COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO
COMUM – AQUI ESTOU – 07.02.2016
Caros Confrades,
Na liturgia deste 5º domingo comum, as
leituras mostram três situações diferentes, pelas quais a vocação
divina foi dirigida a três personagens importantes na história da
salvação: o profeta Isaías e os apóstolos Pedro e Paulo. Esses
exemplos nos levam a refletir sobre a nossa própria vocação, cada
um de acordo com os seus talentos, de modo que possamos dizer, como o
profeta Isaías, “aqui estou, envia-me”.
Na primeira leitura, temos o relato de
Isaías narrando sobre a sua vocação profética (6, 1), onde ele
diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele recebeu a
missão de profetizar. Diz ele que viu o Senhor dos exércitos
sentado no trono, rodeado de serafins, que o adoravam dizendo “santo,
santo, santo” e ficou com medo, porque era apenas um pecador. Caiu
por terra e tremeu, porque achava que ali iria morrer, pois de acordo
com a tradição hebraica, ninguém tinha visto a Deus e depois
continuado vivo, então Isaías achou que era o momento de sua morte.
Foi quando um dos serafins tirou uma brasa do altar e com ela tocou a
boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele pudesse
falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor: estou
pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e daí
podemos fazer algumas considerações.
Primeiro, destaco o fato de que foi
Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do futuro
Messias, inclusive sobre o sacrifício da cruz a que ele teria de se
submeter, tanto assim que o texto de Isaías é o mais citado por
Jesus nas suas pregações, inclusive no domingo passado lemos aquele
texto em que Jesus diz expressamente que “se cumpriu a palavra do
profeta”. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e político
do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com guerras e
ameaças por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh como um
chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as previsões
que ele fez do Messias eram também de um destemido guerreiro, que
viria expulsar os inimigos. Não é de admirar, portanto, que o povo
hebreu tenha resistido em reconhecer a messianidade de Jesus, porque
ele não veio na condição de libertador político, conforme havia
sido previsto pelos profetas. Quando Jesus veio pregar um reino do
amor e da mansidão, eles não viram nele aquela figura da sua
expectativa histórica, que se formara ao longo de tantos séculos,
como de um Messias guerreiro e lutador.
Segundo, esse trecho de Isaías contém
ainda uma invocação que foi colocada no cânon da missa como parte
fixa: o santo, santo, santo (Is 6, 3) que era o canto entoado pelos
serafins que ladeavam o trono de Javeh. Em primeiro lugar, gostaria
de explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos
sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na
palavra, quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em
português, o superlativo de “santo” é “santíssimo”, mas em
hebraico, o superlativo da palavra se expressa com a repetição
dessa palavra por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em
hebraico: kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer santíssimo. Outro
detalhe é que Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica
que significa exércitos e que não foi traduzida nem para o grego
nem para o latim, mantendo-se a grafia original nesses dois idiomas.
Quem se recorda da missa em latim, lembra disso: Sanctus, sanctus,
sanctus, Dominus Deus Sabaoth. Assim era também em português, mas
na reforma litúrgica, a CNBB preferiu alterar a denominação “Deus
dos exércitos” por “Deus do universo”, como está hoje no
texto oficial.
Outro detalhe interessante é que o
serafim apanhou uma brasa do altar com uma tenaz (para não se
queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não se queimou),
ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh. É
interessante notar essa figura do fogo como símbolo da purificação,
que tem presença constante nas imagens bíblicas. A brasa foi
retirada do fogo que fora aceso para o sacrifício das vítimas que
eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que Isaías teve
esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a árdua missão
de denunciar os pecados do povo de Israel, desde os simples fiéis
até os governantes, fato que ele fez com muita coragem, mesmo
sabendo dos riscos que corria. Não é fato histórico confirmado,
mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao ter seu corpo
serrado no meio, por ordem do rei Manassés, que ficou ofendido com
as admoestações do profeta.
Na segunda leitura, o apóstolo Paulo
conta, de sua própria pena, a sua vocação, história que todos
conhecemos. Mas ele faz alguns complementos interessantes sobre as
aparições de Cristo após sua ressurreição, narrativas que estão
em certa divergência com os evangelhos. Por exemplo: diz que Jesus
apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos doze (2Cor 15, 5);
esta aparição a Pedro isoladamente não consta nos evangelhos. Diz
depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos de uma vez, depois
apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos juntos. Pelas
narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos e a Tiago
também não estão registradas, contudo, não se pode dizer que
Paulo esteja faltando com a verdade, pois muitas tradições orais
que eram conhecidas em algumas comunidades não eram conhecidas em
outras e nem todas foram escritas.
Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que
Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não
ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um
discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da
Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer:
tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Talvez como uma
espécie de compensação, por ter sido perseguidor, Paulo tenha se
dedicado muito mais do que os outros, em viagens e missões por todo
o mundo grego, levando o cristianismo até Roma, que era a grande
capital do mundo de então. Foi Paulo quem levou Pedro para presidir
a comunidade de Roma, para dedicar a ele a honra de ser o líder
cristão da cidade mais importante, fato que ainda hoje tem grande
repercussão, na pessoa do Papa, bispo de Roma. Aliás, na minha
convicção pessoal, a vocação de Paulo é uma das maiores provas
da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze, dificilmente o
cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de
locais habitados naquela época. Com sua formação intelectual e sua
pedagogia arrojada, pode afirmar-se que Paulo foi o primeiro teólogo,
igualando-se a João em importância na elaboração doutrinária.
O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a
vocação dos primeiros apóstolos: Pedro e seu irmão André, que
eram sócios de Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores.
Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um
pouco da margem do Mar da Galiléia (ou Lago de Genesaré), para que
pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus
ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar.
Pedro estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria
tinha sido um fracasco. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram
tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a
outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi quando
Jesus convidou Pedro para ser pescador de gente, estendendo o mesmo
convite aos demais.
Pois bem, meus amigos. O que vemos de
comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de
fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua
missão. Na história de nossas vidas, a vocação cristã nos põe
diante desse desafio de identificar e cumprir a nossa missão na
sociedade onde vivemos. Assim como Isaías, Pedro, Paulo e todos os
apóstolos, se especularmos sobre o nosso passado, iremos encontrar
diversos fatos pelos quais Jesus nos chama para dar testemunho dele,
sendo essa a nossa missão. Missão é um conceito que se identifica
com a nossa vida social, na qual somos chamados a viver de acordo com
o evangelho, testemunhando a nossa fé perante a comunidade. Não é
necessário ficar o dia todo com o terço na mão nem com a Bíblia
embaixo do braço para simbolizar que estamos em missão. Quando
cumprimos nossas tarefas com honestidade, convicção, amor ao
próximo, alegria, integridade, estamos dando um testemunho muito
mais eloquente e eficaz do que se estivéssemos só balbuciando
orações em particular. Portanto, nós não precisamos sair da nossa
rotina para colocar em prática a nossa vocação, para realizar na
nossa vida o que Deus deseja e espera de nós, estejamos nós só na
beira da praia ou em águas mais profundas. Em qualquer lugar em que
nos encontremos, a missão está ao nosso alcance.
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