COMENTÁRIO LITÚRGICO – 18º DOMINGO
COMUM – RICOS PARA DEUS – 31.07.2016
Caros Leitores,
A liturgia deste 18º domingo do tempo
comum nos leva a refletir sobre a posse e o usufruto dos bens
materiais, dos quais não somos donos, mas apenas administradores. As
leituras mostram exemplos de apego demasiado às coisas terrestres,
situação que obnubila a nossa mente e nos impede de reconhecer o
bem. Não vale a pena ser rico para ostentar, ser rico para o mundo,
porque tal riqueza é vã e vazia, não nos acompanha na jornada
futura. O cristão deve ser rico para Deus, rico de coração, pois
esta é a riqueza perene.
Na primeira leitura, do livro do
Qohelet (Eclesiastes), temos aquele bordão, que nos foi repetido
incontáveis vezes no período de formação: vaidade das vaidades,
tudo é vaidade. O Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão da missa de
hoje, explicou que a palavra hebraica que é traduzida por “vaidade”
significa algo como “uma bolha de sabão”, ou seja, a vaidade é
algo que aparenta beleza, todavia é vazia, transitória, de repente
se desfaz. E observemos o quanto a vaidade mexe com a cabeça das
pessoas. Por causa da vaidade, as pessoas praticam atos reprováveis,
fazem inimigos e até se autodestroem. Por causa da vaidade, as
pessoas tentam apresentar uma imagem de si mesmas que, de fato, não
são e tentam diminuir o brilho dos outros, a fim de que possam
aparecer com destaque. Eu arriscaria dizer que a vaidade é o maior
pecado da humanidade.
O livro do Kohelet, cuja autoria é
atribuída a Salomão, faz uma advertência que continua muito atual,
quando vemos pessoas cujos pais tiveram vida próspera, como fruto do
seu trabalho, enquanto os herdeiros, com pouco tempo, puseram tudo a
perder. Nos meios de comunicação, é frequente lermos notícias de
pessoas que ganharam elevadas quantias em loterias e outros negócios,
como jogadores e artistas que fizeram muita fama e tiveram invejável
fortuna, e terminaram os seus dias, muitas vezes, em asilos de
amparo, na mais lamentável penúria. Existe uma frase do Dalai Lama,
que circula pela internet, a qual reproduz no nosso contexto
contemporâneo a advertência do Kohelet: os homens gastam a saúde
trabalhando demais para angariar muita riqueza e depois gastam toda a
riqueza que adquiriram para restabelecerem a saúde. Quando
conseguem.
Na carta aos Colossenses (3, 1-2), o
apóstolo Paulo lhes ensina a aspirar às coisas do alto, a
concentrar-se nas coisas celestes, já que, pelo batismo, todos
ressuscitaram em Cristo. Isso significa que o “homem velho”
morreu e no seu lugar surgiu o “homem novo”, fruto do evangelho.
No versículo 5, Paulo não poderia ser mais claro ao falar das
coisas terrestres, que devem ser abominadas: “Portanto,
fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza,
paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria.
” Os conceitos utilizados pelo apóstolo são, na verdade, todos
sinônimos da mesma vaidade, da qual fala o Kohelet: ôca e efêmera.
Ao morrermos para o pecado e ressuscitarmos para a vida nova em
Cristo, todo o nosso mundo se transforma. Então, não teremos mais
apego aos bens materiais nem às honrarias nem às benesses
terrestres, isto é, “Aí
não se faz distinção entre grego e judeu, circunciso e
incircunciso, inculto, selvagem, escravo e livre, mas Cristo é tudo
em todos ” (Col 3,
11).
Naturalmente, meus amigos, essas
palavras não significam que seja incoerente para nós cristãos
possuirmos bens materiais, porque estes fazem parte da vida e são
conquistados por nós com o nosso trabalho, o nosso esforço, a nossa
produtividade, com eles podemos ter uma vida mais confortável, isso
não é vedado ao cristão. Mesmo nas comunidades religiosas, se
recordarmos a vetusta regra de São Francisco (“que os frades não
recebem dinheiro ou pecúnia”), compreendemos que essas palavras
devem ser entendidas simbolicamente, porque é impossível aos
padres, religiosos e pessoas consagradas em geral uma existência sem
a dependência da pecúnia, sem ter uma conta bancária, um telefone
celular, sem possuir uma casa para residir, um veículo para se
transportar. A questão não é ter ou não ter, mas administrar bem
essa posse e propriedade, de modo que não contradiga o nosso
testemunho diante do evangelho de Cristo. Numa palestra proferida aos
sacerdotes, logo no início de sua jornada, o Papa Francisco
expressou bem esse pensamento, mais ou menos com essas palavras: o
padre precisa ter um veículo, é um meio indispensável para a
realização do seu ministério, mas não precisa ser da melhor marca
nem do último modelo... E hoje, no sermão de enceramento da Jornada
Mundial da Juventude, em Cracóvia, ele ensinou aos jovens: “Não
vos deixeis anestesiar a alma, mas apostai no amor formoso, que
requer também a renúncia, e um «não» forte ao doping do sucesso
a todo o custo e à droga de pensar só em si mesmo e nas próprias
comodidades.” Penso que essas declarações do Papa ilustram, de
modo poderoso, o que significa ter um objeto sem pertencer a ele.
