COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E
SÃO PAULO – A CRUZ E A ESPADA – 03.07.2016
Caros Confrades:
A liturgia dominical desta data celebra
a festa dos santos Pedro e Paulo, ocorrida no meio da semana que
passou. Ambos tiveram importante função na igreja primitiva, Pedro
entre os judeus e Paulo no mundo greco-romano. Ambos deram seus
testemunhos de fé e perseverança, cumprindo o mandato do Mestre e
seguindo-o também no martírio: Pedro através da cruz, Paulo
através da espada. Pedro foi crucificado, Paulo foi degolado. A fé
semeada por eles e regada com o próprio sangue frutificou
intensamente em todo o continente europeu, espalhando-se daí para o
solo americano.
Ainda persiste a polêmica sobre a
autoridade de Pedro para todas as comunidades católicas, pois isso
nunca foi aceito pelas igrejas católicas orientais, que possuem,
cada uma, seu próprio Patriarca. Ainda há pouco, no final do mês
de junho, ocorreu o primeiro Concílio das igrejas orientais desde
que houve a separação entre elas e a igreja romana, há quase mil
anos. E também no último mês de junho, o papa Francisco esteve
visitando a igreja católica da Armênia, que tem o seu “papa”
próprio, o patriarca Karekin, e os dois celebraram missas e
participaram de diversas solenidades. A igreja armeniana é
considerada a primeira igreja cristã oficialmente reconhecida pelo
Estado, no ano 301, enquanto que o cristianismo só foi reconhecido
em Roma vinte anos depois. O papa Francisco vem seguindo os passos
dos pontífices anteriores a ele, desde Paulo VI, buscando reintegrar
as comunidades orientais e ocidentais católicas, com boa aceitação
por parte das autoridades das outras igrejas.
As leituras litúrgicas deste domingo
recordam fatos extraordinários atinentes à vida pessoal dos
apóstolos Pedro e Paulo. Sobre Pedro, o escritor São Lucas narra,
nos Atos dos Apóstolos (12, 1-11) a miraculosa libertação dele da
prisão do rei Herodes, que o prendera para agradar os judeus
adversários dos cristãos. Lucas destaca a liderança de Pedro e
tamanho da fé que a comunidade romana tinha nele. O rei Herodes
sabia da importância hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão
com um esquema especial de segurança: quatro grupos de quatro
soldados cada um, além dos guardas que ficavam na porta da prisão.
E ainda por cima, Pedro ainda estava amarrado com duas correntes, mas
nada disso adiantou naquela ocasião em que Deus mandou o anjo para
libertá-lo. O escritor sagrado destaca, neste episódio, a
importância da oração da comunidade pelo seu pastor, fato que deve
servir de exemplo para todos nós também nos dias de hoje. É muito
comum as pessoas falarem mal dos padres e bispos quando, em certas
ocasiões, se comportam de um modo não esperado ou até não
condizente com o seu estado clerical. A narração de Lucas procura
mostrar a integração que havia entre a comunidade romana e Pedro,
destacando que a oração dos fiéis foi decisiva para que Deus
mandasse o seu anjo para libertar Pedro da prisão. A oração das
nossas comunidades em prol dos seus pastores, assim como o apoio nas
iniciativas da paróquia, faz parte da obrigação dos fiéis e
demonstra a presença do espírito comunitário cristão.
