COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO
DA QUARESMA – CONVERSÃO NECESSÁRIA – 28.02.2016
Caros Confrades,
Neste 3º domingo da quaresma, as
leituras litúrgicas fazem referência à automanifestação de Javeh
a Moisés, no monte Horeb, tanto na leitura do Êxodo, quanto na
carta de Paulo a Coríntios. No texto do evangelho de Lucas (13,
1-9), menciona-se a necessidade da conversão, com exemplos dados por
Jesus, inclusive aquela parábola da figueira que não dava frutos.
Na primeira leitura, do livro do Êxodo
(3, 1-8), vemos a vocação de Moisés, quando Javeh o escolheu para
falar diante do Faraó. Isso aconteceu no monte Horeb, que é o mesmo
monte Sinai. Curiosamente, hoje não se sabe com certeza onde fica
esse monte. Os rabinos atuais divergem entre si acerca de três
montes daquela região, sem saber qual deles teria sido o cenário da
narrativa do Êxodo, sobre a sarça que pegava fogo sem se queimar.
São os seguintes: 1. o monte Jebel Mussa ("a Montanha de
Moisés") localizada entre as Montanhas de Granito ao sul da
Península do Sinai; 2. o Monte Karkom, localizado ao sul de Israel,
muito próximo da fronteira egípcia; 3. o monte Jebel el-Lawz, na
Arábia Saudita, localizado numa região chamada de Midian, na época
bíblica. Chega a ser incompreensível o fato de uma montanha tão
importante para a história de Israel não ter uma localização
geográfica estabelecida com precisão. O texto do Êxodo (3, 1) diz
que Moisés apascentava o rebanho do seu sogro, que era sacerdote de
Madiã. Pela correspondência da nomeclatura, parece que a terceira
opção é a mais provável, no entanto, as peregrinações são mais
constantes no monte Jebel Mussa, o que torna muito confusa a
definição. Outra curiosidade é a palavra “sarça”, que em
hebraico se diz “seneh” e que serve como etimologia para o nome
“sinai”. Esta é uma planta comum na região, um arbusto
espinhoso, da mesma família das acácias, que existem no Brasil mas
não são espinhosas. Então, o que chamou a atenção de Moisés não
foi a planta, porque havia muitas, e sim o fato de que estava
“pegando fogo”, mas não se queimava, levando-o a perceber ali
algo miraculoso.
Ao aproximar-se, uma voz vinda do fogo
mandou que ele ficasse longe e tirasse a sandália, porque aquela
terra era sagrada. No diálogo entre Moisés e Javeh, Moisés
perguntou-lhe o nome, foi quando Javeh emitiu uma autodefinição
enigmática: “eu sou”, sem quaisquer complementos. O nome de
Javeh é apenas “eu sou”, pois de fato, Deus não tem
complementos, ele é todo e integralmente um, tornando-se
desnecessária qualquer outra explicação. De acordo com o Monsenhor
Manfredo Ramos, no sermão dominical, o verbo hebraico que é
traduzido em português por “eu sou” (Ehyeh) tem um significado
muito mais amplo do que a expressão correspondente em português,
pois inclui não apenas o significado de “ser”, também o sentido
de 'fazer ser', ou seja, além de SER absolutamente, Ele também faz
as coisas serem. Seria uma autodefinição de Javeh como o criador do
universo. “Eu sou” tem assim um significado ativo e dinâmico de
ser, não o aspecto estático que a expressão em português sugere.
“Eu sou”, este é o nome de Deus para sempre e assim ele será
lembrado de geração em geração. Do nosso ponto de vista, para
Deus, o nome não é o mais importante, mas sim a fé que temos nele
e com base nesta fé, nós somos todos irmãos e sob a luz dessa
mesma fé orientamos todas as ações da nossa vida.
Na segunda leitura, da carta de Paulo a
Coríntios (1Cor 10, 1-6), encontramos a menção aos patriarcas e
aos hebreus que atravessaram o deserto, conduzidos por Moisés,
fugindo da escravidão em que viviam no Egito. Apesar de serem
constantemente favorecidos por Javeh comendo o maná e bebendo a água
do rochedo, no entanto desagradaram a Deus e muitos morreram antes de
chegarem na terra prometida. O próprio Moisés também teria
recebido esse castigo, por haver duvidado do poder de Javeh. Na carta
a Coríntios, Paulo reproduz uma figura que era muito conhecido dos
judeus daquele tempo, que era a imagem do Deus furioso e vingativo,
que amava o povo, mas não os poupava, quando cometiam infidelidades.
