COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO
COMUM – A FÉ DOS PAGÃOS – 29.05.2016
Caros Leitores,
No domingo depois da Santíssima
Trindade, a liturgia retoma os domingos comuns, que decorrerão até
o tempo do Natal. Neste nono domingo, as leituras da liturgia trazem
um tema interessante, que é a fé dos pagãos, dos ateus, dos
sem-religião. Muitas pessoas de boa vontade, que não professam uma
religião específica, podem ter uma fé direcionada para a
humanidade, para a bondade, para o espírito de cooperação. Isso já
foi reconhecido pelos fiéis dos tempos antigos, como prova o exemplo
de Salomão, da primeira leitura. Quando fiz curso de Teologia, li a
respeito de um movimento europeu denominado “cristianismo sem
religião”, referindo-se às pessoas que praticam as virtudes
cristãs, mesmo sem professarem publicamente a sua fé. De acordo com
recente pronunciamento do Papa Francisco, para essas pessoas também
se aplicam os méritos da redenção operada por Cristo.
Na primeira leitura, do livro dos Reis
(1Rs 8, 41-43), lemos a simbólica oração de Salomão, quando
terminou a construção do grande templo de Jerusalém e foi
inaugurar. Naquele momento, ele se lembrou que muitos estrangeiros
visitavam Jerusalém e, certamente, teriam curiosidade de conhecer
aquele portentoso templo. Então, no meio desta oração, Salomão
“interroga” Javeh do seguinte modo: pode ser que algum
estrangeiro, que não Te conhece, vendo a beleza deste templo, entre
aqui e faça-Te um pedido. Então, diz Salomão, 'do
céu onde moras, atende a todos os pedidos desse estrangeiro, para
que todos os povos da terra conheçam o teu nome e o respeitem, como
faz o teu povo Israel, e para que saibam que o teu nome é invocado
neste templo que eu construí'. O
que vemos aí é a preocupação do sábio rei Salomão com a fé dos
pagãos. Ninguém entraria num templo, sabendo que se trata de um
local religioso, sem o espírito de fé, foi o que ele deve ter
imaginado. Então, este estrangeiro não deve ser expulso do templo,
apenas porque não professa a nossa mesma fé, mas Javeh que conhece
os corações de todos saberá se ele está ali com o espírito de fé
e deve atendê-lo, mesmo ele não sendo crente. Foi isso que
aconteceu com o sírio Naaman, conforme relatado em 2Rs 5,10. Naaman
não era crente, no entanto, seguiu o ritual descrito pelo profeta
Eliseu, com espírito de fé, e ficou curado de sua enfermidade. Foi
o que aconteceu, em outro contexto, com o oficial romano, mencionado
na narração de Lucas, no evangelho deste domingo, sobre o qual
trataremos na sequência.
É interessante observarmos que, desde
o Antigo Testamento, já existem situações exemplares em que se
destaca o caráter universal da fé. No entanto, ainda nos dias de
hoje, cada “igreja” se considera a única proprietária do
tesouro da fé e usa isso como um instrumento de barganha para
conseguir mais adeptos. Pouco tempo depois de sagrar-se Pontífice, o
Papa Francisco, no dia 14.03.2013, pronunciou um sermão profético,
no qual ele afirmou que, mesmo pessoas que não abraçam a fé
católica, mas possuem espírito reto e praticam boas ações, também
elas alcançarão a salvação. Apenas para que se avalie a grande
novidade desse pronunciamento, recordo que a teologia oficial ensina
que, quem conhece a Igreja Católica e se recusa a se engajar nela,
mesmo que pratique boas ações, não alcança a salvação. Em
outras palavras, o sermão do Papa repetiu a oração de Salomão, na
inauguração do grande templo de Jerusalém, quando disse: “Fomos
criados filhos à semelhança de Deus e o sangue de Cristo redimiu a
nós todos! E todos temos o dever de fazer o bem. E esse mandamento
para todos fazermos bem, penso ser um belo caminho para a paz. Se
nós, cada um fazendo a sua parte, fizermos o bem uns aos outros, se
nos encontrarmos lá, fazendo o bem, então iremos gradualmente
criando uma cultura de encontro. Devemos nos encontrar na prática do
bem.”
Na segunda leitura, de Paulo aos
Gálatas (1, 1-10), ele diz enfaticamente que não há outro
evangelho, diferente do que ele pregou e que foi deixado a nós por
Jesus Cristo. Se vier um anjo do céu ensinando algo diferente, este
deve ser excomungado, porque a fé em Cristo é uma só. Naqueles
tempos iniciais do cristianismo, Paulo enfrentou diversas questões
trazidas por judeus convertidos, que teimavam em adaptar os
ensinamentos de Cristo à lei de Moisés, não reconhecendo a mudança
da antiga para a nova aliança. Esses doutrinadores, dizia Paulo, não
foram enviados por Cristo. Ele, Paulo, sim, tem autoridade para dizer
isso, porque não se tornou apóstolo nem por iniciativa humana nem
por intermédio de nenhum homem, mas pelo próprio Cristo, que o
convocou.