A narrativa da libertação de Pedro
tem um certo tom cinematográfico, assim como se costuma ver nos
filmes de ficção científica. Na véspera do dia em que Herodes
iria apresentá-lo ao público judeu, Pedro recebeu a visita do anjo
do Senhor, que o conduziu para fora da prisão. Lucas diz (At 12, 9)
que Pedro ficou sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele
estava apenas tendo uma visão. Imaginemos a cena: Pedro dormia e
despertou com uma luz, que no entanto, não despertou os soldados que
dormiam ao lado dele. As correntes que lhe prendiam as mãos se
soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem chamou a
atenção dos demais guardas. Os portões abriram-se sozinhos diante
dele e os guardas de plantão nada perceberam. Pedro seguia o anjo e
via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era apenas um sonho ou
realidade. Somente quando se viu do lado de fora e livre foi que
tomou consciência da sua libertação miraculosa. Diz o texto que
isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Podemos imaginar a
grande festa que aconteceu na comunidade cristã romana com a chegada
de Pedro. E podemos imaginar também a ira e a decepção de Herodes,
quando soube que Pedro não estava mais na prisão e ninguém sabia
explicar como ele havia saído de lá. O fato é que a mão do Senhor
não poderia faltar nessa hora crucial para a Igreja primitiva. A
libertação de Pedro veio confirmar para a comunidade o valor da
oração e atestar a proteção divina para com o seu líder.
Na segunda leitura, da Carta a Timóteo
(2Tm 4, 6-18), o apóstolo Paulo, preso em Roma, diz que aguardava só
a hora do seu sacrifício, expressando a sua fé e a confiança na
salvação, segundo a promessa de Cristo, que ele anunciara por todas
aquelas paragens. Combati o bom combate, terminei a corrida, mantive
a fé, diz ele numa expressão que se transformou numa espécie de
hino da vitória, que todo bom cristão pode entoar. A coroa da
justiça, diz ele, está reservada não apenas para mim, mas para
todo aquele que espera, com amor, a manifestação gloriosa de
Cristo. As palavras de Paulo podem ser entendidas também como uma
espécie de testamento espiritual, que ele depositou nas mãos do seu
discípulo Timóteo, para ser distribuído com todos os cristãos. Ao
chegar em Roma como prisioneiro, Paulo sabia que o seu fim estava
próximo. Não foi necessário que a mão do Senhor providenciasse
para ele a mesma atuação miraculosa que dedicara a Pedro, em outra
circunstância similar, pois o trabalho de Paulo já estava
concluído, conforme ele mesmo compreendera.
A leitura do evangelho de Mateus (Mt
16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual
ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de
“pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de
fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com
efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com
Pedro, porém não mencionam o detalhe das chaves do reino do céu.
Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz tal
referência, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus. (Lc 9,
18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o poder do
inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é um pouco
diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt adversus eam”,
ou seja, as portas infernais não prevalecerão contra ela. Esse
trecho foi o que, por volta do século IV, deu origem à doutrina da
autoridade superior do bispo de Roma sobre todas as demais igrejas.
Sabemos, pela história, que a igreja cristã de Roma foi uma das
últimas a serem constituídas. As igrejas de Constantinopla, de
Antioquia, de Alexandria, de Esmirna, da Capadócia, de Éfeso, por
exemplo, são todas mais antigas do que a de Roma. Então, por que o
bispo de Roma teria autoridade sobre as igrejas mais antigas? Os
líderes dessas igrejas orientais nunca entenderam nem aceitaram esse
fato, que foi objeto de calorosas discussões em diversos concílios,
vindo por fim a provocar o desligamento das igrejas de língua grega
com a igreja de língua latina, no ano 1054. Somente após o Concílio
Vaticano II, o Papa Paulo VI começou um movimento de reaproximação
da igreja romana com as igrejas orientais, o que vem sendo continuado
pelos papas seguintes, com expressivos progressos. O papa Bento XVI
nomeou como cardeais dois prelados orientais e tudo indica que, num
breve futuro, os elementos de discórdia sejam superados.
Pois bem, podemos concluir que Pedro e
Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um
na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências
doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem
diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa
diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem
se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa
reflexão, quando nos deparamos com a existência de tendências e
grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se
destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao
lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de
Cristo com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão
de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época.
Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre
deverá ser a fiel e esclarecida adesão à mensagem de Cristo, que
tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito
nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo
com fidelidade.
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