O apóstolo Paulo, de forma didática e eloquente, ensina as diferentes formas de atuação do Espírito Santo entre os crentes, ilustrando a diversidade dos dons que ele inspira nos fiéis.

Na primeira leitura (Is 62, 1-5 [deutero Isaías]), Javeh fala pela boca do Profeta, enaltecendo a glória de Jerusalém, por quem ele declara a sua predileção: “teu nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-Casada,pois o Senhor agradou-se de ti e tua terra será desposada. Assim como o jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a noiva é a alegria do noivo, assim também tu és a alegria de teu Deus.” Ao retornarem da Babilônia, os hebreus se dedicam à reconstrução de Jerusalém, adornando-a para o Senhor, assim como a noiva se enfeita para encontrar-se com o noivo. Javeh não descansará enquanto não surgir nela a Justiça, enquanto não se acender nela a tocha da salvação. Importa destacar que, durante o tempo em que os hebreus ficaram cativos na Babilônia, a região da Galiléia foi ocupada por povos de diversas etnias, que tentavam escapar do império assírio. Posteriormente, com a vitória de Ciro, tendo sido o império assírio dominado pelos persas, aqueles povos não retornaram para os seus locais de origem e formavam um conglomerado altamente disperso, um amontoado de línguas, costumes, religiões, culturas, uma população pobre e marginalizada. Então, além do trabalho material de reconstrução da cidade destruída, os hebreus retornados do cativeiro tiveram de enfrentar também essa situação social do encontro com povos diversos, que não conheciam a importância de Jerusalém para o judaísmo. A imagem do casamento tinha, portanto, também essa finalidade de transmitir para os estrangeiros um pouco da história do povo hebreu e sua relação com Javeh.

A liturgia prossegue com o tema do casamento no evangelho de João (Jo 2, 1-11), abordando o conhecido episódio das Bodas de Caná. O evangelista não teve a preocupação de mencionar os nomes dos nubentes, porém deviam ser pessoas próximas da família de José, talvez parentes, visto que Maria também estava presente, assim como os discípulos de Jesus. Aquela foi a oportunidade para que Jesus iniciasse a sua pregação pública, fazendo a demonstração do seu poder divino. Esse episódio é relatado apenas pelo evangelista João, o qual certamente estava ali presente também. Há uma tradição que afirma ser o evangelista Marcos um dos servos que encheu as vasilhas de água, que depois foi transformada em vinho, porém eu presumo que se tal tivesse ocorrido, Marcos certamente teria inserido esse fato no seu texto. Segundo a interpretação generalizada dos biblistas, o fato de ter Jesus escolhido iniciar sua atividade pública numa cerimônia de casamento, significa uma tácita aprovação do matrimônio como instituição aprovada por Deus. Com toda certeza, isso não foi mera casualidade, porque em toda a sua atividade de pregador, Jesus utilizou-se dos caminhos culturais do povo hebreu para, através destes, ensinar a sua doutrina. Desse modo, a sua presença naquele evento, a sua forma de agir e o impacto causado pela ocorrência entre os presentes tiveram uma consequência bastante significativa. Nas festas de casamento daquele tempo, havia sempre muitos convidados, inclusive pessoas de outras localidades, como sói acontecer também nos dias de hoje. Então, aquele fato extraordinário foi espalhado por muitos lugares, pelo testemunho dos inúmeros presentes.

Um detalhe intrigante no texto de João, certamente não casual, é o linguajar de Jesus, ao responder à sua mãe, quando ela foi dizer a ele que o vinho havia acabado. A tradução da CNBB até disfarça um pouco a forma rude da fala de Jesus (Mulher, por que dizes isto a mim?) Mas o texto grego, traduzido por São Jerônimo, é mais direto: Mulher, o que eu e tu temos com isso? (Quid mihi et tibi est, mulier?) E o dado mais curioso: Jesus não chama “mãe” e sim “mulher”. Há dois momentos no evangelho em que Jesus se refere a Maria com a expressão “mulher”: nesse caso de Caná e na cruz, quando a confia aos cuidados de João. Exatamente no início e no final de sua vida de pregador. O simbolismo desse detalhe referido por João deve ser, provavelmente, para indicar que, nesse momento, Jesus estava falando como Filho de Deus, destacando a sua natureza divina, e não propriamente com o seu ser humano. E tanto Maria entendeu isso que não se intimidou com a forma aparentemente grosseira com a qual Jesus a ela se dirigiu e simplesmente disse aos empregados: façam tudo o que ele disser. Maria tinha consciência do seu papel e, sobretudo, tinha uma fé acima de qualquer adversidade. E também, nesse momento, ela deve ter sido instruída pelo Espírito Santo, para saber o momento de agir e a forma dessa ação. Não foi, com toda certeza, uma expressão casual e despropositada do evangelista João. Poder-se-ia até supor que seria uma questão de tradução, mas não foi isso, pois João escreveu o seu texto em grego e a palavra escrita é “gýnai”, que significa literalmente “mulher”.

E aqui podemos passar para a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 12, 4-11), na qual ele se reporta às diversas formas de atuação do Espírito. Há uma diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Paulo captou e formulou, de forma profunda e acertada, a doutrina sobre os variados modos de agir do Espírito na comunidade cristã, todas elas em vista do bem comum. Uns têm o dom da sabedoria, outros têm o dom da ciência, outros têm o dom da fé; a uns, é dado o poder de fazer milagres, a outros, o poder de fazer curas; outros são capazes de falar línguas diversas, interpretar palavras, profetizar... tudo isso no mesmo Espírito. Esse texto de Paulo é largamente citado pelos grupos do moderno pentecostalismo, para fundamentar diversas tendências (carismas) religiosos. Há os que se permitem "falar" palavras incompreensíveis, caricaturando o "dom das línguas", como se fosse esse o sentido de falar "línguas estranhas". De fato, o termo "estranho" nesse contexto nada tem a ver com expressões desconexas e vazias de significado, mas tem o sentido de "línguas diversas" (em grego, géni glósson; em latim, genera linguarum). No meu entendimento, Paulo estava se referindo a um fenômeno similar ao ocorrido logo após Pentecostes, quando Pedro fez uma pregação em aramaico e os ouvintes, oriundos de regiões e falantes de linguagens diversas, ouviram o seu discurso, cada qual, como se Pedro estivesse falando em sua própria língua.

Outra expressão desse texto que é também objeto de compreensão imprópria é quando Paulo fala que o Espírito confere o poder da cura e de fazer milagres, o que poderia ser até uma redundância, porque curar (nesse sentido) já seria fazer um milagre. Contudo, examinando o texto original, verificamos que não é bem assim. As expressões são: karísmata iamáton (São Jerônimo traduziu por "gratia sanitatum", ou seja, o carisma medicinal) e energýmata dynámeon (traduzido por "operatio virtutum", ou seja, realização de maravilhas). Podemos dizer que as nossas rezadeiras do interior e os que administram medicamentos tirados de vegetais têm o carisma medicinal, porque não estudaram a técnica médica, no entanto, possuem a intuição da medicina. De modo semelhante, a ação humana organizada e bem intencionada também produz maravilhas. Há uma tendência comum de mistificar os dons do Espírito, porém penso que devemos procurá-los no nosso dia a dia, nas nossas atitudes rotineiras, nos nossos empreendimentos solidários, na força que é capaz de unir as pessoas em torno de uma causa comum. E mais: que ninguém se sinta desmerecido, porque não percebe em si esses dons extraordinários do Espírito, pois eles acontecem muitas vezes sem que os percebamos. E eu me arrisco a dizer que aqueles que se autoproclamam detentores desses carismas não passam de embusteiros. Desses, temos inúmeros exemplos.

O ensinamento de Paulo deve ser compreendido no sentido da onipresença do Espírito em tudo aquilo que realizamos com fé, com reta intenção, com o coração desapegado. Ninguém precisa sair do seu cotidiano para ser contemplado com essa assistência contínua e extraordinária do Espírito, porque ele faz morada dentro de nós, desde que recebemos os sacramentos da iniciação cristã. Podemos até não perceber a sua atuação, mas em tudo o Espírito se faz presente.

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domingo, 10 de janeiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SOLENIDADE DO BATISMO DO SENHOR - 10.01.2016

COMENTARIO LITURGICO – SOLENIDADE DO BATISMO DO SENHOR – 10.01.2016

Caros Leitores,

O calendário litúrgico celebra hoje a festa do Batismo do Senhor. Esta cerimônia, realizada no rio Jordão, representa o início da vida missionária de Jesus. Igual a todos os bons judeus, Jesus sempre cumpriu os rituais próprios do judaísmo: comparecimento à sinagoga, jejuns, páscoa, tabernáculos, a observância da lei mosaica. O batismo não fazia parte, propriamente, da Lei, mas passou a ser um ritual de transição entre a antiga lei e a lei nova, através da pregação de João, o último profeta do Antigo Testamento. João conclamava todos os judeus à metanóia (mudança de pensamento – conversão) e ao arrependimento, de modo que o símbolo da adesão a este movimento era o fato de alguém apresentar-se para receber o batismo. Sabemos que, na verdade, Jesus não precisava ser batizado, pois o batismo se destina ao perdão dos pecados, mas Ele quis cumprir todo o protocolo e foi nessa ocasião que, pela primeira vez, ocorreu a manifestação da Trindade divina.

O tema do batismo sempre despertou severas polêmicas entre a Igreja Católica e as demais igrejas cristãs, por diversas razões históricas, que todos conhecemos. Penso que as querelas mais significativas se concentram em dois pontos: 1. o batismo de crianças recém-nascidas, fato que não ocorria no início do cristianismo, tendo sido introduzida como prática muito tempo depois; 2. o ritual do batismo por mera aspersão (derramamento de pouca água na cabeça do batizando) e não por imersão (mergulho na água).

É fato que o batismo operado por João Batista era feito por imersão no rio Jordão. Porém a questão a ser debatida é saber se essa é a única forma de realizar o batismo. Para melhor esclarecimento do tema, iniciemos com uma análise gramatical do vocábulo “batizar”, derivado do verbo grego BAPTIZÔ, que significa mergulhar, submergir, mas também lavar. Por exemplo, na antiguidade, batizar era uma espécie de suplício, que consistia em mergulhar um condenado até ele morrer sem fôlego. Tinha, portanto, o sentido de imersão. Mas em Lucas (11, 38), no episódio em que os fariseus se admiraram porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer, a frase latina é “quare non baptizatus esset” e a frase grega é “ou proton ebaptiste”, uso gramatical que indica o sentido do verbo “baptizô” como “lavar”. Para lavar as mãos, às vezes, as mergulhamos na água, mas muitas vezes apenas derramamos água sobre elas e assim o verbo “baptizô” não tem como significado único o de imergir. E podemos ainda levar em consideração o aspecto da praticidade. Como batizar por imersão uma pessoa que esteja enferma, sem correr o risco de piorar sua condição de saúde? E mesmo no caso de pessoas sadias, o ritual seria extremamente incômodo pela necessidade de ter de realizar o batismo nos rios, lagoas, açudes, etc., ou em tanques de água preparados dentro dos templos, o que (ao meu ver) desvirtua o sentido da imersão de acordo com o batismo de Jesus, que ocorreu numa fonte de água natural. Se é para seguir o ritual, então, que se o siga por completo.