Este é o tema também da leitura do
evangelho, na narração de Lucas, o mais detalhista dos
evangelistas, acerca do episódio muito conhecido, envolvendo o
centurião romano, que solicitou um milagre a Jesus. Ele não era um
crente professo mas, diz Lucas, ele era um homem bom, até tinha
mandado construir uma sinagoga na cidade de Cafarnaum, mesmo sem ser
israelita. Os anciãos que o conheciam deram testemunho a Jesus da
sua personalidade. E Jesus estava, de bom grado, se deslocando para a
casa do militar, quando teve seu trajeto interrompido. Aqui há uma
pequena divergência entre os evangelistas. Mateus (8, 5) afirma que
o próprio centurião foi pedir isso a Jesus. Lucas, em contrário
(7,6), diz que o centurião mandou amigos dele fazerem o pedido a
Jesus. Ainda segundo Mateus, foi o próprio centurião quem disse a
Jesus que não precisava ir até a casa dele. Segundo Lucas, foram
amigos do centurião que fizeram isso, pois o centurião não se
considerou digno de estar na presença de Jesus e mandou seus
mensageiros. Bem, estou destacando esses detalhes apenas para que
todos, mais uma vez, observem que não podemos ler a Bíblia de uma
maneira fundamentalista, porque muitas vezes os textos conduzem a
situações complicadas.
Pois bem, no caso específico, esse
detalhe não é, de fato, importante. O que realmente interessa é a
forma como o centurião demonstrou sua fé em Jesus, mesmo não sendo
israelita, mesmo não sendo um seguidor seu. Este texto tornou-se um
clássico exemplo de fé irrestrita e foi inserido no cânon da
missa, no rito da comunhão: “Domine, non sum dignus ut intres sub
tectum meum, sed tantum dic verbum et sanabitur puer meus”. E Jesus
se admirou muitíssimo, a ponto de exclamar: não encontrei tanta fé
em Israel (Lc 7,9). O centurião não conhecia Jesus, apenas ouvira
falar nos milagres que ele fazia, no entanto, isso foi suficiente
para que ele demonstrasse a sua fé, muito diferentemente dos
fariseus que, mesmo vendo tudo aquilo e conhecendo as escrituras, não
acreditaram. Por isso, a queixa de Jesus, por não ter encontrado
tanta receptividade entre o povo da promessa. Mesmo sem ser um
discípulo de Jesus, o centurião entendeu que nem seria necessária
a presença d'Ele para que operasse um prodígio, pois com o Seu
poder, bastava que ele mandasse, mesmo que fosse de longe. E Jesus
nem colocou qualquer condição para atendê-lo, por exemplo,
converta-se, pratique a minha doutrina, venha me seguir, vá
batizar-se, vá fazer penitência... para que isso? Aquela
demonstração irrestrita de fé era bastante por si só.
A essas alturas, pode ser que alguém
esteja conjeturando: então, para que serve a Igreja, se a fé é
bastante. A Igreja é realmente necessária? Pois, sim. A Igreja
enquanto comunidade, somos todos nós, a fé praticada em comunhão.
O templo é a estrutura dentro da qual nós vivenciamos a nossa fé.
A fé na sua dimensão pessoal está no íntimo de cada um. Ocorre
que a salvação, como corolário da fé, é uma realização
comunitária. Deus não nos quis solitários, isolados,
individualistas. O próprio Deus é Trindade, é comunhão, então a
nossa fé não se expressa por completo isoladamente, solitariamente,
porque a fé tem duas vertentes: a dimensão vertical, pela qual
fazemos nossa comunhão com Deus, e a dimensão horizontal, pela qual
praticamos a nossa comunhão com os irmãos e as duas extremidades se
tocam: a comunhão com Deus leva à comunhão com os irmãos e esta
leva à comunhão com Deus. É para tal vivência que precisamos
engajar-nos na comunidade eclesial. O ambiente eclesial existe para
nos proporcionar, de uma maneira orientada e mais facilitada, esta
cultura do encontro. Pelo menos, é assim que deveria ser. A
comunidade eclesial tem essa característica de ser uma união de
irmãos de fé, em que uns estimulam, orientam, ajudam os outros a
vivenciarem autenticamente a sua, na dimensão da oração (vertical)
e na dimensão da caridade (horizontal), propiciando desse modo a
realização completa da nossa fé. A salvação não é um ato
individual, mas uma produção coletiva e, embora seja possível fora
da comunidade, é dentro desta que as condições são mais
favoráveis para o seu desenvolvimento.
Meus amigos, que a demonstração de fé
do centurião nos sirva de exemplo e motivação para repensarmos os
nossos atos de fé e nos inspire a vivenciar, de forma mais completa,
esta fé nas nossas comunidades.
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