domingo, 31 de julho de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 18º DOMINGO COMUM - RICOS PARA DEUS - 31.07.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO COMUM – RICOS PARA DEUS – 31.07.2016

Caros Leitores,

A liturgia deste 18º domingo do tempo comum nos leva a refletir sobre a posse e o usufruto dos bens materiais, dos quais não somos donos, mas apenas administradores. As leituras mostram exemplos de apego demasiado às coisas terrestres, situação que obnubila a nossa mente e nos impede de reconhecer o bem. Não vale a pena ser rico para ostentar, ser rico para o mundo, porque tal riqueza é vã e vazia, não nos acompanha na jornada futura. O cristão deve ser rico para Deus, rico de coração, pois esta é a riqueza perene.

Na primeira leitura, do livro do Qohelet (Eclesiastes), temos aquele bordão, que nos foi repetido incontáveis vezes no período de formação: vaidade das vaidades, tudo é vaidade. O Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão da missa de hoje, explicou que a palavra hebraica que é traduzida por “vaidade” significa algo como “uma bolha de sabão”, ou seja, a vaidade é algo que aparenta beleza, todavia é vazia, transitória, de repente se desfaz. E observemos o quanto a vaidade mexe com a cabeça das pessoas. Por causa da vaidade, as pessoas praticam atos reprováveis, fazem inimigos e até se autodestroem. Por causa da vaidade, as pessoas tentam apresentar uma imagem de si mesmas que, de fato, não são e tentam diminuir o brilho dos outros, a fim de que possam aparecer com destaque. Eu arriscaria dizer que a vaidade é o maior pecado da humanidade.

O livro do Kohelet, cuja autoria é atribuída a Salomão, faz uma advertência que continua muito atual, quando vemos pessoas cujos pais tiveram vida próspera, como fruto do seu trabalho, enquanto os herdeiros, com pouco tempo, puseram tudo a perder. Nos meios de comunicação, é frequente lermos notícias de pessoas que ganharam elevadas quantias em loterias e outros negócios, como jogadores e artistas que fizeram muita fama e tiveram invejável fortuna, e terminaram os seus dias, muitas vezes, em asilos de amparo, na mais lamentável penúria. Existe uma frase do Dalai Lama, que circula pela internet, a qual reproduz no nosso contexto contemporâneo a advertência do Kohelet: os homens gastam a saúde trabalhando demais para angariar muita riqueza e depois gastam toda a riqueza que adquiriram para restabelecerem a saúde. Quando conseguem.

Na carta aos Colossenses (3, 1-2), o apóstolo Paulo lhes ensina a aspirar às coisas do alto, a concentrar-se nas coisas celestes, já que, pelo batismo, todos ressuscitaram em Cristo. Isso significa que o “homem velho” morreu e no seu lugar surgiu o “homem novo”, fruto do evangelho. No versículo 5, Paulo não poderia ser mais claro ao falar das coisas terrestres, que devem ser abominadas: “Portanto, fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria. ” Os conceitos utilizados pelo apóstolo são, na verdade, todos sinônimos da mesma vaidade, da qual fala o Kohelet: ôca e efêmera. Ao morrermos para o pecado e ressuscitarmos para a vida nova em Cristo, todo o nosso mundo se transforma. Então, não teremos mais apego aos bens materiais nem às honrarias nem às benesses terrestres, isto é, “Aí não se faz distinção entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto, selvagem, escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos ” (Col 3, 11).

