COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO
COMUM – 17.01.2016 – A DIVERSIDADE DOS DONS
Caros Leitores,
A liturgia deste 2º domingo comum
destaca dois temas de grande significado: o consórcio entre Javeh e
Jerusalém, que se restabelece após o cativeiro da Babilônia, e é
a prefiguração vetero testamentária do enlace amoroso entre Cristo
e a Igreja, que se consolidou no Novo Testamento. No evangelho, o
episódio das Bodas de Caná retoma a imagem do casamento como a
grande festa da família e da sociedade, prestigiada pela primeira
demonstração pública do poder miraculoso de Jesus . O apóstolo
Paulo, de forma didática e eloquente, ensina as diferentes formas de
atuação do Espírito Santo entre os crentes, ilustrando a
diversidade dos dons que ele inspira nos fiéis.
Na primeira leitura (Is 62, 1-5
[deutero Isaías]), Javeh fala pela boca do Profeta, enaltecendo a
glória de Jerusalém, por quem ele declara a sua predileção: “teu
nome será Minha Predileta e tua terra será a Bem-Casada,pois o
Senhor agradou-se de ti e tua terra será desposada. Assim como o
jovem desposa a donzela, assim teus filhos te desposam; e como a
noiva é a alegria do noivo, assim também tu és a alegria de teu
Deus.” Ao
retornarem da Babilônia, os hebreus se dedicam à reconstrução de
Jerusalém, adornando-a para o Senhor, assim como a noiva se enfeita
para encontrar-se com o noivo. Javeh não descansará enquanto não
surgir nela a Justiça, enquanto não se acender nela a tocha da
salvação. Importa destacar que, durante o tempo em que os hebreus
ficaram cativos na Babilônia, a região da Galiléia foi ocupada por
povos de diversas etnias, que tentavam escapar do império assírio.
Posteriormente, com a vitória de Ciro, tendo sido o império assírio
dominado pelos persas, aqueles povos não retornaram para os seus
locais de origem e formavam um conglomerado altamente disperso, um
amontoado de línguas, costumes, religiões, culturas, uma população
pobre e marginalizada. Então, além do trabalho material de
reconstrução da cidade destruída, os hebreus retornados do
cativeiro tiveram de enfrentar também essa situação social do
encontro com povos diversos, que não conheciam a importância de
Jerusalém para o judaísmo. A imagem do casamento tinha, portanto,
também essa finalidade de transmitir para os estrangeiros um pouco
da história do povo hebreu e sua relação com Javeh.
A liturgia prossegue com o tema do
casamento no evangelho de João (Jo 2, 1-11), abordando o conhecido
episódio das Bodas de Caná. O evangelista não teve a preocupação
de mencionar os nomes dos nubentes, porém deviam ser pessoas
próximas da família de José, talvez parentes, visto que Maria
também estava presente, assim como os discípulos de Jesus. Aquela
foi a oportunidade para que Jesus iniciasse a sua pregação pública,
fazendo a demonstração do seu poder divino. Esse episódio é
relatado apenas pelo evangelista João, o qual certamente estava ali
presente também. Há uma tradição que afirma ser o evangelista
Marcos um dos servos que encheu as vasilhas de água, que depois foi
transformada em vinho, porém eu presumo que se tal tivesse ocorrido,
Marcos certamente teria inserido esse fato no seu texto. Segundo a
interpretação generalizada dos biblistas, o fato de ter Jesus
escolhido iniciar sua atividade pública numa cerimônia de
casamento, significa uma tácita aprovação do matrimônio como
instituição aprovada por Deus. Com toda certeza, isso não foi mera
casualidade, porque em toda a sua atividade de pregador, Jesus
utilizou-se dos caminhos culturais do povo hebreu para, através
destes, ensinar a sua doutrina. Desse modo, a sua presença naquele
evento, a sua forma de agir e o impacto causado pela ocorrência
entre os presentes tiveram uma consequência bastante significativa.
Nas festas de casamento daquele tempo, havia sempre muitos
convidados, inclusive pessoas de outras localidades, como sói
acontecer também nos dias de hoje. Então, aquele fato
extraordinário foi espalhado por muitos lugares, pelo testemunho dos
inúmeros presentes.