Em relação ao aspecto doutrinário, o batismo por imersão era a prática dominante no Antigo Testamento e o próprio Jesus se submeteu a ela. Contudo, no Novo Testamento, há diversos relatos sobre o batismo que sugerem uma forma diferente da imersão, como por exemplo, em Atos 16, 33, quando Paulo batizou pessoas na prisão. Certamente ali não havia um local com água para imersão. O próprio batismo de Paulo por Ananias (Atos 9, 18), realizado na casa de Judas, não deve ter sido por imersão. Do mesmo modo, o episódio ocorrido após Pentecostes (Atos 2, 37-41), quando cerca de 3.000 pessoas foram batizadas após a pregação de Pedro, não deve ter sido por imersão. De qualquer modo, as duas formas (imersão e aspersão) eram conhecidas desde os tempos cristãos primitivos e ambas eram utilizadas circunstancialmente. Mas a oficialização do batismo infantil e por aspersão ocorreu após as disputas com Lutero (que não o aceitava), no século XVI. A Igreja adotou a forma de aspersão e as razões teológicas para justificar isso são duas fundamentais: 1. o fato de que a pessoa deve ser purificada do pecado (no caso da criança, o pecado original) o quanto antes possível, ou seja, logo após ao nascer, sem esperar a idade adulta; 2. embora a criança de pouca idade não saiba o que está ocorrendo, a Igreja age como mãe amorosa e faz isso por ser o melhor para o pequeno fiel, assim como toda mãe só quer o bem dos filhos, ficando com os pais e padrinhos a responsabilidade de ensinar a criança e conscientizá-la, quando tiver entendimento.

Devemos ainda considerar a hipótese da carência da água em quantidade suficiente para a imersão, como ocorre, por exemplo, em certas localidades nordestinas e em outros locais do mundo, onde a água é um bem escasso. Além disso, se as duas formas de realizar o ritual foram sempre aceitas na antiguidade (imersão ou aspersão), o simples fato de que o batismo de Jesus foi por imersão não deve ser adotado como padrão, de modo que a outra forma deva ser considerada inválida. Além do mais, eu diria que o modo de realizar o batismo, se por imersão ou por aspersão, não é isso que realmente importa, e sim a fé que deve motivar o fiel a receber o batismo. No caso de crianças pequenas, a fé é dos adultos que as levam a batizar e que se comprometem a catequizar o batizado na mesma fé que professam.

Atendo-nos agora às leituras litúrgicas de hoje, o evangelho de Mateus (3, 13-17) relata o batismo de Jesus por João, no rio Jordão. Evidentemente, Jesus não precisava ser batizado e o próprio João se recusou, conforme relata Mateus (13, 14): 'Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?' Porém, Jesus o persuadiu a fazer igual como fazia aos outros, e assim ele fez. Na verdade, Jesus pediu para ser batizado por João, diante da relutância deste. Com este ato, Jesus estava ensinando o valor do batismo e consagrando a sua importância para o cristão. Podemos concluir que Jesus batizou-se não para converter-se e purificar-se, porque já era totalmente puro, mas para purificar as águas do Jordão, e nestas, simbolicamente, abençoar todas as águas da terra, para conferir a elas o poder de nos purificar pelo batismo na fé da sua doutrina.

Além disso, o batismo de Jesus foi o primeiro momento em que se manifestou publicamente a Trindade divina, quando “o céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e vindo pousar sobre ele. E do céu veio uma voz... ” (Mt 13, 16), isto é, o início da missão pública de Jesus foi oficialmente homologado pelas três pessoas divinas. Obviamente, naquele momento, as pessoas que presenciaram o fato não compreenderam o que havia acontecido, mas posteriormente, após a ressurreição de Jesus, quando as comunidades dos primeiros fiéis fizeram a rememoração dos acontecimentos da Sua vida, de onde provêm os textos primitivos que deram origem aos evangelhos, puderam compreender o alcance dessa sublime manifestação trinitária.

Uma curiosidade que releva tratar aqui é que, do ponto de vista da fé, a data do batismo do cristão deveria ser comemorada assim como se comemoram as datas natalícias, porque essa data representa o nascimento para a comunidade eclesial. Com certeza, todos se recordam de que, desde quando recebíamos a batina no seminário, nós não comemorávamos mais o dia do aniversário, mas o dia do onomástico, isto é, o dia do santo padroeiro do seu nome, numa clara referência a um novo nascimento, que ocorria com a vestição religiosa. Essa mesma ideia bem que poderia ser adotada em relação à data do batismo. Porém, o que mais comumente ocorre é que a maioria dos cristãos não sabe ou não se recorda o dia do seu batismo, como se não atribuísse importância a essa data. As Paróquias mesmo não estimulam os fiéis a essa lembrança, no que fariam muito bem se assim procedessem.

Para finalizar, gostaria de ponderar que o batismo não deve ser um fato longínquo e esquecido na nossa caminhada existencial, mas um fato a ser testemunhado diuturnamente, na nossa vivência de cristãos, seja na família, seja no trabalho, nas relações familiares, nas amizades, na vida social em geral, através do nosso comportamento de pessoas engajadas e comprometidas com a fé assumida no batismo. Que o divino Espírito nos assista constantemente no exercício dessa missão.


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domingo, 3 de janeiro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 03.01.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 03.01.2016

Caros Leitores:

Neste domingo, celebra-se a festa litúrgica da Epifania do Senhor, popularmente conhecida como Dia dos Reis Magos, uma tradição que desvia a atenção das pessoas da verdadeira festividade. A epifania designa a universalidade da salvação trazida por Cristo, representada na presença das autoridades vindas de terras orientais, portanto, de fora do território judaico. O texto bíblico não informa a cidade de onde eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. Também não afirma que eram reis, sendo essa designação creditada a tradições muito antigas. Alguns estudos associam a figura da estrela com o cometa de Halley ou talvez um outro astro errante no espaço sideral, contudo não há conclusões definitivas. Este fato é relatado apenas pelo evangelista Mateus, por isso há quem afirme que não é um acontecimento real, mas trata-se de uma história composta pelo evangelista, com o objetivo de enfatizar a profecia de Miquéias e demonstrar a origem familiar de Cristo no clã do rei Davi. Todas, porém, são opiniões sem as necessárias evidências.

O evangelho de Mateus fala em 'magos do Oriente', mas também não se deve entender esta palavra no sentido que ela tem hoje. Conforme registros históricos atribuídos a Heródoto, os magos seriam sacerdotes eruditos de uma religião que teria existido na região da Mesopotâmia, que hoje corresponde ao Irã ou Iraque. Essa religião era, na verdade, uma forma arcaica da ciência astronômica e esses sacerdotes eram pessoas que estudavam os livros sagrados e costumavam observar os astros no céu, ou seja, eram uma espécie de antigos astrônomos. Com isso se explica o fato de que notaram uma “estrela” diferente e tentaram interpretá-la, com o conhecimento que eles tinham de antigas escrituras. Eles eram provavelmente sacerdotes do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e originária dessa mesma região. Bem, o modo como este fato aconteceu, assim como as motivações envolvidas, fazem parte do universo das controvérsias históricas, sendo mais amparado por antigas tradições do que por documentos escritos.

Sob o aspecto litúrgico, a festa da Epifania, nas Igrejas católicas gregas, é também a celebração do Natal, pois eles não comemoram o natal em 25 de dezembro, como na Igreja católica romana. Aliás, este foi um dos motivos que levou ao cisma, em 1054, porque não houve acordo acerca desse e de outros pontos de discussão. Os orientais acusaram os europeus de terem-se rendido ao poder do imperador romano, que estabeleceu a data e a forçou autoritariamente aos bispos ocidentais a aceitá-la. Com isso, nós concluímos que a festa da Epifania é mais antiga do que a celebração do Natal, como nós temos na Igreja romana; também concluímos que as Igrejas orientais celebram em conjunto as duas festas: o Natal e a Epifania, porque na verdade, elas são uma festa só.

Com efeito, o termo grego “epiphania” é o substantivo derivado do verbo “epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se. A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu efetivamente no Natal. Ao separar as datas, e portanto, a comemoração em duas festas, a Igreja romana celebra dois Natais: um em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo e outro, nesta data, o Natal – manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na pessoa dos “magos” orientais. O dirigente romano em Jerusalém, Herodes, também tinha no palácio um conselho de sacerdotes, adivinhos, magos, que além de chefes religiosos, eram também os cientistas daquele tempo, os que sabiam ler e estudavam os poucos documentos conhecidos. Foi a estes que Herodes recorreu para tentar entender aquela notícia que os magos orientais traziam, acerca do nascimento do rei dos Judeus.

A liturgia da Epifania procura integrar os textos do antigo e do novo testamentos, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No livro de Isaías (na verdade, o deutero-Isaías), cap. 60, 1, o autor conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6): “será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor. ” Por certo, a viagem dos “magos” era acompanhada de uma caravana de camelos e dromedários, pois pela liderança que eles deviam ter e por tratar-se de uma viagem de longa distância, deviam trazer grande séquito.

No evangelho de Mateus (2, 2), se concretiza o que foi dito pelo profeta Isaías: “eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.' ” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao cantar: “Os reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de trazer-lhe oferendas e tributos. ” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais essas referências se reproduzem. O evangelista, que conhecia, como bom judeu, a Lei e os Profetas, trata de integrar as profecias no seu texto, como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época em que muitos judeus teimavam e duvidavam em admitir isso. Embora os textos escritos e demais documentos históricos sejam escassos, verificamos que esta é a fé que se construiu desde os primeiros tempos do cristianismo, de modo que a sua credibilidade está no fato de ser uma tradição muitíssimo antiga.

A aliança original de Javé foi com os judeus, mas estes não reconheceram em Jesus o Salvador que veio confirmar a promessa, então diante da descrença deles, o evangelho foi pregado aos gentios, ou seja, àqueles que não descendem dos antigos patriarcas. A figura dos “magos” colocada nesse contexto do nascimento de Jesus faz parte do propósito do evangelho de mostrá-Lo como o Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. Foi isso que Jesus mostrou aos discípulos, em diversas ocasiões, ao observar a indiferença e mesmo a hostilidade daqueles que deveriam recebê-lo como Salvador e por isso mandou que eles divulgassem a sua mensagem aos outros povos, porque a aliança proposta por Javé não se limitava a um punhado de israelitas. Mateus que mostrar que, desde o seu nascimento, Jesus atraiu para si também os povos pagãos, representados pelos magos.

Esta universalidade da salvação trazida por Cristo é o tema da carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o anúncio do evangelho aos gentios: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho. ” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Antioquia, Alexandria, Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, Constantinopla, só bastante tempo depois, o cristianismo finalmente chegou a Roma e de lá espalhou-se pela Europa, vindo depois para a América, onde atualmente estão localizados os católicos em maior profusão no mundo todo. Sem deixar de mencionar o grande número de fiéis das diversas igrejas não católicas e ainda daqueles homens e mulheres de boa vontade que, mesmo sem professarem abertamente a fé cristã, no entanto, realizam em suas vidas o ensinamento de Cristo contido nos evangelhos. O Papa Francisco já proclamou, em diversas ocasiões, que também os ateus que seguem retamente a sua consciência estão no caminho da salvação, porque ao praticarem o autêntico humanismo, estão em sintonia com o pensamento cristão.

Curioso notar que nem Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”, deixando-nos a cogitar se eles não tinham conhecimento desses fatos ou se não consideraram suficientemente importantes para incluí-los nos seus textos. O mais provável, conforme explicam os exegetas, é que esta fonte era conhecida por Mateus e provavelmente não chegou ao conhecimento dos outros dois evangelistas. Uma prova disso seria que os evangelhos de Lucas e Marcos foram escritos na língua grega, portanto, na região das colônias gregas do império romano, enquanto o evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico, a mesma língua falada por Jesus, e só depois traduzido para o grego. Isso justificaria o fato de que, no local onde Marcos e Lucas moravam, essa tradição dos magos não era conhecida e, por isso, não foi mencionada por eles.

Mas independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que nos interessa é destacar na epifania o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. A nossa fé é o maior testemunho dessa universalidade, pois é graças a isso que chegou até nós a mensagem da salvação.

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