Naturalmente, meus amigos, essas palavras não significam que seja incoerente para nós cristãos possuirmos bens materiais, porque estes fazem parte da vida e são conquistados por nós com o nosso trabalho, o nosso esforço, a nossa produtividade, com eles podemos ter uma vida mais confortável, isso não é vedado ao cristão. Mesmo nas comunidades religiosas, se recordarmos a vetusta regra de São Francisco (“que os frades não recebem dinheiro ou pecúnia”), compreendemos que essas palavras devem ser entendidas simbolicamente, porque é impossível aos padres, religiosos e pessoas consagradas em geral uma existência sem a dependência da pecúnia, sem ter uma conta bancária, um telefone celular, sem possuir uma casa para residir, um veículo para se transportar. A questão não é ter ou não ter, mas administrar bem essa posse e propriedade, de modo que não contradiga o nosso testemunho diante do evangelho de Cristo. Numa palestra proferida aos sacerdotes, logo no início de sua jornada, o Papa Francisco expressou bem esse pensamento, mais ou menos com essas palavras: o padre precisa ter um veículo, é um meio indispensável para a realização do seu ministério, mas não precisa ser da melhor marca nem do último modelo... E hoje, no sermão de enceramento da Jornada Mundial da Juventude, em Cracóvia, ele ensinou aos jovens: “Não vos deixeis anestesiar a alma, mas apostai no amor formoso, que requer também a renúncia, e um «não» forte ao doping do sucesso a todo o custo e à droga de pensar só em si mesmo e nas próprias comodidades.” Penso que essas declarações do Papa ilustram, de modo poderoso, o que significa ter um objeto sem pertencer a ele. Sim, porque quando somos apegados aos bens materiais, não são eles que nos pertencem, somos nós que pertencemos a eles.

É a lição que Cristo nos dá, na leitura do evangelho de hoje (Lc 12, 13-21): “Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens.” Não é esta a única passagem em que Cristo chama a atenção para a correta administração dos bens materiais, mas esta é uma das mais eloquentes, quando Ele dá o exemplo do latifundiário que obteve abundante colheita e, longe de pensar em repartir aquele excesso de produção, favorecendo os irmãos, lembrou-se apenas de si mesmo, mandando construir armazéns maiores para assim guardar tudo só para ele. Todo aquele que é rico pensa somente em si: tenho o suficiente para viver folgado por muitos anos, aproveitando a vida. Porém, se ele não for rico para Deus, de nada adiantará o seu esforço egoísta. Meus amigos, essa parábola é por demais robusta, ela nos convida a refletir sobre o modo como estamos administrando os nossos bens, se estamos utilizando-os a serviço dos irmãos ou se estamos escondendo-os para o nosso único benefício. A ilusão de ter sempre mais facilmente escurece a razoabilidade da existência e afasta as pessoas, em vez de aproximá-las. A prática generalizada da violência urbana, que amedronta diariamente a todos nós, decorre dessa tentação de ter muito, ter sempre mais e, de preferência, ter sem ser preciso fazer esforço, sem precisar trabalhar, de forma rápida, para ser esbanjado mais rapidamente ainda.

E Cristo complementa o exemplo com a advertência: quem ajunta tesouros para si mesmo não é rico diante de Deus (Le 12, 21). Essa é uma expressão sinônima daquela outra que está no sermão da montanha, referente aos pobres de espírito. Está na mesma sintonia daquele outro desafio feito ao jovem que queria seguir a Cristo, mas tinha muitos bens e foi instado a livrar-se deles, mas não aceitou a oferta. Tem uma lição análoga àquela metafórica separação dos que ficam à esquerda e dos que ficam à direita, quando aqueles reclamam: quando foi que Te vimos com fome, ou com sede, ou maltrapilho e não Te atendemos? Quem procede igual ao fazendeiro da parábola narrada hoje não é capaz de reconhecer a figura de Cristo na pessoa do irmão necessitado. Recordo outra vez as eloquentes palavras do Papa Francisco, na sua visita ao Brasil, por serem verdadeiras e marcantes: um cristão pode estar sempre na Igreja, participar dos sacramentos, colaborar no dízimo, rezar o terço mariano todos os dias e, ao morrer, ir para o inferno, porque estar na Igreja não significa necessariamente estar em Cristo. Meus amigos, eu guardei essa lição do Papa, porque é um primor de ensinamento, em linguagem simples e profundamente teológica. Tem tudo a ver com a frase do evangelho de Lucas: quem ajunta tesouros para si não é rico diante de Deus. Estar na igreja é viver burocraticamente a religião, cumprir a obrigação por mera convenção social, realizar práticas devocionais apenas na aparência, que não brotam do íntimo da pessoa. Estar em Cristo é levar essas atitudes para a vida concreta, no trato diário com os familiares, com os do seu nível, com os seus subordinados, com o irmão necessitado que vem em busca de auxílio. Obviamente, estar na igreja deveria ser uma consequência de estar em Cristo, e vice-versa, no entanto, essa não é uma correspondência automática, ela deve ser buscada e aperfeiçoada em cada gesto e em cada atitude. De acordo com esse entendimento, um ateu praticante do bem obterá a salvação, por ser rico diante de Deus, enquanto alguns batizados não a obterão, se pensarem como o fazendeiro da parábola.