Então, diz Paulo, estes fatos devem servir de advertência a vocês,
para que não repitam as mesmas atitudes reprováveis cometidas pelos
seus antepassados, que foram alvo do anjo exterminador. Vejam bem:
“anjo exterminador” é uma figura cultural do povo hebreu que
parece indicar algo que, nos dias de hoje, chamamos de “castigos de
Deus”. É interessante como, na cultura religiosa do nosso povo,
ainda permanecem essas figuras fantásticas e aterrorizantes
encontradas na tradição bíblica mais antiga.
Então, podemos perguntar: por que
Paulo usaria essas imagens do tempo antigo já na era cristã, numa
época em que Jesus Cristo já havia dito que tinha vindo abolir
aqueles costumes com o seu novo mandamento? Na verdade, Paulo faz
referência ao rochedo donde brotava a água no deserto, vendo neste
rochedo uma prefigura de Cristo, a fonte da água viva. Verifica-se,
na verdade, um esforço de Paulo para integrar a antiga aliança com
a nova aliança, através de uma catequese que aproveitasse os
conhecimentos da tradição hebraica, pois os cristãos da cidade de
Corinto eram, em grande parte, judeus convertidos, que conheciam bem
essas histórias dos patriarcas. Ficava, portanto, mais fácil para
Paulo lançar mão dos conceitos da tradição conhecida por eles
para fazer a relação com a mensagem de Cristo. Havia, entre estes
judeus, um conceito que nós ainda encontramos na mentalidade
religiosa do nosso povo de que, quando acontece algo de ruim com
alguém, aquilo foi um castigo de Deus. Isso era também entendido
pelo raciocínio inverso, ou seja, que quando alguém havia sido
beneficiado com algo de bom, isso seria um prêmio de Deus, uma
espécie de reconhecimento de Deus pelos méritos desta pessoa.
Essa referência aos Patriarcas termina
com a advertência de Paulo: quem julga estar de pé, tome cuidado
para não cair. (1Cor 10, 12). Esse cuidado diz respeito à conversão
do coração, todos nós necessitamos constantemente de conversão.
Converter-se quer dizer estar sempre voltado para Deus, não apenas
quando passamos por alguma dificuldade, enfrentamos uma adversidade.
Alguns cristãos só se lembram de rezar, de voltar-se para Deus
quando as coisas não vão bem. Então, diz Paulo, quem pensa que
está de bem com Deus porque não foi castigado e, ao contrário,
pensa que o irmão que sofre é porque não está de bem com Deus,
deve mudar essa mentalidade. Se não houver “conversão”
contínua, isto é, se não houver mudança de mentalidade, pode
acontecer o mesmo que aconteceu no deserto: virá o “anjo
exterminador”, representado sob a forma de presunção da salvação.
Ninguém tem a salvação garantida, pois essa depende de esforço
constante. Com isso, ele quer significar que a conversão não é uma
atitude que acontece uma vez na vida e pronto, mas ela deve ser
renovada a cada dia, na nossa consciência e nas nossas atitudes. O
batismo não é garantia de salvação por si só, se não for
complementado com um trabalho contínuo de renovação interior, pela
leitura e meditação da escritura, pela inserção dos ensinamentos
de Cristo no nosso dia a dia. Por isso ele adverte: quem pensa que
está em pé (de bem com Deus, com a salvação assegurada), tenha
cuidado para não cair (não deixar a presunção e o orgulho
embotarem a sua visão de fé).
Este é também o ensinamento que
retiramos da passagem do evangelho de Lucas (13, 1-9), quando os
judeus falaram a Jesus sobre alguns do povo que haviam sido mortos
por ordem de Pilatos, que confundiu o ritual de sacrifícios de
animais deles com alguma ação de rebeldia, de modo que eles foram
assassinados sendo inocentes. Por isso, Jesus pergunta aos próprios
portadores da notícia: por acaso, vocês pensam que estes que
morreram eram mais pecadores do que os outros? Dentro daquela
mentalidade judaica, essa desgraça acontecida com cidadãos
inocentes era entendida como um 'castigo divino' por alguma coisa
imprópria feita por eles. Então, Jesus aproveita a ocasião para
ensinar que não é nada disso, que não se deve associar o
sofrimento de alguém com uma espécie de 'vingança' de Javeh,
porque isso pode acontecer a qualquer um. Não se trata de vingança
de Javeh, mas trata-se de um fato da vida, que não está relacionado
com o poder divino, mas com a negligência ou ignorância dos seres
humanos. Trazendo para os dias de hoje, Jesus diria que os tsunamis,
o desequilíbrio ecológico do planeta, as epidemias viróticas
disseminadas por toda a parte, a violência generalizada não são
castigos divinos, mas são produtos da ação egoísta e desastrosa
comandada pelo próprio homem.
Meus amigos, ouçamos com nossos
ouvidos de hoje o que diz Paulo e não deixemos que o mesmo venha a
acontecer conosco. Quem pensa estar de pé, tenha cuidado para não
cair.
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