COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO
DA QUARESMA – CORPO GLORIFICADO – 21.02.2016
Caros Leitores,
Neste domingo, 2º da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante os apóstolos Pedro, Tiago e João, exibindo diante dele o seu corpo glorioso, tal qual se manifestaria mais tarde aos doze, após a ressurreição. Transfigurando-se, Jesus dá demonstração do seu poder e da sua origem divina. Nas outras leituras, fala-se sobre a promessa de Javeh a Abrão, dando início ao povo eleito, e sobre a advertência de Paulo aos Filipenses, dizendo que nós seremos transfigurados um dia, tal como aconteceu com Cristo.
Neste domingo, 2º da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante os apóstolos Pedro, Tiago e João, exibindo diante dele o seu corpo glorioso, tal qual se manifestaria mais tarde aos doze, após a ressurreição. Transfigurando-se, Jesus dá demonstração do seu poder e da sua origem divina. Nas outras leituras, fala-se sobre a promessa de Javeh a Abrão, dando início ao povo eleito, e sobre a advertência de Paulo aos Filipenses, dizendo que nós seremos transfigurados um dia, tal como aconteceu com Cristo.
Na primeira leitura, lemos o início
das tratativas entre Abrão e Javeh, com vistas à formação da
aliança, que deu origem ao povo escolhido. Abrão pede um sinal e
Javeh mandou que ele trouxesse animais e aves para sacrificar em sua
homenagem, ocasião em que Javeh trouxe o fogo do céu para a
consumação do sacrifício, prometendo a Abrão uma descendência
mais numerosa do que as estrelas. Esta passagem do Gênesis (Gn 15,
17), assim como outras similares, formam aquele conjunto de conteúdos
legendários da memória hebraica, sustentados durante séculos por
uma tradição oral, com imensas probabilidades de alterações ao
longo do tempo, pois nenhuma tradição oral se mantém incólume por
muito tempo. E reflete também a cosmologia da época, na que se
refere à contagem das estrelas, pois estas eram entendidas como se
estivessem penduradas na abóbada celeste. De fato, Abrão ficou com
certo temor de acreditar nessa promessa de ter uma geração
numerosa, por isso, pediu a Javeh um sinal, para que pudesse
acreditar. Com efeito, Abrão era já idoso, assim como sua mulher
Sarah, e não tinham conseguido gerar filhos até então, quanto mais
a idade de ambos avançava, mais isso ficaria impossível. E como se
cumpriria a promessa? Essa era a dúvida dele.
É no contexto dessa dúvida de Abrão
que, com o consentimento de Sarah, ele gerou um filho na sua escrava
egípcia Agar (a quem chamou de Ismael), antes que Sarah gerasse
Isaac. Essas narrações legendárias incluídas no Pentateuco têm
por finalidade explicar que todos os povos daquela região seriam
descendentes de Abrão, porém enquanto os israelitas eram
descendentes pelo lado legítimo da filiação de Isaac, filho da
esposa, os outros povos eram descendentes de Abrão pelo lado
ilegítimo de Ismael, filho da concubina dele. Essas histórias
explicavam também porque aqueles povos habitavam naquela região
“entre o rio do Egito (Nilo) e o rio Eufrates” (Gn 15, 18), no
entanto, os verdadeiros “donos da terra” eram os israelitas, por
serem filhos da esposa legítima de Abrão, os herdeiros da promessa
de Javeh a Abrão.
Na segunda leitura, da carta de Paulo à
comunidade de Filipos, uma das primeiras comunidades cristãs
fundadas por ele, pela qual ele tinha grande estima, constata-se a
angústia de Paulo (Fl 3, 18) quando ele escreve: muitos de vocês
estão se comportando como inimigos da cruz de Cristo..., sede meus
imitadores, vivam de acordo com o evangelho que eu vos dei. Não dêem
maus exemplos, pensando só nas coisas terrenas, porque nós somos
cidadãos do céu. Então, Paulo faz o seu discurso futurológico, ao
afirmar que (Fl 3, 21), se vivermos de acordo com o evangelho,
teremos no céu um corpo glorioso, semelhante ao corpo de Cristo. Os
povos gregos eram os grandes comerciantes daquela região do
Mediterrâneo. Os filipenses ouviram e aceitaram a pregação de
Paulo, convertendo-se ao cristianismo. Mas quando Paulo viajou para
fundar outras comunidades, os filipenses se voltaram aos seus
afazeres materiais, diversões, comes e bebes, deixando de lado a
vivência da fé cristã. Daí a chamada de atenção de Paulo: ouvi
dizer que alguns de vocês se comportam como inimigos da cruz de
Cristo… não façam isso, o fim destes é a perdição, o deus
deles é o estômago e a sua glória está na vergonha. Esta
advertência de Paulo cabe bem nos nossos dias, quando percebemos
fiéis que esquecem os compromissos de cristãos sufocados pelas
urgentes e inadiáveis necessidades do dia a dia. Não podemos deixar
que o nosso deus seja a gula nem que a nossa glória esteja nos bens
materiais. A vivência da fé deve iluminar nossas atividades
profissionais e nossos compromissos cotidianos e não pode ser um
empecilho para o exercício destes. Da mesma forma que essas
atividades não podem se antepor aos nossos compromissos de fé, mas
ambas devem conciliar-se mutuamente.
Na leitura do evangelho de Lucas (9,
29-36), o tema é a narração da transfiguração de Jesus diante de
Pedro, Tiago e João. Pela narração do evangelista, deduz-se que
eles não entenderam nada daquilo, agarraram no sono e quando
acordaram, Jesus já estava se despedindo. O completo entendimento
desse episódio somente chegou para eles muito tempo depois, quando
Jesus já havia ressuscitado. Chega-se a essa conclusão pelo
contexto da narrativa. Primeiro, aquela visão espiritualizada de
Cristo conversando com dois personagens também espirituais; segundo,
o assunto da conversa (de acordo com Lucas, Jesus conversava com
Moisés e Elias sobre a sua futura paixão e morte, coisa que ele já
tinha explicado diversas vezes e eles não conseguiam entender);
terceiro, os discípulos devem ter ficado hipnotizados com aquela
visão fantástica e quedaram-se em profunda letargia. Diz Lucas (9,
36) que aqueles discípulos não falaram nada daquilo pra ninguém e
nem conversavam entre eles sobre o assunto. Cada um deve ter pensado
que tivera um sonho (ou um pesadelo) e até um teve receio de
comentar com o outro, pois não sabia se o outro também tinha visto
aquilo.
Uma observação textual merece ser
aqui destacada. O evangelista Lucas diz que uma nuvem os encobriu a
todos, os discípulos também ficaram cobertos pela nuvem, de onde
saiu uma voz, que dizia: este é o meu filho dileto, escutai-o. O
texto oficial da CNBB escreve “meu filho escolhido”, mas essa não
me parece a melhor tradução. A palavra grega escrita por Lucas é
“eklelegménos”, conjugação do verbo “legow”, que São
Jerônimo traduziu por 'dilectus'. Conforme o dicionário, o verbo
“legow” tem o significado de escolher, mas tem também o sentido
de anunciar, declarar, então no contexto da história da salvação,
parece-me que este último sentido estaria mais apropriado. Daí eu
preferiria traduzir a expressão por “meu filho prometido”,
porque assim fica mais coerente com a leitura do Gênesis (primeira
leitura), onde se rememora a aliança com Abrão, o futuro desta
promessa era a vinda do Salvador. Jesus é, portanto, aquele que fora
prometido desde o início. “Escolhido”, como traduziu a CNBB, dá
a impressão que Javeh teria vários filhos e escolheu Jesus, por
isso não me parece uma tradução apropriada.
Os dois personagens com os quais Jesus
dialogava (Moisés e Elias), de acordo com a explicação tradicional
da exegese, representam a Lei e os Profetas. Esse entendimento também
se encontra na fé judaica, como se pode ver na palavra “tanach”,
com a qual os judeus resumem toda a sua Bíblia. A palavra “tanach”
é formada de um acróstico com as iniciais de “torah” (lei de
Moisés), “neviim” (profetas representados por Elias) e
“chetuvim” (os escritos sapienciais). Ao transfigurar-se e
aparecer junto com Moisés e Elias, Jesus estava referendando a Lei e
os Profetas e acrescentando a elas os seus próprios ensinamentos.
Assim é que se faz o entendimento cristão da presença dos três
personagens no episódio da transfiguração.
Agora, ponho outra questão: por que
Jesus não chamou todos os doze apóstolos para testemunharem aquela
demonstração de sua divindade, mas apenas aqueles três? Fica
difícil saber com certeza, mas podemos fazer conjeturas. Talvez, um
reconhecimento da liderança de Pedro, fato que seria posteriormente
tomado como argumento para justificar o primado do Papa. Talvez o
fato de João e Tiago terem parentesco com Jesus (lembremo-nos que,
na hora da morte, Jesus confiou Maria, sua mãe, aos cuidados de
João) e Tiago é muitas vezes citado como “o irmão do Senhor”,
ambos apontados como filhos de Salomé (mulher de Zebedeu), que seria
irmã de Maria, mãe de Jesus. Essas genealogias são repletas de
controvérsias, no entanto, o fato de terem sido eles dois escolhidos
para testemunhar o fato miraculoso reforça essa tese, por serem
pessoas de sua maior confiança.
À margem dessa polêmica, exsurge o
fato de que nós, cristãos, somos todos escolhidos por Jesus para
conhecer sua doutrina e chamados a participar da construção do céu
na terra. Aos apóstolos, Jesus não se mostrou a todos, mas a nós,
Ele se revelou sem restrição. Daí o conselho de Paulo, que pediu
chorando aos Filipenses para que eles não se deixassem levar pela
atração das coisas terrenas, porque assim estavam se desviando do
foco da missão que ele, Paulo, lhe havia deixado. E quando a nós,
Paulo nos adverte que tenhamos sempre na mente o nosso destino
glorioso, nunca perdendo o foco nas promessas do nosso batismo.
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