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domingo, 24 de julho de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 17º DOMINGO COMUM - A ORAÇÃO PODEROSA - 24.07.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – A ORAÇÃO PODEROSA– 24.07.2016

Caros Leitores:

Neste 17º domingo comum, a liturgia enfoca um tema super importante nos dias atuais, qual seja, o poder da oração, que é uma consequência do poder da fé. Afinal, o que significa orar? Desde criança, nós somos orientados a aprender certas orações de cor e recitá-las. Mas quem tem fé e ora espontaneamente, sem se prender a fórmulas padronizadas, faz diferença?. Coloca-se, portanto, nesse contexto, a discussão acerca das orações repetitivas em contraposição à oração criativa. Ao rezar o terço, repetimos cinquenta vezes a Ave Maria, isto é válido ou é melhor deixar falar o coração? Há justificativas teológicas para um e outro casos.

A primeira leitura, retirada de Gênesis (18, 20-32), é a continuação da leitura do domingo anterior, quando Abraão dialogou com os mensageiros desconhecidos, que o visitaram e anunciaram a gravidez de Sarah. Os mensageiros anunciaram também que, dali, iriam visitar Sodoma, a fim de conferir se aquilo que bradava aos céus contra os seus habitantes era realmente fato ou era alguma notícia inverídica, para que fossem tomadas providências. É muito curioso esse estilo do escritor sagrado de comparar Javeh com as pessoas humanas, como se Deus não tivesse condição de saber o que estava ocorrendo e necessitasse de mensageiros para darem seu testemunho. Na verdade, o objetivo da narrativa é demonstrar a força que possui a oração do justo diante de Deus. Abraão intercede sucessivas vezes pelos habitantes 'justos' de Sodoma, para que Javeh não os destrua assim como iria fazer com os ímpios. Abraão vai criando coragem e baixando o perfil: se houver 50 justos... e se forem 45... e se forem apenas 30... ou 20... ou 10... E Javeh o atende, dizendo que se houver 10 justos na cidade, ela não será destruída. Acontece que não havia nenhum. No caso, portanto, o que interessa para nós não é a antropologização de Deus, mas a lição bíblica de que ele atende as orações dos justos e também que a presença de pessoas justas, ainda que em pequeno número, faz a diferença no mundo dos ímpios. Conforme Jesus explicou em suas parábolas, o justo funciona como o fermento na massa, isto é, embora em pequena quantidade, é capaz de fazer toda a massa levedar. É o mesmo caso do exemplo da luz que, por menor que seja, ilumina todo um ambiente que antes estava escuro. O poder da oração tem uma carga energética de grande potencial, cuja ação na sociedade é capaz de produzir efeitos extraordinários.

Na leitura do evangelho, da autoria de Lucas (11, 1-13), lemos duas importantes lições de Cristo acerca da oração. Primeiro, os discípulos pedem a Ele que lhes ensine a orar, e Ele compõe na hora aquela famosa prece que continua sendo repetida hoje como “a oração que o Senhor ensinou”. Em seguida, temos as exortações que Ele faz acerca do vizinho que atende ao pedido do outro, mesmo que não seja por causa da amizade, mas até para se livrar do incômodo, e ainda acerca do pai que atende ao pedido do filho e não lhe fará nenhum mal. Ora, diz Ele: “se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem”. As lições de Cristo seguem o mesmo padrão doutrinário do texto do Gênesis acerca da força da oração e da importância de cada um rogar a Deus segundo as suas necessidades. Pois quem pede, recebe; quem procura, encontra; e, para quem bate, se abrirá. Se observarmos bem, até mesmo a figura literária dos mensageiros que foram a Sodoma “conferir” o que estava se passando, como se Javeh não soubesse, está, de outro modo, reproduzida no ensinamento de Cristo com o “pedi e recebereis”. É claro que Deus sabe das nossas necessidades e, na lógica humana, não seria preciso que se pedisse. Mas a lógica divina ensina que devemos pedir, não porque Deus não saiba, mas porque o ato de pedir é um ato de humildade, é uma confissão de carência, é um reconhecimento de incompletude, é um golpe no nosso orgulho. Mesmo que, em tese, não houvesse a necessidade de fazer o pedido, Cristo ensina que devemos pedir como uma forma de nos aproximarmos sempre mais daquele que dispõe de tudo e que tudo pode. Acima de tudo, o ato de pedir é um ato de fé, pois aquele que não crê acha que não precisa de Deus e, desse modo, sucumbe na sua autossuficiência.

Desponta, nesse contexto temático, aquela famosa polêmica do modo segundo o qual devemos orar: seguindo as orações formulares ou fazendo preces espontâneas, ditadas pela sensibilidade e pela emoção de cada momento? Obviamente, Cristo nunca mandou escrever orações modelares. A prece que chamamos de “pai nosso” não foi, com certeza, dada como modelo por Cristo, mas como um exemplo de como devemos nos dirigir ao Pai. A própria estrutura do “pai nosso” demonstra que devemos sempre, em primeiro lugar, orar para agradecer e louvar; depois, pedir e, depois, ter misericórdia. É importante observar isso, porque na maioria das vezes, as pessoas rezam apenas para pedir algo, fazem uma espécie de contrato com Deus: me dê isso que eu rezo durante tantos dias. Lamentavelmente, a pedagogia catequética tradicional levou as pessoas a identificarem a oração com um pedido de suprimento de alguma necessidade. Daí se criaram as “promessas”, os novenários, os devocionais, o costume de orar somente quando a pessoa se encontra em necessidade premente, precisa de ser urgentemente atendido, senão perde a fé e não vai rezar mais. Não podemos deixar de reconhecer que este é um fato corriqueiro na vida religiosa do nosso povo, sendo inclusive esse um motivo de “mudança de religião”, porque não conseguiu o que pretendia numa igreja, então vai procurar outra, como se Deus estivesse mais presente ali do que aqui. Em verdade, o que muda não é o espírito divino, mas a fé do crente.

Pois bem. Ao longo dos séculos, as autoridades eclesiásticas foram compondo textos de orações que se tornaram padronizadas, de modo que a catequese consistia, em grande parte, na memorização desses textos orantes. E a grande maioria dos fiéis só sabe rezar esses textos oficiais, como se apenas estes fossem válidos diante de Deus. É bem verdade que algumas pessoas não têm aquele “dom” de fazer preces bonitas, com palavras e frases bem-compostas. Isso não se refere apenas aos fiéis leigos, mas também aos sacerdotes. Nos primeiros tempos do cristianismo, não havia um “cânon” da missa, mas cada celebrante inventava o texto na hora da celebração. Ocorre que alguns sacerdotes mais cultos e devotos conseguiam compor orações mais completas e que agradavam mais à comunidade, enquanto outros tinham dificuldade em fazer belas preces. Assim, aos poucos foram se introduzindo textos padronizados para a celebração da missa e para as diversas orações a serem ditas nos cultos públicos. Chegou a um ponto tal essa burocracia do texto orante que, em determinada época, o celebrante cometia pecado venial se mudasse as palavras das orações oficiais. Atualmente, o celebrante tem certa liberdade para inovar, o que antes não era permitido. Ora, há pessoas que até questionam a tradução de certos trechos litúrgicos, quando são passados para as línguas vernaculares, o que demonstra que a prática da oração formular ainda é bastante forte.

Uma outra forma orante que causa certo incômodo para alguns fiéis é a das orações repetitivas. O terço mariano, por exemplo, é uma dessas orações criticadas. Que sentido faz repetir o mesmo texto de uma oração por cinquenta vezes? Por outro lado, há vários testemunhos de videntes que afirmam ter recebido de Maria a instrução-recomendação para a recitação do rosário, assim como de outros textos devocionais consagrados pela prática religiosa popular. Embora devamos reconhecer que essas repetições levam, na maioria das vezes, à distração mental porque se torna um comportamento mecânico e tedioso, não podemos deixar de reconhecer que muitas pessoas têm conseguido a obtenção de favores miraculosos com essas orações. Portanto, o que podemos dizer acerca desses vários tipos de orações é que, mais importante e mais operante do que o texto da oração será a fé do crente. Aquele que ora expressando sincera e honestamente a sua fé estará realizando o mandamento de Cristo “pedi e recebereis”, seja através das orações com textos prontos, seja através das orações espontâneas e criativas, porque acima das palavras da prece está a comunhão espiritual com Deus, através da fé. E isso é o que efetivamente Deus escuta e retribui: o coração sincero.

Que a nossa oração seja sempre a verdadeira expressão da nossa fé.

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domingo, 10 de julho de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 15º DOMINGO COMUM - O MEU PRÓXIMO - 10.07.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MEU PRÓXIMO – 10.07.2016

Caros Leitores,

Neste 15º domingo do tempo comum, temos aquela leitura emblemática do texto de Lucas, conhecido como a parábola do “bom samaritano” e o tema litúrgico em destaque é o confronto entre a lei e a misericórdia, o mandamento e a caridade. O que é mais importante: orar a Deus ou ajudar os irmãos? Resposta: os dois são importantes, claro. Mas o que é preferencial? Com a parábola do bom samaritano, Jesus ensina que a caridade para com o próximo é preferencial ao cumprimento puro e simples da lei. A misericórdia é a chave da porta que conduz à salvação, não basta a observância ritual e formalista dos mandamentos da lei.

Na primeira leitura, colhida do livro do Deuteronômio, Moisés ensina ao povo que a palavra de Deus está dentro de cada um, ou seja, está dentro da nossa consciência. Diz ele: a lei de Deus não está no céu, porque assim ficaria muito difícil de ser alcançada e alguém poderia dizer que não a conhece porque está inacessível. Também não está do outro lado do mar, porque estaria muito distante e ninguém conseguiria atingi-la. Lembremo-nos de que, na época de Moisés, o conceito de mar era bem outro do que conhecemos, ter de atravessar o mar era uma tarefa onerosa e demorada, tomando como referência o Mar Vermelho, o Mar Mediterrâneo, que eram os mares conhecidos. Mas não, diz Moisés, esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir. (Dt 30, 14) Este é o conceito da lei divina enquanto lei natural, isto é, aquela regra que cada um traz dentro de si mesmo e que a cultura costuma chamar de consciência.

De acordo com a doutrina tradicional, esta lei natural é inscrita em cada pessoa na sua razão como uma ideia inata, colocada pelo próprio Deus como parte da Sua atividade criadora. A lei natural decorre da própria racionalidade, está situada no âmago da razão humana, como sua fonte permanente de inspiração e de avaliação de conduta. No entanto, os filósofos da modernidade passaram a contestar essa noção de lei inata como algo próprio da natureza humana e passaram a afirmar que essas noções básicas do bem e do mal, do certo e do errado, do justo e do injusto não nos vêm embutidas na razão mesma, mas são aprendidas a partir das vivências e experiências de cada um na família e na sociedade. De um modo ou de outro, a lei divina enquanto lei natural é reconhecida por todas as pessoas como aquela regra básica de sempre fazer o bem. Se observarmos cuidadosamente o conteúdo da lei de Moisés, a grande exigência que Javeh sempre fez ao Seu povo foi honrá-Lo e adorá-Lo como único Deus, desprezando a idolatria, que era muito comum entre os povos contemporâneos. Todos os outros preceitos são compatíveis com o que chamamos de lei natural: honrar pai e mãe, não matar, não levantar falso testemunho, não querer os bens pertencentes a outrem... Esta é a lei antiga, que Jesus não veio negar nem modificar, mas sim cumprir de forma plena, conforme Ele afirmou por diversas vezes. O exemplo mais claro e pedagógico que Jesus deixou de como deve ser o nosso cumprimento da lei se encontra na parábola do “bom samaritano”.

O evangelista Lucas (10, 25) narra o diálogo de Jesus com um doutor da lei. Quem eram os doutores da lei? Eram os sábios instruídos na lei de Moisés, os rabinos, aqueles que ensinavam ao povo os preceitos dados por Javeh, podendo ser sacerdotes ou não. Portanto, teoricamente, um doutor da lei sabia (mais do que as outras pessoas) o que era de seu dever e obrigação cumprir. Dentre os judeus daquele tempo, o grupo dos fariseus era aquele formado por aqueles doutores da lei mais fervorosos, aqueles que se esmeravam no conhecimento da lei e no seu cumprimento acima de qualquer outra exigência. E faziam questão de demonstrar isso publicamente, para que todos os vissem como exemplares cumpridores da lei. Jesus não era nenhum ingênuo e quando aquele fariseu veio perguntar-Lhe o que era preciso fazer para ganhar a vida eterna, Ele respondeu com outra pergunta: o que diz a Lei? Ora, o fariseu sabia de cor e respondeu imediatamente: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Então Jesus disse: pois faça isso e terá a salvação. Talvez o fariseu esperasse que Jesus fosse ensinar algo diferente do que estava na Lei e assim poder acusá-lo de heresia. Quando Jesus disse “cumpra a lei”, o fariseu ficou desapontado. Em outras palavras, Jesus estava dizendo para aquele fariseu e para todos nós que a lei divina, aquela que se encontra no coração de cada homem, esta lei não passa, não muda, esta lei não é ensinada apenas pelos judeus, mas está em todos os povos desde as épocas mais antigas e em todos os lugares do mundo, o mandamento de fazer o bem sempre esteve persente em todas as culturas. Não é necessário que os parlamentos a aprovem, pois ela já se mostra evidente e presente por si mesma, reconhecida pela sadia racionalidade.

Pois bem, disso o fariseu já sabia. Mas para o cumprimento pleno da Lei, é preciso amar também o próximo. Daí ele pergunta: e quem é esse próximo, que eu devo amar? Aqui entra a parábola do bom samaritano. Um homem ferido, necessitando de ajuda é observado por um sacerdote e por um levita, ambos judeus, que se desviam dele e passam pelo outro lado, na estrada. Observemos a fina ironia de Jesus, quando colocou no exemplo da parábola um sacerdote e um levita. Esses dois termos eram até certo ponto sinônimos, mas não por completo, havia levitas que não eram sacerdotes. Seriam como os diáconos, aqueles que auxiliavam os sacerdotes no serviço do templo. Então, quando Jesus colocou na parábola um sacerdote e um levita, era como se Ele estivesse dizendo para o seu interlocutor: um judeu igual a você. Por que motivo o sacerdote e o levita teriam se desviado do ferido e moribundo? O evangelista não entra nesse detalhe, mas poder-se-ia supor, na melhor das hipóteses, que fosse porque eles estariam se dirigindo ao templo e não poderiam se atrasar para o serviço do culto. Ou numa hipótese mais malvada, porque eles realmente não se preocupavam mesmo com os sofrimentos dos outros. Era como se Jesus estivesse lançando a carapuça na cabeça daquele doutor da lei.

E para completar a ironia, Jesus colocou na parábola a figura do samaritano, como aquele que fez a coisa certa. Ora, meus amigos, os judeus tinham uma rixa com os samaritanos, achavam que esses não cumpriam a lei, eram intrigados entre si e não se falavam. De propósito, Jesus colocou um sacerdote e um levita dando mau exemplo e, de outro lado, o samaritano como autor do bom exemplo. Desse modo, duplamente Ele puxou as orelhas do doutor da lei. Uma, porque alguém da classe dele (sacerdote ou levita) preferiu passar apressado para não se atrasar no cumprimento da lei. Duas, porque o rival dos judeus foi aquele que teve misericórdia do ferido e o amparou. E para não deixar só no plano das especulações, Jesus ainda perguntou ao doutor da lei, para que ele tirasse a conclusão: quem desses três, ao seu ver, foi o próximo para o ferido? O doutor da lei não tinha outra alternativa senão concordar que tinha sido o samaritano, saindo dali com as orelhas pegando fogo.

Mas, enfim, como é cumprir plenamente a lei, segundo Jesus ensinou? Agora podemos concluir: é juntando o cumprimento formal da lei com a prática da caridade. Não se pode dizer que, a rigor, o sacerdote e o levita descumpriram a lei. Eles deviam ter seus motivos. Mas o samaritano cumpriu a lei da forma mais perfeita, que foi dando a preferência ao atendimento do irmão necessitado, mesmo que isso implicasse no atraso de outras obrigações. Então, como podemos observar, quando Jesus disse que não veio para destruir a lei de Moisés, mas para cumpri-la de forma integral, Ele estava querendo dizer que ninguém pode dizer que ama a Deus se não ama o próximo. Amar a Deus é a dimensão vertical da religião, ou seja, a oração, a meditação, o jejum, o terço, a novena, a missa, o templo. Amar o próximo é a dimensão horizontal da religião, ou seja, a caridade, a estima, a ajuda mútua, o compartilhamento dos bens, a misericórdia com os irmãos. Uma dimensão se completa com a outra e a dimensão vertical, sem a horizontal, torna-se inócua. Várias vezes, no evangelho, temos exemplos patéticos nas parábolas de Jesus, como quando aqueles que foram mandados para a “esquerda” perguntaram: quando foi que Te vimos com fome e não Te demos de comer? E ele respondeu: foi quando deixastes de ajudar o irmão necessitado. Ou seja, se ponderarmos bem, a dimensão horizontal tem um peso bem maior na hora de aquilatar o cumprimento da lei, porque é a dimensão horizontal que leva a outra dimensão à perfeição. O bom samaritano é o exemplo clássico e insuperável do amor ao próximo.

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domingo, 3 de julho de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SAO PEDRO E SAO PAULO - 03.07.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E SÃO PAULO – A CRUZ E A ESPADA – 03.07.2016

Caros Confrades:

A liturgia dominical desta data celebra a festa dos santos Pedro e Paulo, ocorrida no meio da semana que passou. Ambos tiveram importante função na igreja primitiva, Pedro entre os judeus e Paulo no mundo greco-romano. Ambos deram seus testemunhos de fé e perseverança, cumprindo o mandato do Mestre e seguindo-o também no martírio: Pedro através da cruz, Paulo através da espada. Pedro foi crucificado, Paulo foi degolado. A fé semeada por eles e regada com o próprio sangue frutificou intensamente em todo o continente europeu, espalhando-se daí para o solo americano.

Ainda persiste a polêmica sobre a autoridade de Pedro para todas as comunidades católicas, pois isso nunca foi aceito pelas igrejas católicas orientais, que possuem, cada uma, seu próprio Patriarca. Ainda há pouco, no final do mês de junho, ocorreu o primeiro Concílio das igrejas orientais desde que houve a separação entre elas e a igreja romana, há quase mil anos. E também no último mês de junho, o papa Francisco esteve visitando a igreja católica da Armênia, que tem o seu “papa” próprio, o patriarca Karekin, e os dois celebraram missas e participaram de diversas solenidades. A igreja armeniana é considerada a primeira igreja cristã oficialmente reconhecida pelo Estado, no ano 301, enquanto que o cristianismo só foi reconhecido em Roma vinte anos depois. O papa Francisco vem seguindo os passos dos pontífices anteriores a ele, desde Paulo VI, buscando reintegrar as comunidades orientais e ocidentais católicas, com boa aceitação por parte das autoridades das outras igrejas.

As leituras litúrgicas deste domingo recordam fatos extraordinários atinentes à vida pessoal dos apóstolos Pedro e Paulo. Sobre Pedro, o escritor São Lucas narra, nos Atos dos Apóstolos (12, 1-11) a miraculosa libertação dele da prisão do rei Herodes, que o prendera para agradar os judeus adversários dos cristãos. Lucas destaca a liderança de Pedro e tamanho da fé que a comunidade romana tinha nele. O rei Herodes sabia da importância hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão com um esquema especial de segurança: quatro grupos de quatro soldados cada um, além dos guardas que ficavam na porta da prisão. E ainda por cima, Pedro ainda estava amarrado com duas correntes, mas nada disso adiantou naquela ocasião em que Deus mandou o anjo para libertá-lo. O escritor sagrado destaca, neste episódio, a importância da oração da comunidade pelo seu pastor, fato que deve servir de exemplo para todos nós também nos dias de hoje. É muito comum as pessoas falarem mal dos padres e bispos quando, em certas ocasiões, se comportam de um modo não esperado ou até não condizente com o seu estado clerical. A narração de Lucas procura mostrar a integração que havia entre a comunidade romana e Pedro, destacando que a oração dos fiéis foi decisiva para que Deus mandasse o seu anjo para libertar Pedro da prisão. A oração das nossas comunidades em prol dos seus pastores, assim como o apoio nas iniciativas da paróquia, faz parte da obrigação dos fiéis e demonstra a presença do espírito comunitário cristão.

A narrativa da libertação de Pedro tem um certo tom cinematográfico, assim como se costuma ver nos filmes de ficção científica. Na véspera do dia em que Herodes iria apresentá-lo ao público judeu, Pedro recebeu a visita do anjo do Senhor, que o conduziu para fora da prisão. Lucas diz (At 12, 9) que Pedro ficou sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele estava apenas tendo uma visão. Imaginemos a cena: Pedro dormia e despertou com uma luz, que no entanto, não despertou os soldados que dormiam ao lado dele. As correntes que lhe prendiam as mãos se soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem chamou a atenção dos demais guardas. Os portões abriram-se sozinhos diante dele e os guardas de plantão nada perceberam. Pedro seguia o anjo e via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era apenas um sonho ou realidade. Somente quando se viu do lado de fora e livre foi que tomou consciência da sua libertação miraculosa. Diz o texto que isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Podemos imaginar a grande festa que aconteceu na comunidade cristã romana com a chegada de Pedro. E podemos imaginar também a ira e a decepção de Herodes, quando soube que Pedro não estava mais na prisão e ninguém sabia explicar como ele havia saído de lá. O fato é que a mão do Senhor não poderia faltar nessa hora crucial para a Igreja primitiva. A libertação de Pedro veio confirmar para a comunidade o valor da oração e atestar a proteção divina para com o seu líder.

Na segunda leitura, da Carta a Timóteo (2Tm 4, 6-18), o apóstolo Paulo, preso em Roma, diz que aguardava só a hora do seu sacrifício, expressando a sua fé e a confiança na salvação, segundo a promessa de Cristo, que ele anunciara por todas aquelas paragens. Combati o bom combate, terminei a corrida, mantive a fé, diz ele numa expressão que se transformou numa espécie de hino da vitória, que todo bom cristão pode entoar. A coroa da justiça, diz ele, está reservada não apenas para mim, mas para todo aquele que espera, com amor, a manifestação gloriosa de Cristo. As palavras de Paulo podem ser entendidas também como uma espécie de testamento espiritual, que ele depositou nas mãos do seu discípulo Timóteo, para ser distribuído com todos os cristãos. Ao chegar em Roma como prisioneiro, Paulo sabia que o seu fim estava próximo. Não foi necessário que a mão do Senhor providenciasse para ele a mesma atuação miraculosa que dedicara a Pedro, em outra circunstância similar, pois o trabalho de Paulo já estava concluído, conforme ele mesmo compreendera.

A leitura do evangelho de Mateus (Mt 16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de “pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com Pedro, porém não mencionam o detalhe das chaves do reino do céu. Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz tal referência, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus. (Lc 9, 18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o poder do inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é um pouco diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt adversus eam”, ou seja, as portas infernais não prevalecerão contra ela. Esse trecho foi o que, por volta do século IV, deu origem à doutrina da autoridade superior do bispo de Roma sobre todas as demais igrejas. Sabemos, pela história, que a igreja cristã de Roma foi uma das últimas a serem constituídas. As igrejas de Constantinopla, de Antioquia, de Alexandria, de Esmirna, da Capadócia, de Éfeso, por exemplo, são todas mais antigas do que a de Roma. Então, por que o bispo de Roma teria autoridade sobre as igrejas mais antigas? Os líderes dessas igrejas orientais nunca entenderam nem aceitaram esse fato, que foi objeto de calorosas discussões em diversos concílios, vindo por fim a provocar o desligamento das igrejas de língua grega com a igreja de língua latina, no ano 1054. Somente após o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI começou um movimento de reaproximação da igreja romana com as igrejas orientais, o que vem sendo continuado pelos papas seguintes, com expressivos progressos. O papa Bento XVI nomeou como cardeais dois prelados orientais e tudo indica que, num breve futuro, os elementos de discórdia sejam superados.

Pois bem, podemos concluir que Pedro e Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa reflexão, quando nos deparamos com a existência de tendências e grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de Cristo com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época. Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre deverá ser a fiel e esclarecida adesão à mensagem de Cristo, que tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo com fidelidade.

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