Sim, porque quando somos apegados aos bens materiais, não são eles
que nos pertencem, somos nós que pertencemos a eles.
É a lição que Cristo nos dá, na
leitura do evangelho de hoje (Lc 12, 13-21): “Tomai
cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém
tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância
de bens.” Não é
esta a única passagem em que Cristo chama a atenção para a correta
administração dos bens materiais, mas esta é uma das mais
eloquentes, quando Ele dá o exemplo do latifundiário que obteve
abundante colheita e, longe de pensar em repartir aquele excesso de
produção, favorecendo os irmãos, lembrou-se apenas de si mesmo,
mandando construir armazéns maiores para assim guardar tudo só para
ele. Todo aquele que é rico pensa somente em si: tenho o suficiente
para viver folgado por muitos anos, aproveitando a vida. Porém, se
ele não for rico para Deus, de nada adiantará o seu esforço
egoísta. Meus amigos, essa parábola é por demais robusta, ela nos
convida a refletir sobre o modo como estamos administrando os nossos
bens, se estamos utilizando-os a serviço dos irmãos ou se estamos
escondendo-os para o nosso único benefício. A ilusão de ter sempre
mais facilmente escurece a razoabilidade da existência e afasta as
pessoas, em vez de aproximá-las. A prática generalizada da
violência urbana, que amedronta diariamente a todos nós, decorre
dessa tentação de ter muito, ter sempre mais e, de preferência,
ter sem ser preciso fazer esforço, sem precisar trabalhar, de forma
rápida, para ser esbanjado mais rapidamente ainda.
E Cristo complementa o exemplo com a
advertência: quem ajunta tesouros para si mesmo não é rico diante
de Deus (Le 12, 21). Essa é uma expressão sinônima daquela outra
que está no sermão da montanha, referente aos pobres de espírito.
Está na mesma sintonia daquele outro desafio feito ao jovem que
queria seguir a Cristo, mas tinha muitos bens e foi instado a
livrar-se deles, mas não aceitou a oferta. Tem uma lição análoga
àquela metafórica separação dos que ficam à esquerda e dos que
ficam à direita, quando aqueles reclamam: quando foi que Te vimos
com fome, ou com sede, ou maltrapilho e não Te atendemos? Quem
procede igual ao fazendeiro da parábola narrada hoje não é capaz
de reconhecer a figura de Cristo na pessoa do irmão necessitado.
Recordo outra vez as eloquentes palavras do Papa Francisco, na sua
visita ao Brasil, por serem verdadeiras e marcantes: um cristão pode
estar sempre na Igreja, participar dos sacramentos, colaborar no
dízimo, rezar o terço mariano todos os dias e, ao morrer, ir para o
inferno, porque estar na Igreja não significa necessariamente estar
em Cristo. Meus amigos, eu guardei essa lição do Papa, porque é um
primor de ensinamento, em linguagem simples e profundamente
teológica. Tem tudo a ver com a frase do evangelho de Lucas: quem
ajunta tesouros para si não é rico diante de Deus. Estar na igreja
é viver burocraticamente a religião, cumprir a obrigação por mera
convenção social, realizar práticas devocionais apenas na
aparência, que não brotam do íntimo da pessoa. Estar em Cristo é
levar essas atitudes para a vida concreta, no trato diário com os
familiares, com os do seu nível, com os seus subordinados, com o
irmão necessitado que vem em busca de auxílio. Obviamente, estar na
igreja deveria ser uma consequência de estar em Cristo, e
vice-versa, no entanto, essa não é uma correspondência automática,
ela deve ser buscada e aperfeiçoada em cada gesto e em cada atitude.
De acordo com esse entendimento, um ateu praticante do bem obterá a
salvação, por ser rico diante de Deus, enquanto alguns batizados
não a obterão, se pensarem como o fazendeiro da parábola.
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