Um detalhe intrigante no texto de João,
certamente não casual, é o linguajar de Jesus, ao responder à sua
mãe, quando ela foi dizer a ele que o vinho havia acabado. A
tradução da CNBB até disfarça um pouco a forma rude da fala de
Jesus (Mulher, por que dizes isto a mim?) Mas o texto grego,
traduzido por São Jerônimo, é mais direto: Mulher, o que eu e tu
temos com isso? (Quid mihi et tibi est, mulier?) E o dado mais
curioso: Jesus não chama “mãe” e sim “mulher”. Há dois
momentos no evangelho em que Jesus se refere a Maria com a expressão
“mulher”: nesse caso de Caná e na cruz, quando a confia aos
cuidados de João. Exatamente no início e no final de sua vida de
pregador. O simbolismo desse detalhe referido por João deve ser,
provavelmente, para indicar que, nesse momento, Jesus estava falando
como Filho de Deus, destacando a sua natureza divina, e não
propriamente com o seu ser humano. E tanto Maria entendeu isso que
não se intimidou com a forma aparentemente grosseira com a qual
Jesus a ela se dirigiu e simplesmente disse aos empregados: façam
tudo o que ele disser. Maria tinha consciência do seu papel e,
sobretudo, tinha uma fé acima de qualquer adversidade. E também,
nesse momento, ela deve ter sido instruída pelo Espírito Santo,
para saber o momento de agir e a forma dessa ação. Não foi, com
toda certeza, uma expressão casual e despropositada do evangelista
João. Poder-se-ia até supor que seria uma questão de tradução,
mas não foi isso, pois João escreveu o seu texto em grego e a
palavra escrita é “gýnai”, que significa literalmente “mulher”.
E aqui podemos passar para a carta de
Paulo aos Coríntios (1Cor 12, 4-11), na qual ele se reporta às
diversas formas de atuação do Espírito. Há uma diversidade de
dons, mas o Espírito é o mesmo. Paulo captou e formulou, de forma
profunda e acertada, a doutrina sobre os variados modos de agir do
Espírito na comunidade cristã, todas elas em vista do bem comum.
Uns têm o dom da sabedoria, outros têm o dom da ciência, outros
têm o dom da fé; a uns, é dado o poder de fazer milagres, a
outros, o poder de fazer curas; outros são capazes de falar línguas
diversas, interpretar palavras, profetizar... tudo isso no mesmo
Espírito. Esse texto de Paulo é largamente citado pelos grupos do
moderno pentecostalismo, para fundamentar diversas tendências
(carismas) religiosos. Há os que se permitem "falar"
palavras incompreensíveis, caricaturando o "dom das línguas",
como se fosse esse o sentido de falar "línguas estranhas".
De fato, o termo "estranho" nesse contexto nada tem a ver
com expressões desconexas e vazias de significado, mas tem o sentido
de "línguas diversas" (em grego, géni glósson; em latim,
genera linguarum). No meu entendimento, Paulo estava se referindo a
um fenômeno similar ao ocorrido logo após Pentecostes, quando Pedro
fez uma pregação em aramaico e os ouvintes, oriundos de regiões e
falantes de linguagens diversas, ouviram o seu discurso, cada qual,
como se Pedro estivesse falando em sua própria língua.
Outra expressão desse texto que é
também objeto de compreensão imprópria é quando Paulo fala que o
Espírito confere o poder da cura e de fazer milagres, o que poderia
ser até uma redundância, porque curar (nesse sentido) já seria
fazer um milagre. Contudo, examinando o texto original, verificamos
que não é bem assim. As expressões são: karísmata iamáton (São
Jerônimo traduziu por "gratia sanitatum", ou seja, o
carisma medicinal) e energýmata dynámeon (traduzido por "operatio
virtutum", ou seja, realização de maravilhas). Podemos dizer
que as nossas rezadeiras do interior e os que administram
medicamentos tirados de vegetais têm o carisma medicinal, porque não
estudaram a técnica médica, no entanto, possuem a intuição da
medicina. De modo semelhante, a ação humana organizada e bem
intencionada também produz maravilhas. Há uma tendência comum de
mistificar os dons do Espírito, porém penso que devemos procurá-los
no nosso dia a dia, nas nossas atitudes rotineiras, nos nossos
empreendimentos solidários, na força que é capaz de unir as
pessoas em torno de uma causa comum. E mais: que ninguém se sinta
desmerecido, porque não percebe em si esses dons extraordinários do
Espírito, pois eles acontecem muitas vezes sem que os percebamos. E
eu me arrisco a dizer que aqueles que se autoproclamam detentores
desses carismas não passam de embusteiros. Desses, temos inúmeros
exemplos.
O ensinamento de Paulo deve ser
compreendido no sentido da onipresença do Espírito em tudo aquilo
que realizamos com fé, com reta intenção, com o coração
desapegado. Ninguém precisa sair do seu cotidiano para ser
contemplado com essa assistência contínua e extraordinária do
Espírito, porque ele faz morada dentro de nós, desde que recebemos
os sacramentos da iniciação cristã. Podemos até não perceber a
sua atuação, mas em tudo o Espírito se faz presente.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário