COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA
SANTÍSSIMA TRINDADE - 23.05.2016
Caros Leitores,
A liturgia celebra hoje a festa da
Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático catequético,
que se inicia com o Advento, passando pela Quaresma e a Páscoa, até
o domingo de Pentecostes. A festa da Trindade Santa sintetiza toda a
doutrina cristã, que tem no Antigo Testamento a manifestação do
Deus Criador, e no Novo Testamento, as manifestações do Filho
Redentor e do Espírito Santificador. A partir do próximo domingo,
retornam os domingos do tempo comum, até o começo do próximo ano
litúrgico, que retoma o tempo do Advento, dando início a novo
ciclo.
A fé na Santíssima Trindade é o
dogma fundamental do cristianismo, o grande mistério revelado por
Cristo, que só se esclareceu definitivamente após o sopro do
Espírito Santo. No Antigo Testamento, o conhecimento da divindade
era unipessoal apenas, isto é, somente YHVH (em hebraico: יהוה),
o Deus dos patriarcas havia se revelado a Abraão e prometeu um
Messias. Quando veio Jesus, ele trouxe a revelação de que “Ele e
o Pai são um”. Depois, Jesus prometeu o Paráclito, aquele que
viria esclarecer tudo. Foi em Pentecostes que a revelação da
Trindade se completou. Este é o mistério dos mistérios, aquele que
perpassa toda a dimensão da fé cristã. Dizer que é um “mistério”
significa que o conhecimento disso não é possível de ser alcançado
apenas com o uso da razão, mas é necessário que venha a fé em
suplemento, para possibilitar a compreensão. Quem se recorda daquele
verso que cantávamos no Tantum ergo: praestet fides suplementum
sensuum defectui. (que a fé forneça suplemento ao defeito dos
sentidos)?
Sob o ponto de vista da teologia
católica, os conceitos de revelação e mistério se atraem
mutuamente. O mistério é aquela verdade que a nossa razão precisa
aprender a identificar, o que só ocorre com a ajuda da fé. Os
teólogos criaram um conceito recente (quanto eu estudei teologia,
ainda não existia) para simbolizar esse aprendizado que a razão tem
com a ajuda da fé: mistagogia. É uma combinação das palavras
gregas “mysterion” (revelação) com “agogé” (ensinar). A
revelação tem esse componente pedagógico de conduzir a razão
pelos caminhos obscuros da fé. Embora o mistério da Trindade seja o
fundamento e o alicerce de toda a fé cristã, ele só foi alcançado
e esclarecido bastante tempo depois, dada a sua complexidade. Por
isso, a discussão sobre a Trindade conduziu a muitas discussões nas
primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas
doutrinas, depois consideradas heréticas, porque não admitiam a
mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas
doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o
arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de
nome Ario, ensinava que Cristo é filho de Deus, mas não é igual a
ele, seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que
Cristo tinha apenas uma natureza, a divina, e a sua humanidade era
apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível.
Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os
primeiros núcleos do cristianismo e foram objeto de muitos debates,
antes de serem finalmente rejeitadas por decisões conciliares.
As definições foram aprovadas em dois
Concílios: Niceia e Constantinopla. No Concílio de Niceia, em 325,
os padres conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”, a
oração do Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que ficasse
mais fácil de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi depois
aperfeiçoada no Concílio de Constantinopla, em 381, porque no
concílio anterior não ficara definida claramente a natureza do
Espírito Santo. Assim é que o Credo atualmente rezado na liturgia é
também chamado de símbolo niceno-constantinopolitano, porque sua
redação passou pelos dois concílios. Em relação ao Filho, o
Concílio de Niceia definiu que o Filho é gerado, não é criado.
Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no
linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo,
as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho
foi gerado. Esta diferença conceitual acentua que o Filho tem a
mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas
do mundo não têm a mesma natureza do Criador, porque foram criadas.
Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla
definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o
verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação
de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho
é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra
pessoa divina. A “palavra” se fez carne, diz o evangelista João.
Observemos que João afirmou isso por volta do ano 100, ou seja, esse
entendimento sobre a natureza do Filho como Verbo de Deus já era
conhecido na época de João. E também afirma-se que o Espírito é
o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso, torna-se outra pessoa
divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a
nossa potência racional não consegue alcançar, mas apenas a fé
nos dá esta certeza.
Faz pouco tempo, eu li na internet uma
matéria, onde se afirmava que a doutrina trinitária não foi
inventada no cristianismo, mas é uma doutrina pagã, que o
cristianismo aproveitou. Diversas divisões protestantes negam a
Trindade e algumas facções racionalistas do cristianismo também.
Recusam-se a aceitar a Trindade, porque afirmam que na Bíblia, em
diversas passagens, Yhvh afirma ser ele o “único” Deus e não
pode haver outro. Afirmam ainda que em religiões mais antigas do que
o cristianismo há também suas “trindades”, como por exemplo, no
hinduismo, a trindade seria Brahma (deus da criação), Vishnu (deus
da manutenção) e Shiva (deus da destruição); no antigo Egito,
havia diversas “trindades”, como é o caso de Hórus, Isis e
Osiris. Meus amigos, as pessoas que afirmam isso não conhecem a
doutrina da Trindade católica. Esses exemplos pagãos são trindades
de três deuses, o que não é o caso do Pai, Filho e Espírito
Santo, que são um único Deus. E também não a entendem aqueles que
se justificam dizendo que Yhvh se apresentou como o “único”
Deus, pois a Trindade é um único Deus, não há contradição aí.
O que falta a essas pessoas é a “fidei suplementum”, isto é, o
suplemento da fé, elas querem entender tudo apenas pela razão e
confundem as coisas, assim como fez S. Agostinho, naquela famosa cena
em que ele viu o menino tentando colocar a água do mar num buraco da
areia. Depois que S. Agostinho percebeu o tamanho da sua petulância,
ele fez uma descoberta fascinante. Intelligo ut credam, credo ut
intelligam (entendo para crer, creio para entender). Então, ele pode
finalmente solucionar a sua dúvida.
Nas leituras litúrgicas de hoje, temos
na segunda leitura, um trecho da carta de Paulo aos Romanos (5, 1-5),
onde o Apóstolo ensina que “estamos
em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo...
porque
o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado.
” Paulo escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo,
quando a doutrina da Trindade ainda estava em fase de elaboração,
daí o seu ensinamento acerca da Trindade não ser tão direto como
no evangelho de João, escrito muitos anos depois. Porém, vê-se o
modo como Paulo demonstra a interligação entre as três pessoas
divinas: o Pai criador, o Filho mediador, o Espírito que nos inunda.
A comunidade de Roma, a quem Paulo se dirigia, era a mais eclética
de todas pela própria condição da cidade, que era então a
verdadeira capital do mundo e onde viviam pessoas das mais diversas
procedências, costumes, idiomas e também crenças. Sem deixar de
considerar que também, naquela época, o cristianismo era uma
religião proscrita, perseguida, e só podia ser ensinada e praticada
às escondidas. Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para
apresentar a fé na Trindade aos romanos de uma maneira que fosse
mais apropriada para ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais
didática possível esta doutrina. Em Roma, havia muita influência
da cultura grega nas classes sociais mais ricas, que eram o público
preferencial da pregação de Paulo, dada a sua formação acadêmica.
Paulo atendia às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e os outros
atendiam às outras comunidades.
Na leitura do evangelho de João (Jo
14, 1-6), Tomé está ainda atormentado com suas dúvidas: Mestre,
não sabemos para onde tu vais
nem conhecemos o caminho. E Jesus, com
toda paciência, esclarece: “Eu sou o caminho… ninguém
vai ao Pai, senão por mim”. Jesus é a chave para o conhecimento
da Trindade. E, para concluir, uma breve lição de S. Tomás de
Aquino: “A fé católica consiste
em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade, sem
confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a pessoa
do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma é a
divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do Filho,
e do Espírito Santo.”
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário